Tituba, a sobrevivente

Em destaqueTituba, a sobrevivente

Foi em 1692, na vila de Salem (Massachuttes, EUA) que uma onda de histeria levou perto de 300 pessoas, na sua maioria mulheres, a serem condenadas à morte por enforcamento, em decorrimento de acusações de bruxaria. Este episódio ficou conhecimento como o julgamento das “Bruxas de Salem”.

A primeira bruxa a ser acusada – e chamo-lhe assim porque ela assim o quer/ quis – foi Tituba, uma mulher negra escravizada de origem caribenha que era propriedade de um pastor da vila.

Tituba foi obrigada a confessar o seu crime. Excertos dessa confissão, retirados dos Arquivos do Condado de Essex estão no livro perfeitamente contextualizados.

É através desse testemunho que Condé devolve a Tituba a sua voz e o seu lugar na História. Esse é o único registo da existência de Tituba que vezes sem conta ouve dos seus antepassados: Tu serás a única a sobreviver.

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A escrita de Maryse Condé poderosa. Fonte: Afroliteraria

No livro “Eu, Tituba: Bruxa Negra de Salem”, Maryse Condé oferece-nos uma espécie de auto-biografia ficcional (e não serão todas as auto-biografias ficcionais?) em que Tituba, na primeira pessoa, descreve-nos os acontecimentos desde o seu nascimento até aos seus últimos dias, passando, obviamente pelas acusações de bruxaria em Salem.

Tituba não nega ser bruxa, pelo contrário, assume e se vangloria disso. É através da sua arte, da bruxaria, que se conecta com a sua ancestralidade (as suas mães e o seu pai), é também através da bruxaria que ela se conecta com o corpo, usando-se da natureza para fazer remédios.

Mas rapidamente percebe que essa palavra – bruxa – assume definições variadas e deturpadas.

O que é uma bruxa?

Percebi que em sua boca a palavra estava manchada de degradação. Como é isso? Como? A faculdade de se comunicar com os invisíveis, de manter um laço constante com os finados, de cuidar, de curar, não era uma graça superior da natureza a inspirar respeito, admiração e gratidão? Por consequência, a bruxa, se desejam assim nomear aquela que possui essa graça, não deveria ser adilada e reverenciada em vez de temida?

O entendimento da Tituba quanto a religião é como o de uma criança já que, tendo sido criada por uma velha bruxa, Mamã Yaya, ela cresceu longe das noções cristãs do mundo. Foi só ao casar-se que se deparou, pela primeira vez, com o Cristianismo.

Esse olhar virgem sobre o Cristianismo, expõe a sua ridicularidade. Se por um lado, é uma religião que adora um Deus misericordioso e justo, por outro, é também a religião que rouba, captura e tortura territórios e corpos negros.

A própria Tituba, fruto da violação que a sua mãe sofreu por um marinheiro branco quando foi raptada do Reino Ashanti e levada para Barbados, representa essa hipocrisia característica do cristianismo quando lhe é negada a própria humanidade. O seu próprio valor enquanto ser humano é questionado na sua posição de mulher negra escravizada.

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Tituba era uma mulher escravizada e foi uma das primeiras acusadas. Fonte: Aventuras na História

Ao longo do livro somos levados a encarar essa dicotomia típica do cristianismo: o sagrado vs. o profano. o branco vs. o preto. o deus vs. o diabo. o mestre vs. o escravo. o homem vs. a mulher

A palavra bruxa, usada para ofender mulheres que desafiam as normas daquela sociedade, não assusta Tituba.

Num contexto em que as mulheres eram proibidas de sair, de pescar, de caçar, aquelas que desafiavam sair do confinamento do espaço doméstico, eram vistas como endemoniadas.

E porque esse comportamento influenciava outras mulheres, estas eram mesmo bruxas e estavam a enfeitiçar as demais mulheres, desvirtuando as sociedades, semeando discórdia e desordem nas famílias.

E não é assim hoje? Tal como foi em 1692…

Tituba se orgulha em ser uma mulher conectada com o mundo físico e espiritual e capaz de usar dessa conexão para curar-se a si e àqueles à sua volta. Ela atrevia-se a contar as histórias dos seus, as fábulas e mistérios. Tituba recusa-se a abandonar a sua identidade ou a envergonhar-se ela, como era suposto acontecer durante a Escravidão.

Para além disso, era uma mulher que ‘amava o amor’, se entregando ao prazer livremente seguindo as suas vontades,  sem qualquer pudor e até contrariando os conselhos das duas mães.

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Através do relato ficcionado de Tituba tiramos da invisibilidade racista muitas personagens históricas. Fonte: Letras Pretas

As mães de Tituba representam essa energia feminina ancestral que reside em cada uma de nós. Essa energia que por vezes nos isola (mãe Abena) e por outras nos acolhe (Mamã Yaya).

A energia da qual herdamos os maiores traumas e as maiores lições: de sobrevivência, de solidariedade, de vida, de cura.

Ao longo do livro vemos essa conexão de Tituba a outras mulheres, de todas as idades, raças e classes sociais.

Condé ao conectar-se com Tituba está também a conectar-se à sua linhagem, às mulheres que abriram o caminho para que ela existisse hoje. Ou seja, é também bruxa mantendo viva a arte ancestral de contar histórias, partindo da tradição oral para a escrita, da memória para a ficção, usando a bruxaria como meio de sobrevivência.

 

 

 

 

 

 

Chimamanda, de novo

Chimamanda, de novo

Meu terceiro livro da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, desta vez “Purple Hibicus” (Hibisco Roxo).

Tive o prazer de ler este livro num vôo de 16h e não fosse por ele, não sei se teria sobrevivido à viagem!

A história segue uma família pelos olhos de Kambili, a filha de 15 anos. Apesar de ser um homem respeitado na sua comunidade, o pai é abusivo dentro da sua casa para com a sua esposa e os seus filhos.

Kambili é uma adolescente em conflito: ela idolatra o pai, admira o seu carácter e faz de tudo para ganhar o seu respeito e aprovação, mas por outro lado, também cultiva um medo profundo por ele e sabe que o que ele faz não está certo.

O título do livro vem da flor que a sua tia tinha no seu quintal em Enugu, onde Kambili e o seu irmão Jaja se tornaram livres, o hibisco roxo.

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O livro começa como um filme de suspense. Embora não saibamos ainda o que se passa, dá para sentir que algo está mal. Uma energia pesada no ar. O abuso nunca é directamente referenciado, apenas a descrição do sofrimento: os gritos, as marcas, a loiça partida e todo o trauma que permanecia.

Até o abuso de poder do Estado aparecia apenas como uma força invisível, mas omnipresente.

A religião também aparecia como uma força abusiva e opressiva.

E no olhar de Kambili, a filha mais nova, vamos descobrindo tudo isso na sua inocência. Sem as palavras certas, sem a maturidade para reconhecer as diferentes violências e sem o apoio necessário para denunciá-las.

Eugene ou simplesmente Papa, um homem defensor dos direitos humanos, um empresário de sucesso, um católico exemplar e ao mesmo tempo um esposo abusivo, um pai violento, um filho reprovável, um irmão ausente.

A tirania do pai, Papa, pode ser assemelhar até à tirania da Nigéria, como Estado: em casa, é um homem poderoso e temido por todos, que se usa do seu lugar de poder para abusar física e verbalmente de toda a sua família. E lá fora, é um homem poderoso e admirado por todos, que usa do seu lugar de poder para ajudar e desenvolver a sua comunidade.

Aliás, Papa não se diferente de muitos líderes africanos aplaudidos e premiados internacionalmente, mas déspotas impunes a nível doméstico. Os abusos de muitos desses tiranos eram conhecidos, no entanto, era conveniente ignorar as evidências pelos ganhos individuais (com especial atenção a parcerias econômicas – papo para outro dia).

E Papa, embora tentasse esconder, deixava sempre marcas visíveis do abuso que impunha sobre os seus.

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Embora mais tarde Kambili consiga encontrar as palavras certas, a sua vontade de reconciliação e aprovação são mais fortes.

Eu adorei o livro porque Adichie consegue humanizar até o pior do vilões. É fácil odiar e nos colocarmos num patamar superior, assumirmos que temos um compasso moral mais digno… A prática da empatia é um exercício doloroso. Mas com as palavras de Adichie, é possível entender e quiçá até perdoar o pai abusivo.

Se nós estivéssemos na mesma posição, seríamos diferentes?

 

Teju Cole, aqui, lá e em lado nenhum

Teju Cole, aqui, lá e em lado nenhum

Em Every Day Is For The Thief, o narrador, o nosso protagonista anónimo, é um nigeriano que após viver 15 anos nos EUA decide visitar o seu país de origem.

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O livro retrata uma Nigéria em mudança. Fonte: Cassava Republic Press

Em capítulos curtos e profundos, vamos conhecendo a Nigéria – mais precisamente a cidade de Lagos – e a própria história pessoal do narrador, a sua família e o seu percurso.

O objectivo da viagem é pouco claro, tanto para o leitor como para o narrador, o que pode ser frustrante às vezes.

O narrador contempla a ideia de voltar para a Nigéria. Por um lado, ele sente que como escritor teria bastante material e poderia ser bem sucedido centrando-se em Lagos. A vida na cidade parece ser arte por si só e precisar apenas das suas mãos para registar os momentos brilhantes que lá estão diariamente, no quotidiano das buzinas, geradores e caras que cruzam o seu caminho.

Mas por outro, falta-lhe a ligação emocional e o conforto material necessários para estabelecer uma vida em Lagos. Pelo menos o tipo de vida que o narrador gostaria de ter.

O narrador incomoda-se com os preços, os ruídos, as pessoas, os valores, etc. Por vezes parece até que ele se esforça para odiar fielmente o que torna Lagos, Lagos!

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Em “Every Day Is For The Thief” o autor explora tanto Museus como Mercados. Fonte: The Guardian

Os elogios e aplausos que o narrador faz à Nigéria são esporádicos e muitas vezes centrados em Lagos, ou em lugares específicos que, ou remetem o autor a uma lembrança de infância, ou rememtem o autor a essa ideia de “americanização” que ele tanto procura.

Um desses exemplos é o seu elogio a um recente inaugurado espaço artístico, onde crianças nigerianas podem aprender instrumentos musicais e o narrador alegra-se com a possibilidade desse espaço tornar-se a Juilliard da Nigéria.

O narrador é duro demais nas suas críticas. Muitas das suas questões podem-se resurmir a apenas uma: Por que é que a Nigéria não pode ser como os EUA?

Desde as críticas aos espaços culturais, restaurantes/ gastronomia e governo, parece que a Nigéria está sempre a um passo atrás. E mesmo a ideia de inspiração que Nigéria lhe oferece está intimamente ligada a essa suposta inferioridade, já que são as manifestações humanas de pobreza e desespero que mais despertam nele fascínio.

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O livro é uma compilação de cartaz de amor e de maldizer a Lagos. Fonte: The Financial Times

Não acredito que tenhamos de romantizar a Nigéria, mas não acho justo olharmos para Nigéria com um olhar ocidentalizado ignorando factores históricos, económicos e até mesmo geopolíticos.

Por exemplo, a crítica do narrador ao Museu Nacional da Nigéria falha ao compará-lo aos Museus em Nova Iorque, Londres e Berlim, afinal de contas, esses espaços levaram anos a estabelecerem-se como referências e, aliás, se são referências é porque também têm peças roubadas do continente africano.

No entanto, o autor não se dá ao trabalho de explicar as intrínsecas pecularidades da história recene da Nigéria, nem tão pouco de responsabilizar as potências ocidentais pelas suas interferências nos assuntos internos nigerianos, factores que permitiram que a corrupção tomasse conta de virtutalmente todos os aspectos da vida dos nigerianos.

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O autor descreve “casa” como um lugar estranho e ao mesmo tempo familiar. Fonte: The NY Times

Tendo dito isto, o livro capta a essência da vida como emigrante. A leitura é por vezes tão desconfortável e perturbadora como a própria experiência de se entender como um estrangeiro na terra que abandonou e estrangeiro na terra que o acolheu.

Ele mesmo se surpreende com a estranheza que sente ao retornar a Lagos: o calor, os sons, as músicas, etc. Lagos cresceu, mudou e ele também passou por processos de crescimento que o colocaram numa posição peculiar.

Ao ser observador e ao mesmo participante, o narrador explora os sentimentos de pertença e deslocamento tão comuns em emigrantes. É tao estrangeiro na Nigéria como deve ser também nos E.U.A.

O luto, as perdas e as saudades são constantes. Ele ocupa na verdade um “não espaço”, pois pertence a lugar algum.

Que caminhos para as nossas filhas?

Que caminhos para as nossas filhas?

“Daughters who walk this path” de Yejide Kilanko traz a história de Morayo da sua infância à idade adulta

Este é o primeiro livro da autora nigeriana Yejide Kilanko. Morayo, a protagonista, cresce no seio de uma família alargada em Ibadan, rodeada de primos e tios, para além dos colegas e vizinhos que com ela partilham as alegrias da infância ao ar livre.
Aos 12 anos a sua vida muda completamente: ela é violada por um primo. Embora ela e o primo sejam criados como irmãos, o primo ameaça Morayo e força-se a ela repetitivamente.
Enquanto a vida de Morayo parece chegar ao fim mesmo antes de começar, todo o mundo parece alheio às mudanças em si.
Por fim, ela consegue contar aos pais, que rapidamente mandar o primo, Bros T embora. Mas o trauma fica nela como uma cicatriz: sempre com ela, mesmo quando a dor desaparece, a cicatriz esta lá como lembrança.
As mulheres na vida de Morayo ajudam-lhe a viver com o trauma. Até as que se mantiveram imóveis, como a sua mãe, também carregam em si o peso de tamanha violência na vida daquela menina.
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Morato tem de enfrentar o caminho para a vida adulta sozinha. Fonte: Star Tribune
No inicio Morayo não vive bem com a sua cicatriz. Sente-se sozinha, deprimida e rejeitada. Não tem com quem falar e aos poucos vai-se afastando de tudo e de todos.
O silêncio e tabu colocam-lhe em isolamento, presa à sua culpa e vergonha. É precisamente nesse espaço de isolamento, onde em nome da tradição, moral e bons costumes, a segurança e liberdades pessoais (das mulheres) são hipotecadas em nome da paz familiar e manutenção da comunidade.
É aqui onde a rede de mulheres serve de base para o seu crescimento, especialmente a tia Morenike. Tia Morenike entende a dor de Morayo, pois ela também carrega uma cicatriz idêntica. E é o seu exemplo e a sua amizade que em muito servirão Morayo na sua jornada pessoal.
É através da tia Morenike que ela se desprende dessas correntes, tomando o seu papel e assumindo a sua verdade, não como vítima, mas sim como sobrevivente.
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Yejide Kilanko mostra que com o apoio de outras mulheres, sobreviventes podem ter a coragem para continuar em frente. Fonte: Brittle Paper
Kilanko consegue localizar a trama na Nigéria cronologicamente, não ficando alheia ao contexto da história. A autora consegue abordar temas como democracia e corrupção com naturalidade, sem tirar o foco à protagonista.
Na verdade, podemos equiparar o corpo de Morayo ao proprio país. Enganaram-se os que achavam que o inimigo dos nigerianos estava no estrangeiro, pois logo logo conflitos tribais fizeram derramar muito sangue. Da mesma maneira, o tão temido violador não foi um estranho qualquer, mas sim uma pessoa próxima, que dividia o mesmo tecto que a vítima.
A violência que Morayo sofre dentro de casa nada mais é senão reflexo da sociedade violenta em que ela vive.
Num outro momento, esta realidade mostra a sua cara. Morayo está no mercado com a tia Morenike e de repente, a caminho de casa, um camião de soldados pára e todas as mulheres e meninas correm para o mato, pois sabem que os soldados raptam, violam e mutilam mulheres à vontade, protegidos pela impunidade dos seus uniformes.
Na Nigéria – tal como em Moçambique – o pior inimigo não está lá fora, mas sim entre nós.
As tensões e tendências da sociedade reflectem-se directamente na vida das mulheres – que opções de carreira têm; que expectativas são nelas depositadas; que possibilidades existem; que ideia de sucesso carregam; que patrimônio lhes é permitido ter/ acumular; a que espaços têm acesso; etc.
Entrelaçam-se tradição, tribalismo e misoginia, na manutenção do sistema Patriarcal que ameaça diariamente a vida de tantas meninas e mulheres.
Que caminhos para as nossas filhas? Que marcas deixaremos para elas seguirem?

 

Como água

Como água
Freshwater é o livro de estreia de Akwaeze Emezi, um@ jovem autor@ nigerian@.
Este é um livro que não se enquadra em nenhum estilo específico. Não é um livro realista, não é uma autobiografia, não é um romance, não é de fantasia… Talvez o livro mais parecido com este seja Beloved, da Toni Morrison, em que o mundo físico e o mundo espiritual coabitam.
No entanto, em Freshwater, o mundo espiritual coabita não no mundo material exactamente, mas sim na consciência do mundo material. Bem, é difícil de explicar porque o livro é algo único, fantástico.
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O livro é baseado na vida de Emezi. Fonte: Granta
Freshwater segue a protagonista, Ada, desde o seu nascimento até à idade adulta. Porém, Ada não é apenas uma pessoa, uma entidade, mas sim a forma humana através da qual várias entidades se manifestam.
À medida que a história de desenrola, são nos dadas a conhecer as diferentes entidades e viajamos com o tempo – para a frente e para trás, dentro de Ada e acompanhamos os diálogos e dilemas que vivem as entidades nela contidas (ou talvez presas?).
Sim, as entidades sentem-se limitadas pela forma humana. Estão em constante negociação entre si, mas também com a própria Ada, que afinal de contas é que enfrenta as consequências dessas acções.
A Ada lida com depressão, pensamentos suicidas, distúrbios alimentares e disforia de género, entre outras questões. Embora ela não use estas palavras – isto não passa da minha interpretação – é isso que ela nos leva a concluir tendo em conta os seus sentimentos e pensamentos e os pensamentos e sentimentos das suas entidades. Mas a Ada não encontra essas palavras pra se descrever e as entidades têm uma vida própria que não se agita por isso.
O livro divide-se em camadas, tal como a própria Ada. À superfície só vemos o corpo, depois vemos as entidades e as variadas vidas que essas entidades já viveram. Seja Asughara, outras vezes St. Vincent ou até mesmo Yshwa, as entidades têm personalidades e agendas peculiares.
Partindo da mitologia nigeriana, Akwaeze Emezi traz-nos alguns provérbios, palavras e manifestações da sua própria vivência como ogbanje.
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Em Freshawater as entidades disputam a vida de Ada. Fonte: The Guardian
Freshwater obriga-nos a olhar para a nossa própria humanidade e espiritualidade. É um livro sombrio, pois obriga-nos a repensar a nossa malícia, nos demónios que há em nós e até onde somos capazes de ir para satisfazer as nossas próprias necessidades.
Em Freshwater o mal e o bem misturam-se, existe um desconforto constante por sermos expostos a esse retrato tão real e cru da humanidade. Ninguém é totalmente ou puramente bom ou puramente mau.
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Emezi é também artista visual. Fonte: Akwaeke Emezi
Por vezes Ada tenta se recompor, mas os seus espíritos nao deixam. outras vezes, os espíritos parecem ceder, mas ela se recolhe e deixa-os voltar.
O que leva os nossos espíritos maus a despertarem e a tomarem conta de nós? Quanto trauma e violência pode a nossa forma humana aguentar até ela mesma, se tornar violenta?
E podemos, uma vez afastados da nossa essência do amor e esperança, retornar?
É nesse espaço de negociação – a consciência – que somos obrigados a enfrentar a nossa podridão.
Quantos eu’s tiveram de morrer para eu sobreviver às opressões diárias a que sou exposta? Quantos eu’s tiveram de nascer?
É menos importante a situação humana da Ada – se ela trabalha, onde ela trabalha, onde ela vive, o que ela comer – e há um maior destaque pela sua situação psicologia e emocional.
Não é assim também como falamos connosco mesmos? Aquelas vozes nas nossas cabeças não sabem as nossas profissões. A depressão não quer saber se hoje está Sol. Para a euforia é irrelevante se está a chover. Pouco importa se sou homem, se sou mulher.
Como a água, posso ser calma, posso ser implacável, posso relaxar e posso agitar. Posso afogar e posso benzer. Sou a cura e posso ser veneno. Eu sou essas contradições.

Memórias e Sonhos de boll hooks em “Bone Black”

Memórias e Sonhos de boll hooks em “Bone Black”

Reflexões em torno do livro autobiográfico “Bone Black: Memories of Girlhood” da bell hooks

bell hooks é uma escritora e académica norte-americana mais conhecida pelo seu trabalho em torno do Feminismo Negro e Racismo. Em 2014 tive o prazer de ler o livro “Ain’t I a Woman: Black women and Feminism”, quando comecei o meu compromisso com literatura marginalizada.

Bone Black é uma auto-biografia muito diferente das que estamos habituados a ler. Embora siga uma ordem cronológia, o livro não procura contar as coisas tal como elas foram ou colocá-las dentro de uma estrutura temporal, mas sim compilar episódios relevantes da vida de uma menina negra nos EUA dos anos 60 em diante.
bell hooks traz-nos memórias, um pouco factuais e um pouco fantasiadas – porque afinal não nos lembramos das coisas como estas aconteceram, mas sim como as sentimos – contadas ora na primeira, ora na terceira pessoa, mostrando a sua experiência pessoal e também a dimensão cultural da sociedade em que ela estava inserida.
Nesses relatos de duas a três páginas, ela não se poupa em detalhes poéticos e coloridos que dão vida aos episódios que ela vai relatando. Estes episódios ajudam-nos a compôr uma fotografia da sua infância e, enquadrá-la na História dos E.U.A.
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É através da autobiografia que bell hooks encontra o seu espaço no mundo. Fonte: The dialectis of belonging in bell book’s Bone Black
Numa das passagens mais bonitas do livro, ela conta como ela conseguiu ter uma boneca negra.
“deep within myself i had begun to worry that this loving care we gave to the pink and white flesh-colored dolls meant that somewhere left high on the shelves were boxes of unwanted, unloved brown dolls covered in dust. i thought that they would remain there forever, orphaned and alone, unless someone began to want them, to want to give them love and care, to want them more than anything. at first they ignored my wanting. they complained. they pointed out that white dolls were easier to find, cheaper. they never said where they found baby but i know. she was always there high in the shelf, covered in dust, waiting.”// “Dentro de mim, comecei a preocupar-me que esse cuidado e amor que dávamos às bonecas cor-de-rosa e brancas significava que, em algum lugar nas prateleiras, havia caixas de bonecas castanhas indesejadas e não amadas, cobertas de pó. Eu pensei que elas ficariam lá para sempre, órfãs e sozinhas, a menos que alguém começasse a querê-las, a querer dar-lhes amor e carinho, querê-las mais do que qualquer coisa. No começo eles ignoraram o meu desejo. Reclamaram. Disseram que bonecas brancas eram mais fáceis de encontrar, mais baratas. Eles nunca disseram onde encontraram a bebé [castanha], mas eu sei. Ela sempre esteve lá no alto da prateleira, coberta de pó, esperando. ” [tradução livre]
Ela e a boneca eram iguais.
Enquanto menina, ela se sentia (e era!) diferente das expectativas nela depositadas e com o andar do tempo e o desenvolver da sua personalidade essas peculiaridades foram se intensificando.
Aos poucos ela se tornou a ovelha negra da família e foi-se isolando. Foi no seu isolamento que ela descobriu o gosto pela leitura e a possibilidade de imaginar e criar outras realidades. E, tal como a boneca, mesmo nesse isolamento, o amor sempre arranjava formas de chegar – fosse através dos livros, de pessoas ou mesmo Deus.
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bell hooks é autora de mais de 30 livros.
hooks permite-nos pensar como aquela menina pensava, ao observar o mundo e as suas contradições: a sua mãe forte e segura por um lado, mas indefesa face ao esposo. A sua amizade com o irmão e mais tarde a indiferença, à medida que ele acumula privilégios como o único filho homem. O seu amor por Deus e à Igreja, mas também o seu descontentamento por não deixarem mulheres subir ao púlpito.
Bone Black é um testemunho da vida de muitas crianças, e especificamente meninas negras: a descoberta do racismo/ colorismo; a descoberta da pobreza e outras descobertas mais engraçadas como a sexualidade ou o que é ser mulher.
Acompanhamos estes episódios sabendo da sua legitimidade e relevância não só no Passado, mas ainda mais no Presente quando somos confrontados com as mesmas questões.
Na sua escrevivência, bell hooks por fim declara-se escritora, é contando histórias que ela se encontra, onde ela pertence.

Niketche: Uma história de Poligamia… e amor!

Niketche: Uma história de Poligamia… e amor!

No livro “Niketche: Uma história de Poligamia”, Paulina Chiziane conta-nos histórias de amor e redenção.

Contado na primeira pessoa, este romance traz-nos a voz de Rami, uma mulher de meia-idade que se vê infeliz no seu casamento com o ausente Tony, um homem dos altos quadros da polícia, que passa mais tempo fora de casa com outras mulheres.

Rami é uma mulher do Sul de Moçambique, criada com os valores cristãos coloniais, que no momento de crise conjugal, procura entender melhor a cultura tradicional que desconhece.

Rami reconhece que as mulheres são vistas como as culpadas de tudo, como a origem de todos os males que assolam a sociedade e por isso, se ela desistir do casamento, embora saiba que tem motivos de sobra para tal, será acusada de ser ela a causadora dos problemas.

“Quando não chove, a culpa é delas. Quando há cheias, a culpa é delas. Quando há pragas e doenças, a culpa é delas que sentaram no pilão, que abortaram às escondidas, que comeram o ovo e as moelas, que entraram nos campos nos momentos de impureza.”

Por isso, apesar de ter uma consciência do seu lugar subalterno como mulher tanto a nível privado, no seu casamento, na sua casa, na sua família, como a nível público, na sociedade em geral, Rami não quer, à partida, desafiar as normas patriarcais que regem a sua vida.

Rami toma a difícil decisão de procurar as mulheres que tanto afastam o seu marido. Ao início é fácil ver Rami como a vítima, porém, à medida que Julieta, Luísa, Saly e Mauá vão ganhando espaço na trama, as linhas desaparecem e torna-se cada vez mais difícil identificar culpados.

Ao conhecermos as histórias pessoais de cada uma delas, os seus dilemas, as suas dificuldades, as suas lutas e conquistas, evidencia-se que elas também são produtos da mesma ordem patriarcal que “vitimou” Rami e as colocou como rivais.

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‘Niketche’ fala sobre poligamia no Moçambique pós-colonial. Fonte: Desacato

Rami decide então institucionalizar o sistema poligâmico no seu casamento, unindo-se às outras mulheres do Tony, de modo a não perder o seu marido.

Rami, Julieta, Luísa, Saly e Mauá têm visões da vida e do mundo completamente diferentes. A forma como vêem o casamento, o conceito de amor e a experiência da sexualidade oferecem ao leitor uma dimensão de pluralidade cultural, e permite-nos olhar para cada uma delas como seres completos, indivíduos distintos com as suas particularidades.

As mulheres em Moçambique – de Norte a Sul – já nascem e crescem num ambiente em que o homem é o centro do Universo e que apenas através dele, elas podem se afirmar.

Contudo, apesar dos desencontros de costumes, tradições, etnias, apesar do contexto multicultural em que vivemos, as cinco mulheres, todas de origens distintas, mostram que existe um denominador comum: a opressão.

O sistema poligâmico é por si só uma contradição no livro. Pois se por um lado, é através da instauração da poligamia que as mulheres de unem, se ajudam e criam laços entre si, por outro, é também através da poligamia que reforçam a centralidade do Tony nas suas vidas.

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Paulina Chiziane Paulina Chiziane foi a primeira escritora a publicar um livro em Moçambique: Fonte: Nau Literária

Nesta encruzilhada entre os valores modernos e os valores tradicionais, Rami descobre-se, questiona-se, alarga-se. De mulher submissa e obediente, Rami passa a olhar-se ao espelho e a assumir um papel central na sua história, na sua casa, no seu casamento.

Rami passa a ser a primeira esposa, aquela que lidera, a mana mais velha que aconselha e consola as restantes. E neste processo de resgate do amor próprio, Rami ensina as outras mulheres a fazerem o mesmo exercício e a libertarem-se das garras opressoras que lhes limitam.

Por isso Niketche não é somente sobre poligamia, é sobre a força de um grupo de mulheres unidas; sobre a necessidade de auto-aceitação e perdão; sobre o rompimento e a reinvenção de tradições; sobre o diálogo intercultural… e sobretudo sobre amor.

“— Niketche?
— Uma dança nossa, dança macua — explica Mauá —, uma dança do amor, que as raparigas recém- iniciadas executam aos olhos do mundo, para afirmar: somos mulheres. Maduras como frutas. Estamos prontas para a vida! Niketche. A dança do sol e da lua, dança do vento e da chuva, dança da criação. Uma dança que mexe, que aquece. Que imobiliza o corpo e faz a alma voar: As raparigas aparecem de tangas e missangas. Movem o corpo com arte saudando o despertar de todas as primaveras.”

Under The Udala Trees, uma Nigéria LGBT+

Under The Udala Trees, uma Nigéria LGBT+

O livro “Under The Udala Trees”  de Chinelo Okparanta retrata uma história nigeriana LGBT+

Este é um dos melhores livros que já li e escrevi um pouco sobre ele em 2016.

Há vários motivos para gostar do livro e um deles é o facto de ser  um livro africano recente que não retrata as vidas de africanos num contexto de emigração, que tem sido uma tendência entre escritores do continente.

Okparanta começa o livro de forma tímida e contida, tornando, na minha opinião, as primeiras páginas aborrecidas, cheias de metáforas e frases bonitas para escrever num caderno de anotações, mas à medida que a história avança, a leitura torna-se mais confortável e as suas frases tornam formas mais naturais.

A autora consegue retratar as experiências de Ijeoma, a protagonista, desde a sua infância à sua idade adulta. Uma mulher numa encruzilhada difícil, obrigada a escolher entre o que ela sente que é certo e o que precisa para sobreviver.

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A autora escreveu para se manifestar contra a opressão vivida pela comunidade LGBT+ na Nigéria. Fonte: The Guardian

 

Seguindo a tradição oral da Nigéria, a narrativa é inspirada pelas histórias e fábulas sobre as diferentes tribos e religiões que coexistem no país.

A puberdade de Ijeoma chega justamente no momento em que começa a guerra civil. Após a morte do pai, a mãe envia a sua filha para uma outra vila mais segura, sobre os cuidados de uma família amiga. Lá, Ijeoma vai descobrir a sua sexualidade, as suas forças e as suas fraquezas.

Decisões complicadas que nos deixam, como leitores, numa luta permanente.

Num país devastado por uma guerra civil e tensões étnicas, o luto é um sentimento constante. As ausências sentem-se ao longo de toda a narrativa. As questões de conflito e tribalismo misturam-se com homofobia, valores tradicionais e xenofobia.

Embora estes temas não sejam o centro da história, tal como na vida real, são componentes que determinam certas crenças e comportamentos. São elementos incorporados de forma tão subtil e bonita!

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Perseguições à comunidade LGBT+ na Nigéria são frequentes. Fonte: The Independent UK

O livro é um interessante começo para termos, como africanos, conversas sinceras sobre as experiências LGBT+ no continente.

Este é um brilhante retrato de histórias queer na Nigéria entre as décadas de 70 e 80, mas não deixa de ser uma história universal: pessoas queer a serem forçadas para espaços marginalizados, tanto física como espiritualmente. Pessoas queer como alvos de violência, tanto física como emocionalmente. Pessoas queer a viverem traumas todos os dias, tanto individualmente como colectivamente.

Na Nigéria, semelhante a outros países é ilegal ser LGBT+. Na base da legislação está a crença em que a homoafetividade é um conceito importado do Ocidente, uma herança nefasta do colonialismo, mas na verdade a homofobia é que na verdade foi importada.

O livro de Okparanta, um manifesto pelo direito a amar, em toda a sua beleza e magnitude, propõe um entendimento mais profundo da questão.

 

 

Perdida nas memórias de Conceição Evaristo

Perdida nas memórias de Conceição Evaristo

Becos da memórias” é um labirinto lindo para nos perdermos que se revela tão actual hoje como era quando foi escrito

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O livro é baseado nas suas lembranças da sua infância. Fonte: Itaú Cultural

Conceição Evaristo traz-nos, em “Becos da memória”, as emoções de Maria-Nova durante os anos 70, em Belo Horizonte (Brasil) quando o bairro onde vive passa por um processo de desfavelamento.

De forma envolvente e emocionante, Evaristo descreve cada rua, cada pessoa, cada história que compunham a sua favela. Nas suas mãos os becos esquecidos e ignorados ganham vida. Vidas.

Através das suas palavras, descobrimos que a favela é muito mais que um aglomerado de barracos, mais do que uma mancha na cidade, mas sim, uma cidade no seu próprio direito. Um mundo por si só.

Um mundo em que as pessoas vivem, crescem, choram, riem, procriam, educam, relembram, esquecem, morrem. Enfim! E este mundo é-nos revelado por Maria-Nova, uma jovem adolescente que se desespera ao ver o mundo e as pessoas que tão bem conhece a desaparecerem.

O desfavelamento anunciado para breve evidencia o fim de uma era para todos eles. Para onde iriam? De onde vieram? Que histórias deixariam para trás? Quais levariam com eles?

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“Escrevivência” em Becos da Memória. Fonte: Scielo

Entre a ficção e a biografia, Evaristo usa-se de Maria-Nova para narrar a sua história e dos seus, como tinha prometido ainda menina.

Este foi talvez o que mais me marcou, já que eu também, desde sempre me comprometi com a tarefa de contar histórias. Ouvi-las, registá-las e recontá-las.

Maria-Nova (ou será Conceição Evaristo?) descobre a clandestinidade da sua existência e daqueles que consigo existem naquela favela. Aliás, a própria favela é metaforicamente, a prova dessa clandestinidade, pois surge de forma aparentemente desorganizada e os seus moradores vivem de forma isolada e invisível.

As semelhanças entre favela e senzala vão-se evidenciando e a menina sente que ainda tem de se libertar.

“Maria-Nova olhou novamente a professora e a turma. Era uma história muito grande! Uma história viva que nascia das pessoas, do hoje, do agora. Era diferente de ler aquele texto. Assentou-se e, pela primeira vez, veio-lhe um pensamento: quem sabe escreveria esta história um dia? Quem sabe passaria para o papel o que estava escrito, cravado e gravado no seu corpo, na sua alma, na sua mente” (p. 138).

De nada valia aquela liberdade clandestina. Aquelas vidas na miséria. Aquela fome. Aquela saudade. Era preciso uma liberdade plena, que lhe permitisse crescer e sair daquele lugar. Daqueles lugares: Senzala e Favela.

E é desta forma que Maria-Nova, inspirada nas figuras que dentro daquela favela ainda tinham esperança, decide também encontrar o seu papel na luta pela liberdade: escrever.

A ideia da escrita como resistência, como forma de fazer estas histórias sobreviverem-lhe revela-se à medida que a urgência da mudança se intensifica.

“agora ela [Maria-Nova] já sabia qual seria a sua ferramenta, a escrita. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito abafado que existia, que era de cada um e de todos. Maria-Nova, um dia, escreveria a fala de seu povo (p. 161).

A escrita é a ferramenta escolhida para mostrar que naquele amontoado de barracos, há também sonhos, desejos, amores, paixões, planos que caminham de mãos dadas com a violência e os traumas acumulados nos becos da favela.

Naquilo que a autora chama de “escrevivência”, Evaristo traz a tradição da oralidade para o livro escrito, compilando vivências diversas e relacionando-as a complexa teia que compõe por fim a própria História do Brasil.

Maria-Nova mostra-nos o universo íntimo de Tio Totó, mãe Joana, Maria-Velha, Bondade, Negro Alírio e tantos outros, que representam assim as histórias de afrodescendentes nos diferentes espaços e tempos do Brasil.

É desta forma que Maria-Nova e Conceição Evaristo são a mesma pessoa. Menina, Mulher, Negra, Periférica, Favelada, Brasileira. No fundo, a mesma figura em pontos opostos de uma única ponte: o tempo. Entre elas apenas o sonho. Uma é a proposição, e outra a realização do dever de memória e de escrita. A grande missão contar histórias.

 

 

Eduardo Paixão, o vendedor de utopias

Eduardo Paixão, o vendedor de utopias

O olhar do escritor face as utopias vividas em Moçambique nos anos 70.

Publicado em 1972, o livro “Cacimbo”, de Eduardo Paixão descreve os últimos anos de ocupação colonial portuguesa em Lourenço Marques (Maputo) seguindo os amores e dissabores de uma família portuguesa em Moçambique.

Um importante livro na sua época, pois capta as emoções e contradições de uma geração no meio de um conflito intenso e de várias mudanças, em todo o mundo. Assim, o autor explora os conceitos de (des)colonização; socialismo/ comunismo; identidade; nacionalidade e raça.

Nota-se no seu tom que o livro é mais um manifesto do que romance, na medida em que propõe uma acção ao leitor, fazendo denúncias aos princípios ultrapassados que justificavam o Colonialismo e evidenciando a necessidade de se criar uma nova realidade para Moçambique.

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Usando-se dos personagens para representarem determinadas figuras/ valores da sociedade, o autor então vende-nos esta nova realidade, a tal utopia, re-imaginando-os.

Por exemplo, D. Emília de Sucena, representa os valores da família e a figura da mulher-mãe na sociedade colonial: zelosa; ocupada com reuniões sociais, jantares e institutos de beleza.

O seu filho, Artur, representa a revolução: a juventude activa; o inconformismo;  a fúria e desgosto de quem se vê com poucas armas para defender os seus ideais.

Também o narrador, omnisciente, serve de porta-voz para a razão. Ele é que legitima todo o fundamento ideológico ao longo da história, mostrando não só o que o personagem verbaliza, mas também o que pensa.

No entanto, ao se tornar testemunha, o próprio narrador mostra algumas contradições, pois se por um lado condena o Colonialismo e sonha com um mundo em que todas as raças possam viver harmoniosamente, por outro é incapaz de denunciar as atrocidades e a brutalidade do Colonialismo Português.

Ainda que de forma sofisticada, Eduardo Paixão, procura sempre a visão luso-tropicalista do bom colonizador português.

“O nosso tradicional multirracialismo possibilitava-nos um presente de paz e amor” (p.132)

Pela voz de Anabela acrescenta, mais tarde:

“Felizmente nós [os portugueses] não praticamos a segregação racial que leva ao ódio e à destruição.” (p. 244)

A única figura racista no livro é D. Emília, que se vê desconfortável pelo seu filho namorar com uma rapariga negra.

“Era o maior desgosto da minha vida ver o meu filho casado com uma rapariga de cor.” (p. 126)

É por isso interessante cruzar todos os discursos e imaginar a tal utopia que nos tenta vender Eduardo Paixão. Que mundo é esse em que brancos e pretos vivem harmoniosamente? Como construir esse mundo em que brancos e pretos são igualmente livres?

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Literatura colonial em Moçambique: o paradigma submerso – Fonte: USP

Eduardo Paixão, como criador também é, ele próprio, a História. Pois é através do seu olhar que desenhamos a sua época. Por isso temos de digerir essas tensões que tanto o incomodam. Será Portugal um “bom colonizador”? Como repudiar o Colonialismo Português sem ser anti-Portugal?

É esta constante comichão que sentimos ao ler “Cacimbo”: um cansativo e desesperado exercício para defender um ideal sem ferir a realidade que conhece e que o molda.

Inserir os personagens, a narrativa e o próprio autor no devido tempo e espaço, com todas as ideias, preconceitos, contradições e transformações é essencial para perceber a obra.

As utopias descritas em “Cacimbo” continuam actual na medida em que a visão colonial ainda não foi concretizada e precisa de nós, desta actual realidade para se decidir – O que é isto de ser livre, afinal?