O dia em que 20 000 rochas marcharam

O dia em que 20 000 rochas marcharam

Abafazi wathint ‘, (Quando se bate numa mulher)
Imbokodo wathint ‘, (Se bate numa rocha)
Uza Kufa! (Você será esmagado)

Fonte: KANDIMBA

 

Foi a 9 de Agosto de 1956 que a força das rochas se fez sentir na África do Sul.

Na altura o país vivia em regime de Apartheid, que privilegiava a minoria branca, em detrimento da maioria negra. E as mulheres caminharam em protesto em Pretória, na sede do Governo.

Aos brancos, detentores do poder, lhes era concedida educação de qualidade, acesso a hospitais e segurança, e o direito de viver e ocupar qualquer espaço. Já os negros não podiam circular livremente no território sul-africano, tendo os seus espaços devidamente delimitados.

Numa histórica marcha, que juntou cerca de 20 000 pessoas em Joanesburgo, as mulheres protestaram contra o uso de passes.

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Os primeiros passes foram instituídos em 1910. Fonte: South African History

Na época, a legislação sul africana exigia que todos os cidadãos não brancos provassem que tinham autorização para frequentar as áreas reservados aos brancos.

Os passes eram documentos que definiam os limites de circulação para os cidadãos não brancos na África do Sul, impedindo-os de andar livremente nos centros urbanos e estipulando zonas e horários onde podiam estar.

Os passes serviam para segregar as cidades através da gestão do meio urbano e do controle do êxodo rural. Com os passes, o regime controlava as entradas/ saídas das cidades, impedindo jovens negros de procurar emprego melhor nas cidades, bem como de encontrar melhores hospitais ou escolas.

Estas leis não só dificultavam o desenvolvimento emocional, social e intelectual das populações não brancas, como também impediam, de forma deliberada, que os poucos que conseguissem quebrar algumas barreiras se sentissem como os brancos.

Muitos homens negros eram presos, torturados ou mesmo assassinados quando encontrados nas zonas reservadas aos brancos sem os passes. Assim, era comum, nas zonas adjacentes às cidades, nos bairros periféricos habitados pela mão-de-obra que durante o dia trabalhava nas zonas reservadas aos brancos, que muitas mulheres ficassem a cargo da subsistência da família.

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As mulheres tiveram um papel central para o fim do Apartheid. Fonte: Africa.com

À semelhança do que aconteceu com outros países, na África do Sul, a ausência dos homens fez com que a estrutura familiar tradicional mudasse radicalmente. Os papéis de género foram desafiados e as mulheres passaram a ter uma posição mais central, com poder de decisão.

Como um sistema racista, capitalista e patriarcal, as mulheres negras eram o grupo mais oprimido. Eram elas que ocupavam os piores postos de trabalho, que viviam nas piores condições e que eram ainda responsáveis pela segurança e subsistência dos seus filhos.

Obrigando as mulheres negras a usarem os passes, o regime estava a empurrá-las para longe das cidades.

We, women, will never carry these passes. This is something that touches my heart. I appeal to you young Africans to come forward and fight. These passes make the road even narrower for us. We have seen unemployment, lack of accommodation and families broken because of passes. We have seen it with our men. Who will look after our children when we go to jail for a small technical offence — not having a pass?//

Nós, as mulheres, jamais andaremos com estes passes. Isto é algo que me toca o coração. Eu apelo a vocês, jovens africanas que avancem e lutem. Estes passes tornam a estrada ainda mais dura para nós. Nós vimos o desemprego; a falta de alojamento e famílias desfeitas por causa dos passes. Nós vimos com os nossos homens! Quem irá olhar pelos nossos filhos quando nós formos para a cadeia por uma pequena infracção- não ter o passe? – Dora Tamana, durante o protesto em 1956

As mulheres não queriam mais ter um papel submisso, pelo contrário, estavam dispostas a ir à luta para ter mais direitos e foi por isso que rapidamente as mulheres estiveram na vanguarda da resistência anti-apartheid.

A opressão racial levou as mulheres a não só ganhar consciência da sua cor de pele, mas também do seu género. Esta consciência deu vida a um movimento que se fortaleceu e não se calou.

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Mulheres de todas as raças e credos juntaram-se ao protesto. Fonte: GENI

Foram mulheres como Lilian Ngoyi, Helen Joseph, Rahima Moosa e Sophia Williams-de Brun, que tornaram o movimento possível, mobilizando mulheres de todo o país para saírem das suas casas e invadirem as ruas em protesto.

As quatro mulheres e o seu exército mostraram o poder que têm quando unidas: foram 100 000 assinaturas numa petição para entregarem ao Primeiro-Ministro da altura.

Mesmo em silêncio com os filhos nas costas, elas não se deixaram intimidar. Mesmo sobre o risco de perderem os seus empregos, mesmo arriscando as próprias vidas, elas foram à rua.

Mesmo enjauladas em cadeias, como Winnie Mandela, estas verdadeiras rochas fizeram uma muralha inquebrável que inevitavelmente derrubou o regime do Apartheid.

Monsieur Macron, vamos lá falar!

Monsieur Macron, vamos lá falar!

O Presidente francês fez alguns comentários recentemente sobre o estado actual de África que despontaram grandes debates.

Durante a cimeira dos G20, quando um jornalista da Costa do Marfim perguntou sobre a possibilidade da implementação de um programa em África como o Plano Marshall (Europa) , o Emmanuel Macron afirmou que os problemas enfrentados actualmente pelo continente africano são completamente diferentes, pois são civilizacionais e mais tarde ainda refere-se ao facto de as mulheres terem 7 a 8 filhos como um factor central para o sub-desenvolvimento do continente.

Bem, primeiramente, a taxa de fecundidade a nível do continente é de 4,45 filhos por mulher segundo dados da ONU de 2009. O único país Africano perto do número referido por Macron é o Níger, em que cada mulher tem em média 7,6 filhos.

Depois, vários foram os estudiosos que confirmaram que não é o sobre-povoamento que causa pobreza, mas sim a pobreza que causa sobre-povoamento. Ou seja, sociedades com níveis de literacia baixos e pouco acesso a serviços de saúde de qualidade estão mais predispostas a fazer muitos filhos. Pelo contrário, se esses “muitos filhos” conseguirem viver num ambiente mais propício ao seu desenvolvimento, provavelmente farão menos filhos.

Para além disso, a ideia em como recai na mulher todo o peso do desenvolvimento de um país inteiro é não só machista, como distrai-nos de questionar o papel de políticas imperialistas e neo-colonislistas em vigor nos países africanos.

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Macron não é diferente dos restantes líderes ocidentais. Fonte: This is Africa

Macron, ainda nessa resposta fala no combate à corrupção e em melhor governação.

Nos últimos 50 anos África assistiu a mais de 26 golpes de Estado (ou quase isso) sendo que 16 destes aconteceram em países que tinham sido colónias francesas.

Adicionalmente, até hoje 14 países africanos “francófonos” pagam €440 bilhões anualmente para a França. Estes países devem pagar 85% das suas reservas em moeda estrangeira ao Banco Central Francês.

Ou seja, a política externa da França no que toca aos países africanos mostra que ainda é baseada numa visão colonialista, em que os países “francófonos” são uma extensão do seu território na Europa.

O papel da França no genocídio de Ruanda, no assassinato de Thomas Sankara e mais recentemente na morte de Gaddafi, ainda que por esclarecer, mostra como a França tem agido tendo em conta os seus próprios interesses e não o crescimento e desenvolvimento do continente africano.

Isto evidencia o papel da França no sub-desenvolvimento de África e de África no desenvolvimento da França.

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Por que são tão importantes as ex-colónias africanas para a França? Fonte: Mail & Guardian

A instalibilidade do continente é em grande parte resultado da interferência ocidental em África.

Tudo o que foi dito por Macron – ou grande parte – é verdade, mas não é o problema, não é a doença. São apenas sintomas: Estados descredibilizados; conflitos armados constantes; fraco controle da natalidade; etc.

Estas verdades são a parte material, a parte visível. Mesmo se esses sintomas não estivessem lá teríamos outros, e precisaríamos de ajuda à mesma.

Foi o Ocidente que instalou estes regimes corruptos para melhor manipularem os povos e servirem os seus interesses e depois vêm aqui falar em corrupção e boa governação. Isto para não mencionar as medidas racistas anti-imigração que implementam na Europa para impedir-nos de fugir à Pobreza e miséria.

É muita hipocrisia – ou ignorância – Macron sentar-se no topo da montanha de dinheiro arrancada aos países africanos, com o seu vinho francês e falar de África como um fardo que ele carrega.

Macron não vê os países africanos como parceiros de negócios, mas sim como bebés ricos que precisam de ajuda a gerir os recursos.

Quando a França começar a falar em reparações pelos danos humanos e materiais que causou com a sua ocupação no continente africano; quando a França parar de deixar africanos morrerem no Mediterrâneo em busca de uma vida melhor; quando a França devolver o dinheiro de África que tem nos seus cofres, bem como arte nos seus museus, aí sim vamos falar em “civilização“.

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O problema com o “complexo de salvador branco” em África. Fonte: Ventures Africa

Contudo, a maior decepção acho que foi mesmo para quem aplaudiu e se jubilou com a sua eleição.

Afinal de contas, Emmanuel Macron criou esta imagem carismática, com os seus olhos claros e sorriso fácil. Quebrando protocolo de vez em quando, para lembrar ao público da sua humanidade e sejamos francos, com o oponentes que ele tinha, seria difícil se não tivéssemos caído no seu jogo de sedução.

Mas a verdade é que ele é apenas tão liberal como outro presidente ocidental branco qualquer. Ele provavelmente só não diz as coisas racistas e xenófobas que o Trump diz para não ferir susceptibilidades, mas ri-se das piadas no seu íntimo e agradece por haver alguém que diga essas coisas em voz alta.

Macron não é diferente dos nossos amigos estrangeiros, brancos, imigrantes (ou talvez diria expatriados)  vindos do Ocidente que adoram África e contam histórias fantásticas de todos os países africanos que visitaram e do trabalho que as ONGs para quem trabalham/ trabalharam faz e até lêem Chimamanda Adichie ou Chinua Achebe porque “literatura africana é fascinante”.

Mas esses nossos amigos vivem nos melhores bairros das nossas cidades; recebem muito acima da média e têm regalias que lhes permitem viver de forma luxuosa, mesmo no meio de tanta Pobreza e sendo a ‘voz dos desfavorecidos’.

Ao jantar com amigos falam das decepções de viver num país em que nada funciona e em que não se pode confiar sequer na polícia, e levam as empregadas fardadas aos restaurantes enquanto discutem os direitos das mulheres.

Macron se encaixaria perfeitamente nessas conversas e provavelmente falaria da crise da caça furtiva e da pena que é ir aos safaris e não ver elefantes. Falaria também do quão gosta da comida local e da hospitalidade onde quer que vá, mas jamais faria a relação entre isso e a cor da sua pele.

Enfim, Emmanuel Macron, aquele amigo europeu branco que contribuiu 1 dólar para uma ONG qualquer, daquelas com fotos de crianças mal nutridas nas assinaturas dos emails para limpar a sua alma da culpa que o seu capitalismo e condescendência lhe trazem.

 

Moolaade

Moolaade

No último filme de Sembene, o contador de histórias senegalês traz-nos um tema polémico e bastante actual: circuncisão feminina, ou por outras palavras, a mutilação genital feminina.

O filme “Moolaadé” passa-se numa pacata aldeia do Burkina Faso quando, após fugirem do ritual de purificação, quatro fugitivas se refugiam em casa de Collé, uma mulher que anos antes não deixou que a filha participasse do ritual.

Collé para proteger as meninas lança um feitiço de nome Moolaadé, que funciona como asilo espiritual, impedindo as meninas de voltarem para o local do ritual, até que o feitiço seja quebrado com a palavra mágica que apenas por ela pode ser proferida, sobre o risco de grandes desgraças acontecerem.

 

 A segunda de três esposas, Collé tem de defender e negociar a sua posição primeiro para a sua irmã mais velha (a primeira mulher) e para os restantes habitantes da casa, e depois para as mães das meninas e toda a comunidade em geral.

Collé, com as suas dores e cicatrizes, ameaça a ordem social naquela pacata vila e isso assusta os demais. Ela é acusava de ser demoníaca por defender algo que contradiz os ensinamentos religiosos e as tradições ali instaladas.

Através do conselho de anciões, os homens mais velhos opõem-se ao feitiço lançado por Collé, chamando-a de imprudente e de desequilibrada. E forçam o seu marido, que reconhece a sua força e por ela tem muito amor, a humilhá-la em praça pública para provar o seu domínio sobre a esposa ‘desobediente’.

Evidencia-se aqui o poder que os homens têm – ou procuram ter – sobre as mulheres, os seus corpos e as suas decisões. Seja de marido para esposa; de irmão para irmã; de filho para mãe ou mesmo de um simples desconhecido para uma mulher qualquer.

 


Misturam-se motivos culturais; religiosos; mitos e factos numa trama trágica e simultaneamente cómica que retrata a vida e dinamismo de uma aldeia típica africana.

Sembene traz-nos todos os contrastes e contradições desta vivência.

Se por um lado Collé é uma mãe ousada, com audácia para desafiar as normas impostas, por outro é também uma mulher bastante convencional, que vive um casamento poligâmico e faz um casamento arranjado para a filha.

Se temos de um lado uma vila com uma herança islâmica presente em todas as esferas da vida, temos também uma forte influência das religiões tradicionais africanas, em que o Moolaadé tem muito poder.

E embora a aldeia pareça estar parada no tempo e isolada de tudo, a presença de aparelhos de rádio, que trazem notícias de todo o mundo e do filho do régulo que regressa da França vestindo fato e gravata sempre que sai de casa, provam que não se pode viver fechando os olhos ao que se passa lá fora.
Mais do que um filme político, Moolaadé é um manifesto para a celebração de uma cultura africana que não cause prejuízo às mulheres.

O filme prova-nos como a cultura africana, os seus mitos e tradições não funcionam somente para oprimir, mas também para libertar. A nossa heroína com apenas um acto de resistência leva toda a vila a questionar, debater e conversar sobre um assunto até então tabu.

Sembene, mais uma vez, dá a conhecer uma África para além de toda a sua pobreza e agonia. Uma África de coragem e encanto, cujas respostas estão lá escondidas, no meio de toda a opressão à espera de serem descobertas.

 

O Rei Vai Nu

Quem dirá ao Rei, cheio da sua vaidade, que ele está na verdade nu?

Era uma vez um rei muito vaidoso que vivia rodeado de luxo num reino em que os plebeus viviam na miséria.

Conhecido pelos seus trajes extravagantes, o rei é abordado por dois aldabrões (certamente moçambicanos) que dizem ter um tecido muito belo, visto apenas por pessoas inteligentes e requintadas.

O Rei permitiu que os dois tirassem-lhe as medidas e dali a alguns dias eles apareceram com o “fato”. O Rei não via nada, mas também não queria dar a entender que não era inteligente ou requintado, por isso confirmou que o tecido de facto tinha uma qualidade superior.

Depois de fingir que vestia o fato, já que era invisível, o Rei encheu os aldrabões de elogios, que em troca aplaudiram a sua elegância. Rapidamente a notícia se espalhou: O Rei tinha um fato especial, de qualidade superior, visível apenas aos olhos de quem fosse inteligente e requintado.

Então certo dia o Rei decide sair às ruas com o seu fato especial. Todos admiraram o fato, pois não queriam passar por ignorantes até que a criançada começou a rir e a gritar “O Rei vai nu! O Rei vai nu!”, e todos se espantaram, porque de facto ele estava nu. E todos se riram dele.

O Rei fugiu envergonhado para o seu Palácio.

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O Presidente sul-africano Zuma vai nu sem alguém que lhe diga a verdade. Fonte: Brett Murray

É assim também por aqui, na vida real, nas nossas pseudo-democracias. Meio-ditaduras. Os nossos reis estão nus. Só que ninguém lhes diz.

Segundo o mais recente relatório sobre a liberdade de imprensa, muitos governos têm usado estratégias mais subtis para ameaçar e intimidar os cidadãos de modo a evitar críticas.

Em África, apesar do avanços nos anos mais recentes ainda temos um longo caminho para fazer.

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A investigadora é acusada de assédio moral contra o Presidente e a Primeira-Dama. Fonte: The Guardian

Esta semana, a activista ugandesa Stella Nyanzi questionou na sua página de Facebook, o que terá sido das crianças que apontaram o óbvio.

Será que foram mortas por ordens do rei? Será que a multidão voltou-se contra elas e tentou fazer com que elas vissem as roupas invisíveis por terem medo do rei? Ou receberam o amor dos amigos? O que acontece a quem diz a verdade em regimes maléficos?

Com um PhD em Antropologia Social, Stella Nyanzi é investigadora nas áreas de sexualidade; saúde sexual e reprodutiva; racismo e medicina alternativa, entre outras.

No Uganda, onde o Presidente Museveni ocupa o mesmo cargo há mais de 30 anos, Nyanzi já foi presa várias vezes por protestos pacíficos e pelas críticas severas ao regime.

Em Moçambique, pelo trauma dos conflitos vividos, temos muito medo de falar, pois não queremos mais violência. A sociedade como um todo promove o silêncio e entretenimento que distraia e não questione o status quo.

No entanto, há sempre quem tenha coragem de levantar a voz. Uma dessas pessoas é o rapper Azagaia, famoso pela música de intervenção que faz.

Depois das manifestações populares de 2008, o músico lançou a música “Povo no Poder” que resultou numa intimação pela Procuradoria Geral da República por supostamente “atentar à segurança do Estado” e “incitar a violência”.

Nos anos mais recentes jornalistas; investigadores; juristas; seqüestradores foram assassinados em circunstâncias duvidosas. É o exemplo de Gilles Cistac, um jurista, baleado em 2015 ao entrar num táxi na cidade de Maputo.

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Gilles Cistac entra para a lista de pessoas assassinadas em Moçambique por motivos políticos. Fonte: The European Magazine

Tal como eles, um pouco por todo o mundo, as liberdades de expressão dos cidadãos são cada vez mais limitadas.

Em Angola por lerem e debaterem um livro, activistas foram presos e julgados no que ficou conhecido como o caso 15+2.

No entanto, no mesmo país recentemente os deputados decidiram importam carros de luxo no valor de mais de 75 milhões de dólares americanos. Simultaneamente, num hospital da capital, Luanda, as mulheres grávidas e recentes mães são obrigadas a partilhar as camas ou dormir no chão.

Os reis estão mesmo nus. E ninguém faz nada.

Em “democracias” frágeis, como grande parte das democracias africanas, as ameaças a quem questiona quem está no Poder são evidentes.

Até quando deixaremos o medo travarem as nossas vozes?

 

Primeiro te amam. Depois te matam.

Em todo o mundo homens heterossexuais matam as suas parceiras em nome do amor. 

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Karabo sofria abusos frequentes do namorado. Fonte: Sunday Times SA

A jovem Katabo Mokoena, sul africana de 27 anos foi encontrada morta, com o corpo totalmente desfigurado, após 10 dias de busca.

A sua cara foi desconfigurada com ácido, e logo a seguir, o seu corpo foi incendiado com o auxílio de um pneu. O seu namorado confessou ter mutilado o seu corpo, embora negue o assassinato em si.

Segundo fontes, ele era um moço do bem, bastante simpático que tinha conquistado até a confiança da família.

No entanto, quando estavam apenas os dois, ele era um homem abusivo, e que a própria namorada já tinha aberto queixa contra ele.

Na África do Sul o risco de feminicídio é dos mais altos do mundo. É o quarto país do mundo em que as mulheres estão mais vulneráveis a serem assassinadas.

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Karabo entra na lista extensa de mulheres assassinadas pelos parceiros na África do Sul. Fonte: Drum SA

Os índices de feminicídio em todo o mundo são assustadores.

Em Moçambique no ano passado, dois casos chamaram a atenção do público em geral à problemática da violência doméstica. Foi o ataque sofrido por Josina Machel, onde a vítima perdeu a vista no olho direito e o assassinato de Valentina Guebuza nas mãos do seu marido.

Este ano, a violência doméstica em Moçambique assumiu outra cara ao se popularizarem casos de mulheres que mataram os seus parceiros. Mas estes casos são de longe marginais, quando analisamos o grande volume de casos em que as mulheres são as vítimas.

Embora seja pertinente apontar a masculinidade tóxica como o ponto central para a problemática e aliarmos isto ao contexto social em que vivem muitas famílias moçambicanas, é igualmente importante falarmos do nosso conceito de amor.

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Romantismo, paixão e atração sexual não são sinónimos de amor. Fonte: Organizando o Caos

No seu livro “Vivendo de Amor”, bell hooks argumenta que não temos uma definição saudável de amor. Existe uma confusão entre amor e fraqueza; atracção sexual; possessão enquanto na verdade para haver amor, é preciso honestidade; respeito mútuo, cuidado e compromisso.

 

Nesse sentido não pode haver verdadeiramente amor num contexto de poder, pois para tal tem de haver submissão de uma das partes. E quando uma das partes é submissa, a possibilidade de se tratarem como iguais termina.

Para mais, a autora defende que o amor deve ser uma escolha.

Em relações de família, amizade, o amor deve ser voluntário e não uma obrigação. Mas pelo contrário, desde a nossa infância somos condicionados a “amar” as pessoas do nosso meio, seja por gratidão ou laços sanguíneos.

Muito do desespero que juventude sente a respeito do amor, vem da crença que eles estão a fazer tudo certo, mas o amor ainda não aconteceu. O esforço para amar e ser amado produz stress, conflito e descontentamento perpétuo. – bell hooks

E porque o nosso conceito de amor está intimamente ligado a esse esforço e a essa impaciência, olhamos para as nossas relações como formas de tapar os nossos vazios e alimentar o nosso ego.

É daí que vem também o sentimento de posse de outrém, que uma vez perdido, procuramos atirar a culpa a factores externos sem reconhecermos o nosso papel e o acordo estabelecido entre as duas partes.

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Amor em tempos de feminismo. Fonte: Capazes

Na cultura pop, seja em músicas ou em filmes, é-nos alimentada essa imagem que prescreve os papéis de cada um dentro de uma relação romântica. Especialmente quando se tratam de relações heterossexuais.

Segundo esse ideal, o homem é o conquistador e a mulher a conquistada. É o homem quem detém o poder e ela que se submete ao poder dele.

Estes padrões, quando aliados a outros factores já mencionados e discutidos, como o conceito de masculinidade e o desamparo social, cria condições férteis para o estabelecimento de relações tóxicas, nada saudáveis, marcadas por disputas entre as partes para haver um dominador e um dominado.

Ninguém mata por amor. O que mata é o poder.

Ruanda, para sempre

Um olhar sobre o filme “Sometimes in April” (Abril Sangrento) de Raoul Peck, que conta como o genocídio de Ruanda mudou para sempre a vida de dois irmãos. 

O filme começa com imagens lindas e a voz sensual de Idris  Elba a descrever o Ruanda e o clima que se faz sentir em Abril, o mês que marca o início da época chuvosa. É em Abril, ao som do gotejar dos céus que Augustin, interpretado por Idris Elba, lembra-se da crueldade do ser humano e do enorme vazio que sente.

Augustin é um jovem militar em 1994 casado e feliz com dois filhos quando subitamente a tensão entre os tutsi e os hutu aumenta. A sua esposa, uma mulher tutsi, teme pela sua vida e pela proteção da sua família enquanto Augustin, cego pelos seus privilégios não vê a urgência dos seus medos.

É um filme violento e agressivo que sem rodeios nos mostra o que é um genocídio aos olhos de quem o viveu.
No Ruanda , em apenas 100 dias, isto é, pouco mais de três meses, aproximadamente um milhão de pessoas tutsi foram assassinadas por conterrâneos hutu.

 

Augustin e Honoré são dois irmãos em lados opostos no conflito.

Tamanha barbaridade só foi conseguida porque “pessoas do bem”, isto é, pessoas que à partida nunca matariam ninguém, ou desejassem a morte de alguém foram cúmplices.

É o caso de Honoré, irmão de Augustin, interpretado por Oris Erthuero, que na qualidade de locutor apoia as mensagens de ódio da sua emissora, usando o poder da sua voz para falar mal dos tutsi.

É também o caso de um Coronel, denunciado no Tribunal Penal Internacional por não impedir que os seus soldados violassem e mutilassem jovens mulheres e adolescentes tutsi.

Foram “pessoas do bem” que para salvaguardarem os seus interesses pessoais e por acreditarem que faziam parte de um grupo superior usaram do seu espaço de ação para proteger, suportar ou patrocinar actos maléficos.

Foram “pessoas do bem” que, com as armas certas – figurativa e literalmente, tornaram-se em assassinos cruéis.
O director, Raoul Peck, em entrevistas afirma que nunca foi a sua intenção fazer uma versão negra de “A lista de Schindler”(Steven Spielberg, 1993) e de faço tanto na forma como no conteúdo a sua obra consegue nos descrever um genocídio sem apelar tanto à comoção.

Em “Abril sangrento” vemos as catanas, a raiva e a ignorância de quem não tinha outra causa senão a sede de matar.

Também não temos herói, como é comum em filmes que retratam períodos de guerra/ conflito. Em genocídios não há heróis. Há sobreviventes.

Aliás, esta é também uma das grandes diferenças entre “Abril Sangrento” e “Hotel Ruanda”.

“Hotel Ruanda” (Terry George, 2004) consegue ser bonito e romântico, ainda que triste. Já “Abril Sangrento” traz-nos um olhar mais cru e mais real daquilo que foram os 100 dias de genocídio no Ruanda.

Peck não deixa o glamour do cinema tirar da realidade o seu terror. Ele mostra-nos o sangue, o ódio, as violações sexuais, a ganância e a violência sem restrições.

 

Emmanuel (esq) cortou a mão de Alice (dir) em 1994, antes de matar o seu bebé. Fonte: Observador

Ao longo da trama vemos como as Nações Unidas e a comunidade internacional no geral, ignorou a situação completamente. Vemos como os líderes ruandeses viviam longe da chama que eles tinham incendiado.

A vida dos dois irmãos é completamente alterada pela massacre levado a cabo pelos  hutu contra os tutsi. Em lados opostos desse conflito, separam-se e esquecem-se, desconhecem-se. Os seus destinos cruzam-se anos mais tarde.

Somos confrontados com a possibilidade de perdão. É possível? Somos obrigados a encarar a verdade. Que verdade? Por onde começar a sarar tamanha dor?

“Nunca mais” dizemos. Nunca mais deixaremos alguém despido da sua humanidade, exposto a um crime bárbaro. Nunca mais cruzaremos os braços perante conflitos étnicos.

E ainda assim, ainda há genocídios a decorrer em África. Ainda temos essa mesma sede de matar.

Kutchinga ou não Tchinga?

O Kutchinga é um ritual que tem como objectivo purificar a viúva, levado a cabo através de relações sexuais com um dos familiares do falecido (geralmente um cunhado).

 

Pela forma como vivenciamos a vida é comum não encontrarmos respostas para as nossas questões no mundo material. É então que nos viramos para o mundo espiritual para ter explicações para os diversos fenômenos que acontecem no nosso dia-a-dia.

Uma das grandes questões daqueles que estão vivos é precisamente a morte. O que é a morte? Como acontece? Porquê?

No caso das mulheres moçambicanas, ao perderem ao marido têm ainda uma caminhada difícil para enfrentar.

Uma vez que a Mulher representa a vida, a fertilidade, é ela a origem de todas as coisas – boas e más. Quando o seu esposo morre é necessário que se tire a morte dela, isto é, que se purifique.

Como acreditamos que a morte não é um mero acaso, mas sim resultado de uma série de acontecimentos sobrenaturais, o pagamento de dívidas que temos com o Universo, é preciso livrar os vivos das vivências dos mortos.

E a esposa, como parceira de vida, com quem o falecido partilhava os dias, é quem tem de salvaguardar a segurança de todos. A viúva tem de se purificar para evitar mais tragédias; infortúnios; azares para si, os seus filhos; netos; etc.

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O ritual de luto tem três fases. Fonte: Saberes locais

 

Kutchinga, no sul de Moçambique ou Kupitafuka no Centro é o ritual através do qual se faz essa purificação da viúva.

A morte do seu esposo é também o marco do nascimento de energias negativas/ impurezas. Estas energias (ndzaka) quando não são seguidos os devidos rituais, podem causar danos na vida da família e comunidade.

Todos os parentes e pertences do morto – mesmo aqueles que vivem longe – tornam-se impuros no momento da morte. Daí o luto. Essas pessoas devem cumprir os rituais de luto à risca, sobre a pena de consequências terríveis a eles próprios e àqueles ao seu redor.

A purificação da viúva dá-se através do Kutchinga, que deve acontecer entre 8 dias a 2 anos da morte do marido. O Kutchinga em si deve durar por volta de seis noites seguidas, durante as quais a viúva deve manter relações sexuais com um familiar do esposo, geralmente um irmão ou primo mais novo.

Em outros casos, o Kutchinga por ser realizado por um homem alheio à família. Estes homens geralmente são conhecidos na região por serem “purificadores natos”/ “purificadores experientes”/ “purificadores viris” e chegam a ser pagos pelos seus serviços.

 

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O Kutchinga precisa de uma alternativa. Fonte: Sapo

Porque na nossa cultura os nossos mortos estão sempre vivos, a partida física de um ente querido não quer dizer necessariamente o desaparecimento das suas energias; alegrias; tristezas; arrependimentos do mundo material.

Daí a invocação constante aos nossos antepassados em todos os momentos importantes das nossas vidas, pois o mundo espiritual habita no mundo material. Tendo em conta a omnipresença dos nossos antepassados, a viúva e os demais familiares podem se sentir em dívida com o falecido.

Por isso, embora haja situações em que a viúva se recusa a praticar o Kutchinga, muitas vezes o medo da maldição fala mais alto.

Para além de não ser um acto voluntário ou seja, de ser um caso de violação sexual; o ritual valida a ‘transmissão’ da viúva de um homem para o outro dentro da mesma família como se de um bem se tratasse.

Adicionalmente, num contexto de um país com uma das maiores taxas de seroprevalência no mundo, o Kutchinga é também um risco à saúde pública, motivo pelo qual a AMETRAMO – Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique desencoraja a sua prática.

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O Kutchinga é um costume ultrapassado. Fonte: Jornal Notícias

 

Mas tal como outro rituais, como por exemplo o lobolo já sofreram alterações, o Kutchinga também deve acompanhar o tempo e o espaço.

Nenhum ritual está imune a actualizações. Pode-se fazer a purificação através de banhos; chás ou orações. Porquê relações sexuais? Não é esta uma forma de reforçar a submissão da mulher face à família do seu esposo?

E mais, por que um homem não passa pelo ritual do Kutchinga quando a sua esposa morre?

Há que repensar o enquadramento da tradição nos paradigmas da vida actual de modo a mantermos a nossa cultura relevante sem colocar em causa a nossa integridade e os valores pelos quais pretendemos viver.

 

Nem caixão, nem prisão!

A questão da gravidez indesejada é um tema polémico, pois inevitavelmente entra no campo da sexualidade, algo que como sociedade ainda não sabemos bem como abordar.

Uma mulher grávida que está num relacionamento estável é celebrada. Todos aplaudem a possibilidade de uma nova vida! Por vermos esta mulher dentro de um padrão aceitável aos nossos olhos felicitamos a nova vida a caminho e encorajamos a vinda de outras vidas.

Mas uma mulher grávida que não se enquadra nesse padrão é mal vista. Ela é a prova da sexualidade depravada das mulheres. Para as mulheres que optam ter os seus filhos sem um parceiro existe um estigma muito forte associado. São as chamadas “mães solteiras”, como se a palavra “mãe” presumisse por si só um estado civil.

A mensagem por detrás desta expressão é clara: mulher solteira não pode ser mãe. A mulher solteira não pode ter relações sexuais.

E é este também o debate em torno do aborto.

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Em Angola as mulheres foram à rua reivindicar o seu direito à escolha sobre o seu corpo.

Discute-se no Parlamento a penalização do aborto, sem excepções. No centro da discussão  cruzam-se questões religiosas com direitos fundamentais e situações sociais e económicas.

A proposta inicial a ser discutida em Luanda prevê com pena de prisão a interrupção voluntária da gravidez, sem nenhuma excepção. Ou seja, mesmo se a gravidez estiver a colocar em risco a vida da mãe ou se for resultado de uma violação sexual, não poderá ser interrompida. A mulher está entre o caixão e a prisão.

Independentemente do que for decidido em Angola a prática do aborto não vai parar.

A verdade é que por detrás de todo o espectáculo mulheres continuarão a interromper as gravidezes que não desejarem. O 1% que tiver condições para tal irá pagar pessoal médico para as fazer, com alguma segurança enquanto o 99% que não tiver condições para tal vai arriscar a própria vida num local clandestino.

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Os defensores da vida do feto esquecem-se muitas vezes do conceito de “autonomia corporal“.

Autonomia corporal que define a inviolabilidade do corpo humano, isto é, cabe a cada pessoa controlar o seu próprio corpo e este direito não pode ser violado.

Um dos exemplos da supremacia da autonomia corporal é a doação de órgãos. A menos que a pessoa tenha consentido em vida à doação dos seus órgãos, estes não podem ser doados. Ou seja, um cadáver tem autonomia corporal.

O mesmo se verifica na doação de sangue. Existem milhares de pessoas todos os dias a morrer em hospitais devido à falta de sangue, no entanto, cabe a cada um de nós decidir se queremos ou não doar sangue. E até podemos doar especificamente a uma determinada pessoa, impedindo que o sangue por nós doado seja utilizado por outra(s) pessoa(s).

Ao obrigarmos as mulheres a levarem as suas gravidezes até ao fim, estamos a tirar-lhes a autonomia corporal, o poder de decisão sobre o seu próprio corpo. Estamos a aceitar que elas têm menos autonomia corporal que um cadáver. Um cadáver que nem sequer vai precisar dos órgãos a serem doados para salvar uma vida em risco.

Para além disto, os mesmos defensores da vida do feto já não se preocupam com a defesa da vida da mãe ou da vida da criança.

É importante que esta mulher tenha apoio se tiver de facto uma criança para criar. E de igual modo também é essencial garantir e salvaguardar os direitos dessa criança.

Onde estão esses mesmos defensores da vida humana quando mulheres em situações de vulnerabilidade precisam de uma fonte de renda? Quando elas são espancadas e violadas? Quando são privadas de exercer o seu direito de ir e vir sem serem assediadas?

Onde estão esses mesmos defensores da vida humana quando as crianças estudam em baixo de árvores? Quando as crianças vão dormir sem ter pelo menos uma refeição por dia? Quando há crianças presas em cadeias de adultos?

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Em 2015, Moçambique passou a permitir a interrupção voluntária da gravidez até às 12 semanas. Fonte: Por Dentro de África

Por outro lado, há também uma tendência a reduzir o problema da gravidez a um problema da mulher. É verdade que o corpo é dela, e no corpo dela ela tem a decisão final, mas é de extrema importância termos conversas honestas entre homens e mulheres.

As mulheres não fazem filhos sozinhas. Os homens são 50% dessa concepção. E é preciso que abordemos este assunto urgentemente.

Recentemente, a 19 de Março, celebrou-se o Dia do Pai. Uma pesquisa divulgada pela ONU Mulheres Cabo Verde aponta que quase 60% das crianças daquele país vivem sem a presença dos pais e que cerca de 14% não têm o nome do pai registado nos seus documentos.

Acredito que em outros países as situações possam ser diferentes, tanto para melhor, como para pior – como aliás, especulo que seja o caso de Moçambique onde a fuga à paternidade é mais comum do que o que se pensa. E o que fica subjacente aqui é sobretudo a ideia de que a gravidez e a responsabilidade de cuidar e criar os filhos é da mulher.

Ou seja, ela que se vire!

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Num mundo em que a liberdade sexual das mulheres ainda é vivida de forma alienada e heteronormativa, não é de admirar que as mulheres sexualmente activas que engravidam fora dos padrões aceitáveis tenham as suas opções barradas.

A estas mulheres não é permitido decidir o que querem fazer com o próprio corpo.

“A sexualidade da mulher assusta quando não é para o consumo masculino” – Erykah Badu

As mulheres sexualmente activas que engravidam e optam por um aborto não estão à procura de uma saída fácil, pois elas sabem que isso não existe. Elas estão à procura de uma saída que não ponha em causa a sua saúde e estabilidade física, emocional e financeira.

Estão à procura de uma saída de um caminho que não foi o que sonharam. Estão a tomar controle sobre o seu corpo e a decidir sobre aquilo que melhor se adeque às suas situações.

Mulheres Que Me Inspiram

Na semana do 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, lembro-me do legado deixado pelas mulheres enteadas da História.

O dia 8 de Março é celebrado por todo o mundo como uma ocasião para lembrar o porquê das mulheres existirem e a sua importância na vida quotidiana. A data está ligada ao movimento sufragista do séc. XIX e ao movimento operário feminino do séc XX.

Por estas alturas no Ocidente se a mulher branca, de classe alta se sentia oprimida, a cidadania plena da mulher negra era virtualmente inexistente. Em larga escala o papel da mulher negra ainda era de servidão: fosse num sentido micro, como escrava doméstica ou num sentido mais amplo, na medida em que viva sobre o domínio do colonialismo europeu.

Não obstante, várias mulheres negras quebraram essas barreiras e fizeram as suas contribuições para o fim do sexismo e do racismo no mundo.

Huda Shaarawi

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Fundadora do Sindicato Feminista Egípcio e do Sindicato Feminista Árabe, Huda Shaawari foi uma líder feminista egípcia.

Ainda jovem Shaawari abriu uma escola para educar outras meninas a escrever e ler com várias línguas, como ela tivera oportunidade de aprender, e a adquirir competências para além daquilo que era permitido às meninas na época.

Depois da morte do seu esposo, ela optou por abandonar o uso do véu, algo que causou choque e descontentamento na sociedade. Mas este simples acto iniciou um verdadeiro movimento.

O seu activismo também esteve ligado com o movimento nacionalista egípcio contra a ocupação britânica.

Funmilayo Ransome Kuti

Não haverá lista sobre mulheres africanas importantes contemporâneas sem o nome de Funmilayo Ransome Kuti da Nigéria. Depois de ser criada no regime britânico, Funmilayo foi estudar em Londres, de onde regressou com mais vontade e motivação para retornar às suas raízes tendo abandonado por completo o seu nome inglês.

Fundou o Sindicato de Mulheres de Abeokuta em 1944, juntando donas de casa, académicas, comerciantes e pequenas empreendedoras para a defesa dos direitos políticos, sociais e económicos das mulheres. Este grupo chegou  a ter perto de 20 000 membros a trabalhar activamente para a defesa dos seus direitos. O seu maior feito – para além claro de ser mãe de Fela Kuti – foi ter conseguido através do trabalho do sindicato a demissão do rei Ladapo Ademola II.

Yaa Asantewaa

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Nas artes da guerra – e do amor – os africanos, ao contrário do que se aprende na escola, já tinham técnicas e estratégias mesmo antes dos europeus invadirem as suas fronteiras.

A rainha Yaa Asantewaa do povo Edweso de Ashanti (actual Gana) foi uma monarca que no início do séc. XX liderou um exercito de 5000 soldados contra as forças coloniais britânicas de modo a conseguir a independência da região.

Apesar da derrota, a coragem e liderança da rainha levaram a um movimento forte do seu povo contra as forças coloniais. Até hoje vários monumentos são erguidos em sua homenagem e ela permanece como uma figura importante da luta de libertação do Gana, o primeiro país africano a ter a sua independência.

Nehanda Nyakasikana

As superstições e a espiritualidade são elementos fortes da identidade africana. A base do pensamento espiritual e até mesmo da religião parte desse entendimento do mundo como algo holístico – físico e sobrenatural.

A figura de Nehanda Nyakasikana representa o casamento desses dois mundos. Ela foi uma líder espiritual e médica tradicional da Rodésia (actual Zimbabué) que teve um papel central na primeira guerra de libertação contra as forças coloniais britânicas entre 1896-1897.

Ao seu capturada pelos seus inimigas, ela profetizou que o seu espírito iria liderar uma segunda guerra de libertação. E foi nesta segunda guerra de libertação que o Zimbabué se tornou independente. O seu nome é o símbolo da força das crenças tradicionais africanas.

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Wangari Maathai

Vencedora do primeiro Prémio Nobel da Paz dado a uma mulher africana, Wangari Maathai foi galardoada pelo seu empenho como activista ambiental.

Fundadora do Movimento do Cinturão Verde em 1977, a queniana encorajou o envolvimento de mulheres no combate à desflorestação e lutou para proteger o direito à terra. Consciente de que o problema do ambiente envolvia questões de paz e direitos humanos, ela começou por combater o abuso de poder e as licenças de terra ilegais.

Mesmo com poucos recursos, pouco apoio e uma forte oposição, ela conseguiu gerar impacto através das alianças com organizações não-governamentais a nível regional e internacional.

No total já são mais de 50 milhões de árvores plantadas e milhares de famílias protegidas como resultado do seu trabalho.

 

Todas estas mulheres de alguma forma foram negadas pela História. Seja pela sua condição social, pelo que fizeram, por onde vêm mas sobretudo pelo que representam.

Representam possibilidades que uma sociedade patriarcal e racista não pode aceitar. Representam oportunidades da quebra de papéis de género e de raça. Põem em causa tudo aquilo que nos querem fazer acreditar que nós mulheres não podemos ser nem fazer.

Representam-me.

Mondlane, um herói improvável

Eduardo Mondlane foi o grande arquitecto da independência de Moçambique.

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Eduardo Mondlane foi fundador e primeiro presidente da Frente de Libertação de Moçambique. Fonte: Frelimo

Um simples pastor filho de um líder local, foi com o apoio da Missão Suíça que teve a possibilidade de seguir os seus estudos na África do Sul, Portugal e por fim Estados Unidos da América, onde se doutorou em Sociologia.

Cresceu, portanto, não tendo outra opção senão se consciencializar sobre a sua posição no mundo: homem, negro, africano, moçambicano. Mas ao mesmo tempo, nascia nele também a consciência de valores e direitos mínimos para a prosperidade de todos os seres humanos.

À semelhança da independência da Tanzânia (1961) e da Zâmbia/ Malawi (1964), Mondlane queria uma independência pacífica. No entanto, o Estado Português não cedeu pacificamente a independência das terras que ocupava ilegalmente.

O seu desejo pela autodeterminação do povo de Moçambique levou-lhe, em 1962, a unir todos os movimentos de libertação num só, formando assim a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e foi ele o seu primeiro presidente.

Concluindo que não seria possível alcançar a independência sem recurso às armas, em 1964 a FRELIMO começa os primeiros ataques de guerrilha. Com o apoio da Tanzânia, da Argélia e de outros países africanos e não só, Mondlane conseguiu desenhar e implementar uma estratégia sólida para derrubar as tropas portuguesas em Moçambique.

Infelizmente Mondlane não viu o seu sonho realizado. Foi assassinado a 3 de Fevereiro de 1969 – motivo pelo qual hoje celebramos o Dia dos Heróis- ao abrir uma encomenda com uma bomba preparada em Lourenço Marques pela PIDE.

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Funeral de Eduardo Mondlane, em Dar Es Salaam, Fev. 1969. Vê-se Julius Nyerere, Presidente da Tanzânia, Janet Mondlane, viúva de Mondlane e os três filhos do casal. Fonte: The Delagoa Bay

É importante referir que com a morte de Mondlane o próprio destino da FRELIMO se alterou drasticamente.

A liderança de Mondlane, um homem religioso, académico, conservador, chocava com os membros mais radicais  da FRELIMO. Mesmo na Tanzânia, onde a FRELIMO tinha a sua base e outros movimentos guerrilheiros se encontravam, vários desses movimentos se voltavam para a esquerda.

Era também da URSS que vinha grande parte do armamento e treino da guerrilha da Frelimo. No entanto, Mondlane, que tinha vivido nos EUA tinha uma posição mais pró-Ocidental. Mas a aproximação com os EUA era praticamente impossível, já que o mundo se dividia em dois blocos distintos e a quebra de alianças poderia pôr em causa todo o projecto de libertação de Moçambique.

Em meados dos anos 60, num contexto de bipolarização global, em que a disputa entre o Ocidente e o Bloco de Leste pelo domínio do Terceiro Mundo se intensificava, a posição neutra e cautelosa de Mondlane destoava do resto. Com a sua morte em 1969, há uma viragem da FRELIMO para uma esquerda radicalizada.

Por outro lado, o seu casamento com Janet Mondlane, uma mulher branca americana, não era bem vista por muitos. A relação interracial evidenciava o cosmopolismo de Mondlane como um jovem africano intelectual, mas também o colocava numa posição de “diplomata” em vez de “guerrilheiro”.

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Eduardo Mondlane era um docente com cara de guerrilheiro e um guerrilheiro com cara de docente. Fonte: Eduardo Mondlane and Social Sciences

É importante recordar Mondlane como o exímio investigador que ele foi. Como um dos primeiros africanos, e certamente um dos poucos moçambicanos que nessa altura chegou tão longe, destacou-se pela sua excelência na vida académica.

A questão racial e identidade nacional na vida social foi o seu grande objeto de estudo, tanto durante o Mestrado como durante o Doutoramento.

Como um jovem africano intelectual, ao sair da sua aldeia na província de Gaza deparou-se com um mundo marcado por choques e contrastes. As suas origens humildes, sem qualquer privilégio permitiram-lhe ter um sentido muito sólido da sua africanidade e da sua cultura.

Foi esse sentido e orgulho da cultura africana que permitiu que ele estudasse, nos E.U.A, a questão racial sem se preocupar em procurar uma identidade negra, ao contrário dos seus colegas afro-americanos. E foi esse mesmo sentido que despontou a necessidade de fazer da independência seu projecto pessoal.

Mondlane era por isso um patriota, no sentido em que tinha um orgulho muito forte das suas raízes e estava disposto a deixar (e deixou) tudo para lutar pelo seu país e também como nacionalista, pois formou um projecto de unificação de Moçambique e de formação de Moçambique como nação.

Pela sua elegância, inteligência e perspicácia Mondlane representava uma ameaça à altura dos líderes ocidentais. Era um líder charmoso, bem educado, bom orador e ciente da sua identidade e dos seus objectivos.

Mondlane seria um líder progressista que teria liderado um movimento pacífico e feito uma transição sem sobressaltos, contudo, a História quis que ele liderasse uma guerrilha impedindo-o de fazer aquilo que era o seu desejo: desenvolver Moçambique e criar uma elite intelectual capaz de governar e elevar o país.

Por não ter tido tempo de fazer tudo isso, por ter sido obrigado a abandonar esse propósito, por não ter tido a chance de ser o herói que ele queria ser, por esses e pelos outros sonhos que ficaram por realizar: Obrigada.