(in)Felicidade por um fio

(in)Felicidade por um fio

No filme “Felicidade por um fio” (Nappily Ever after) Violet Jones assume o seu cabelo natural no meio de uma crise pessoal

A história de Violet Jones, retratada por Sanaa Lathan começa num escritório daquilo que parece uma prestigiada agência de publicidade.

Ela é uma mulher preta linda, bem sucedida e com a vida organizada. Vive um relacionamento estável com um moço igualmente bonito e ambicioso. Tudo parece perfeito – e aí reside o problema.

Violet é escrava dessa perfeição. Todos os seus passos são milimetricamente calculados. O namorado não pode tocar no seu cabelo. Ela acorda mais cedo que ele, para que ele nunca a veja despenteada. A sua casa, cheia de móveis brancos, reforça essa ideia pelo seu aspecto clínico.

Mas a sua vida perfeita exige dela demasiado esforço, o que gera bastante ansiedade. Como muitas mulheres, Violet sente que não basta ser só bem sucedida e ter um relacionamento bom, ela tem de se casar e tem de estar sempre bonita, enfim, deve ser a mulher perfeita.

nappily-ever-after-cinepop2
O filme ilustra bem como a ditadura da beleza e da perfeição é cruel com as mulheres. Fonte: Cine Pop

Essa pressão social no filme é representada pela mãe – uma mulher preta também – o que para mim foi um problema. Achei desnecessária a constante vilanização da mãe e acho que se perderam oportunidades para oferecer compaixão à mãe que, como mulher negra também enfrentou vários preconceitos e desafios para se aceitar e para criar a filha para ser a mulher de sucesso que é.

No entanto, a mãe aparece quase sempre infeliz com as decisões da filha e querendo impor as suas vontades e crenças.

“Felicidade por um fio” parece um filme de Tyler Perry: storyline relativamente simples em que a vida da mulher começa com uma tragédia que a obriga a emancipar-se, e essa mesma mulher apenas mais tarde realmente se cura ao encontrar o amor e aceitação de um homem. Ou seja, mulheres fortes são na verdade mulheres traumatizadas que precisam de um homem para aceitarem o seu lado mais frágil.

No caso de Violet, o momento decisivo foi uma sucessão de acontecimentos infelizes: término do namoro; perda de uma conta importante na empresa e um acidente num salão de beleza que danificou o seu cabelo.

Num acto espontâneo de loucura e rebelião, Violet decide rapar o cabelo. Inicialmente Violet é bastante insegura quanto ao seu novo visual, e procura esconder-se por detrás de turbantes até que conhece um novo moço que, auxiliado pela filha pequena, ajuda-a a aceitar-se tal como ela é.

nappily-ever-after-cinepop4
O filme é uma joia rara em termos de tema e mais uma mediocridade (pouco) original Netflix em termos de cinema. Fonte: Adoro Cinema

Para desafiar os clichês do plot, a directora Haifaa Al-Mansour, poderia ter dado à protagonista a oportunidade de cortar o seu cabelo de forma consciente, em vez de trazer essa consciência depois – poupando também o homem (!!) disso. E adicionalmente, em vez de encarregar o homem da responsabilidade de validar a decisão da Violet (e educá-la!), essa tarefa podia ter recaído sobre as suas amigas.

Aliás, na vida real é a rede de outras mulheres que passam/ passaram por experiências semelhantes que tem mais impacto no processo de auto-aceitação.

Em suma, acho o filme muito raso nas suas provocações e observações. Dentro do estilo comédia romântica segue a típica linha do “tudo está bem quando acaba bem” e que o amor supera tudo e todos, e como um filme de elenco maioritariamente preto classe média alta nos EUA, tirando o facto de tratar de assuntos capilares, não desafia noções previamente existentes no que tange a relações mãe e filha; mulher negra no mercado laboral e relacionamentos heteronormativos entre pessoas pretas.

 

Violências diárias II

Violências diárias II

Tudo começa com “Homem não gosta de mulher X” ou “Homem quer uma mulher Y”.

“Cortaste o cabelo! O que o teu parceiro acha disso?”

“Conseguiste bolsa para estudar fora. Vais deixar o teu parceiro? Vais obrigá-lo a mudar de país, deixar a carreira para te acompanhar?”

“Não podes aceitar esse emprego, senão não terás tempo para cuidar dos teus filhos.”

Às mulheres é esperado um comportamento submisso. Elas são desde cedo treinadas para tal, raramente encorajada a seguir as tuas vontades, assumir os seus ideais com convicção e autonomia.

Mesmo as mulheres economicamente estáveis, escolarizadas e com carreiras de sucesso é  cobrada a “família”. Sempre nos perguntamos se ela consegue conjugar tudo isso, caso contrário, ela está a falhar. Como mulher ela sozinha não basta.

Mulheres são socializadas para aspirarem uma relação heternormativa em que é uma personagem secundária na sua própria história. É encorajada a abdicar dos seus sonhos e metas pessoais pela “família” (leia-se marido e filhos). É pressionada a ceder a todas e quaisquer vontades do seu parceiro, independentemente de concordar, muito menos compreender.

Quando as mulheres tentam sair dessas situações são pressionadas, muitas vezes por familiares e amigos, a tolerarem e aguentarem. As mulheres que saem são tidas como “fracas”, “mulheres de pouca fibra”, pois casamento é assim mesmo, é para ser infeliz e sofrer todos os dias.

E nesse papel de subalternidade, torna-se sujeito de outrem. Propriedade alheia. O que ela quer e o que ela sonha não mais importa. A mulher não tem poder de decisão, não tem opinião, praticamente não existe. Ela nada é senão um corpo, um pedaço de carne ali especado para entretenimento do seu esposo.

É nesse espaço vulnerável que é espancada, agredida, violada e até mesmo assassinada.

Este slideshow necessita de JavaScript.

Todos os dias uma mulher morre nas mãos do seu parceiro.

Todos os dias.

Todos os dias somos violadas, espancadas, esquartejadas, assassinadas. Não é só onde eu vivo, é em todo o lado.

A violência contra a mulher tornou-se num espectáculo. Ligamos um telejornal qualquer e lá está mais um nome, mais uma mulher morta nas mãos de quem confiou, mais um número, uma cara anónima no meio de tantas outras.

Depois da notícia, uma outra coisa virá, mais ou menos sensacionalista e logo logo nos esquecemos do sucedido com aquela mulher. A vida segue.

Como sociedade nada fazemos para abordar o assunto de forma efectiva e eficaz, não trazemos soluções específicas para este tipo de violência, não procuramos respostas para fazer frente ao sofrimento de tantas mulheres.

Recentemente em Angola um novo grito, #ParemDeNosMatar fez ecoar o suplico de tantas vítimas. Foi o brutal assassinato da advogada Carolina , de 26 anos que forçou uma tão urgente conversa sobre a violência doméstica.

Entre marido e mulher mete-se a colher sim! O problema da violência doméstica é estrutural e ultrapassa o casal. É um problema que está nas nossas casas, nos gritos que vêm das casas dos vizinhos, nas marcas do corpo das nossas colegas e amigas, no silêncio assustado daquela tia que nem sequer encara o marido nos olhos, na conivência de toda a sociedade que aumenta o volume do som para abafar o grito de socorro que vem da rua.

Todos os dias uma mulher morre nas mãos do seu parceiro.

Todos os dias.

 

 

 

 

 

Vovó Kimpa

Vovó Kimpa

Relembrando Kimpa Vita, profetisa africana do Reino do Kongo, assassinada no séc. XVIII pela Igreja Católica

Kimpa Vita nasceu no Reino do Kongo, filha de uma família nobre e foi baptizada ainda pequena como Beatriz.

Desde a sua infância que apresentava sinais de ser uma pessoa especial e foi treinada como Nganga Marinda, uma curandeira capaz de curar com o poder das plantas e comunicar com o mundo espiritual.

Ainda jovem, começou a frequentar os cultos de Mama Mafuta, uma mulher mais velha, que também profetizava que se tornou sua mestre.

Num dos seus primeiros milagres, Kimpa Vita morreu e ressuscitou. Ao acordar, disse ter conversado com Deus e recebido uma missão: Acordar o povo do Kongo, unir o povo do Kongo e reconstruir a cidade de Mbanza Kongo. Como parte dessa missão, Kimpa deveria também abençoar um rei escolhido pelo povo do Kongo.

tumblr_mk52veG2sh1s25jvao1_400
Kimpa Vita foi treinada como curandeira. Fonte: African Heritages

O Reino do Kongo estava a ser ocupado por Portugal e no início do séc. XVII houve muitas guerras entre as duas forças.

Numa das guerras entre o reino do Kongo e Portugal, após a morte do rei Vita manda, o reino dividiu-se em dois, cada um liderado por uma ala da família real: Reino dos Kdompetelo e Reino dos Ndozuao.

A estrutura do reino do Kongo tinha o poder político bastante centralizado e por isso ambas alas disputavam o trono.

Ao mesmo tempo, Portugal solidificava a sua presença no reino e com isso, impunha também a sua religião.

O povo do Kongo era um povo muito ligado às suas tradições e à sua Filosofia, pelo que a Igreja Católica teve um papel importante no seu desmoronamento. Com o fim do cultos aos antepassados e com a separação do reino, o reino fragmentou-se.

O tráfico humano para a escravatura era um dos resultados das múltiplas guerras, pois os povos conquistados eram muitas vezes vendidos. Uma vez que a venda dessas pessoas trazia grandes lucros, as guerras nunca terminavam, criando assim um ciclo vicioso.

No séc. XVII a região do Kongo (actual Angola) era um dos maiores fornecedores de pessoas para a escravidão. Milhares de pessoas eram traficadas para o Brasil, Suriname e Estados Unidos da América.

O desafio de Kimpa Vita era acabar com a guerra civil e reerguer o Reino, encontrando um rei capaz de manter essa união.

mbanza-kongob-678x381
O pensamento religioso de Kimpa Vita continua actual. Fonte: Jornal de Angola

Depois da Batalha de Mbwila, em 1678 a cidade de Mbanza Kongo foi abandonada.

A cidade tinha – e até hoje mantém – um valor simbólico muito grande. Era lá onde estavam enterrados os falecidos reis e onde se localizava também a catedral. A reocupação de Mbanza Kongo representava por isso a restauração do reino do Kongo.

Kimpa começou a pedir a muitos dos seus seguidores para retornarem à capital original do reino e assim, a partir de 1705 a cidade passou a ser habitada novamente.

Até então era uma zona interdita às populações africanas.

Kimpa Vita resgatou o orgulho do povo do Kongo profetizando em Kikongo.

Reinterpretou a Bíblia, fazendo de Jesus um homem negro e disse que Deus falava com ela em Kikongo. Segundo ela, Mbanza Kongo era a antiga Jerusalém onde teria nascido Cristo e todos os profetas eram do Kongo.

Kimpa Vita se opôs à idolatração e adoração dos Santos Católicos e das imagens ocidentais promovidas pela Igreja Católica. Defendia o uso dos nomes originais do povo do Kongo, razão pela qual o seu nome de baptismo, Beatriz, nunca foi aceite por ela.

Profetizou também que, caso o povo do Kongo se convertesse ao Catolicismo acabaria dividido e ocupado, até desaparecer completamente para todo o sempre.

untitled
Kimpa Vita ‘africanizou’ os ensinamentos bīblicos. Fonte: Wizi Kongo

Kimpa Vita foi bastante perseguida, especialmente pela Igreja Católica que gradualmente ocupava um lugar importante no poder político à medida que Portugal solidificava a sua presença no território.

Sofreu várias ameaças, até mesmo no seio do seu povo devido à conjuntura da época. As diferentes alas em disputa pelo trono temiam o seu poder, tendo em conta a sua influência na época.

Aproveitando-se disso, a Igreja Católica acusando-a de heresia e feitiçaria, queimou Kimpa Vita viva em 1706.

O seu legado como uma mulher que lutou pelas injustiças do regime colonial e a perseguição religiosa que sofriam todos aqueles que não seguiam o Catolicismo mantém-se vivo até hoje.

 

Under The Udala Trees, uma Nigéria LGBT+

Under The Udala Trees, uma Nigéria LGBT+

O livro “Under The Udala Trees”  de Chinelo Okparanta retrata uma história nigeriana LGBT+

Este é um dos melhores livros que já li e escrevi um pouco sobre ele em 2016.

Há vários motivos para gostar do livro e um deles é o facto de ser  um livro africano recente que não retrata as vidas de africanos num contexto de emigração, que tem sido uma tendência entre escritores do continente.

Okparanta começa o livro de forma tímida e contida, tornando, na minha opinião, as primeiras páginas aborrecidas, cheias de metáforas e frases bonitas para escrever num caderno de anotações, mas à medida que a história avança, a leitura torna-se mais confortável e as suas frases tornam formas mais naturais.

A autora consegue retratar as experiências de Ijeoma, a protagonista, desde a sua infância à sua idade adulta. Uma mulher numa encruzilhada difícil, obrigada a escolher entre o que ela sente que é certo e o que precisa para sobreviver.

bcbc10f1-ac1d-4e7d-b8e8-680acfd89e0e
A autora escreveu para se manifestar contra a opressão vivida pela comunidade LGBT+ na Nigéria. Fonte: The Guardian

 

Seguindo a tradição oral da Nigéria, a narrativa é inspirada pelas histórias e fábulas sobre as diferentes tribos e religiões que coexistem no país.

A puberdade de Ijeoma chega justamente no momento em que começa a guerra civil. Após a morte do pai, a mãe envia a sua filha para uma outra vila mais segura, sobre os cuidados de uma família amiga. Lá, Ijeoma vai descobrir a sua sexualidade, as suas forças e as suas fraquezas.

Decisões complicadas que nos deixam, como leitores, numa luta permanente.

Num país devastado por uma guerra civil e tensões étnicas, o luto é um sentimento constante. As ausências sentem-se ao longo de toda a narrativa. As questões de conflito e tribalismo misturam-se com homofobia, valores tradicionais e xenofobia.

Embora estes temas não sejam o centro da história, tal como na vida real, são componentes que determinam certas crenças e comportamentos. São elementos incorporados de forma tão subtil e bonita!

rtx10gsn-e1524636567260
Perseguições à comunidade LGBT+ na Nigéria são frequentes. Fonte: The Independent UK

O livro é um interessante começo para termos, como africanos, conversas sinceras sobre as experiências LGBT+ no continente.

Este é um brilhante retrato de histórias queer na Nigéria entre as décadas de 70 e 80, mas não deixa de ser uma história universal: pessoas queer a serem forçadas para espaços marginalizados, tanto física como espiritualmente. Pessoas queer como alvos de violência, tanto física como emocionalmente. Pessoas queer a viverem traumas todos os dias, tanto individualmente como colectivamente.

Na Nigéria, semelhante a outros países é ilegal ser LGBT+. Na base da legislação está a crença em que a homoafetividade é um conceito importado do Ocidente, uma herança nefasta do colonialismo, mas na verdade a homofobia é que na verdade foi importada.

O livro de Okparanta, um manifesto pelo direito a amar, em toda a sua beleza e magnitude, propõe um entendimento mais profundo da questão.

 

 

Nem todos os tesouros estão no fundo do mar

Nem todos os tesouros estão no fundo do mar

Os maiores tesouros africanos estão em Museus na Europa.  

Desde o início da exploração europeia à África, Américas e Ásia que várias relíquias, tesouros e até mesmo pessoas, foram roubadas dos seus locais de origem.

No fim deste mês alguns itens da colecção de Arte Africana de Liliane e Michel Durant – Dessert irão a leilão em Paris. São artigos provenientes sobretudo da África Oriental que datam do séc. XVI – XVIII e avaliados em milhões de dólares.

Como Liliane e Michel Durant – Dessert conseguiram acumular tais tesouros é-me desconhecido, mas podemos tirar algumas conclusões sobre como esses artigos foram chegar à Europa.

220px-Benin_brass_plaque_03
Museu Britânico exibe acervo de arte africana. Fonte: Afro & Africa

Os primeiros exploradores europeus levaram consigo vários objectos como curiosidades, troféus ou testemunhos antropológicos de culturas exóticas: as roupas, comidas, estatuetas, etc.

Estes artigos foram recolhidos e acumulados ao longo dos séculos de ocupação europeia na África por exploradores, antropólogos, padres, etc e estão catalogados. São colecções inventariadas e protegidas, hoje em dia expostas em prestigiados museus ao redor do mundo.

Muitos dos grandes museus na Europa e das grandes coleções têm artefactos pertencentes a grandes impérios africanos hoje em dia extintos.

Do reino de Dahomey, onde fica actualmente o Benin, foram roubadas estátuas, jóias e até portas que estão actualmente em França.

No Museu Quan Branly, em Paris, estátuas roubadas no séc. XIX pelas tropas do general Alfred Amedee Dodds estão expostas como se tivessem sido oferecidas. Na verdade o general saqueou o palácio de Abomey, após ter vencido o rei Béhanzi e ter imposto o poder francês no reino, tornado-o assim numa colónia francesa.

 

32754137
Segundo o Benin, existem na França entre 4500 a 6000 objetos pertencentes ao país. Fonte: G1

Nessa mesma época, séc. XIX, a Inglaterra invadiu a actual Etiópia e também levou vários tesouros. Entre os mais célebres está uma coroa de ouro, levada durante a campanha Maqdala 1868.

A campanha Maqdala 1868 tinha como objectivo instituir o domínio britânico na região e após a invasão, o imperador suicidou-se. Richard Holmes foi o responsável por recolher todos os objectos de valor e mantê-los em segurança para mais tarde serem expostos em Museus Britânicos, como acabou por acontecer.

A coroa tem um valor muito grande, pois é um importante símbolo para a Igreja Ortodoxa Etíope. Para além da coroa, foram levadas também outras jóias, manuscritos e até mesmo um menino, o filho órfão do imperador cujos restos mortais permanecem no Reino Unido até hoje, embora a Etiópia já tenha pedido a sua repatriação.

crown_cafdb4436c038380e9e0c815ba0663d8-610x655
A coroa está há 146 anos na Inglaterra. Fonte: Victoria & Albert Musuem

O Museu Britânico em Londres, fundado no séx. XVIII, também tem uma vasta colecção de arte africana. No total, são cerca de 200 000 itens de vários pontos do continente, a destacar uma cabeça de latão de um soberano iorubá de Ife (Nigéria) e a ourivesaria asante (Gana) entre outras.

Facto curioso é que este Museu reúne também peças pertencentes ao extinto Império Romano, que desde 1980 são disputadas pela Grécia.

Existe em Portugal o Museu Nacional de Etnologia, que tem raras e preciosas peças africanas. Adicionalmente, existe também a Sociedade de Geografia de Lisboa, as colecções privadas (tanto de particulares como de empresas) ligadas ao comércio colonial e os próprios antiquários que têm vindo a ganhar fortunas com a comercialização de arte africana.

A colecção de Liliane e Michel Durand-Dessert é apenas um exemplo precisamente disso.

arte-africana
A alma africana no exílio. Fonte: Além Mar

Há décadas que têm sido feitas várias reivindicações no sentido de recuperar o património africano espalhado pelo mundo. No ano passado o presidente francês Emmanuel Macron disse no Burkina Faso que em cinco anos as obras de arte africana em França seriam devolvidas aos seus legítimos donos.

Em África existe uma vontade de recuperar o património perdido. Estima-se que mais de 90% dos artefactos que contam a História da África pré-colonial estejam foram do continente.

1.6.christies.1toplot1_5
Estatueta Mbembe (Nigéria) da colecção Durand-Dessert. Fonte: Blouin Art Info

Seja em Paris, Londres, Lisboa, Berlim, um pouco por toda a Europa existem milhares de artigos africanos em exposição ou leilão.

No dia 27 de Junho, em Paris, lá estará a nossa História, o nosso património, parte de quem somos, mais uma vez em hasta pública para ser comercializada.

E nós, teremos também de comprar a nossa própria Arte para retorná-la a casa?

 

Carta para Mamoudou

Carta para Mamoudou

Querido Mamadou,

Espero que esta carta te encontre bem.

Diz aos teus colegas que nós, imigrantes, levamos na mala apenas amor. É o amor à vida, à esperança, às possibilidades que nos leva a abandonar tudo e a enfrentar muros, grades e cancelas para entrar em outros países.

É o amor que nos faz limpar o chão e carregar blocos, pondo em risco a nossa própria saúde. E é o amor também que te move e que te levou até Paris.

Imagino o teu desespero ao deparares-te com o cenário: uma criança de apenas quatro ano pendurada de uma varanda e uma multidão de espectadores. Certamente alguém terá ligado aos Bombeiros, à Polícia, enfim, a alguém! É assim nos países onde as coisas funcionam: não precisamos de nos mexer muito, porque sempre vem alguém!

E afinal esse alguém foste tu! Quem diria!

Saíste do Mali ainda adolescente e de lá, ao teu passo, numa saga perigosa, quatro anos depois chegaste a França.

Gosto de pensar que, ao veres aquela criança pensaste “Eu não passei por tudo para ver uma criança a morrer assim!” e graças a ti, ela sobreviveu.

Mamoudou, a tua coragem e altruísmo são inspiradores. Mas temo por aquilo que possam fazer de ti.

black-spider-man-jenkins-buckingham
Imigrantes não deviam ter de ser Super-Heróis para merecerem respeito. Fonte: Afropunk

Embora reconheça e aplauda o teu acto heróico, não posso deixar de reconhecer também as teias de poder que te levaram até França, e fizeram de ti um cidadão de segunda-categoria.

O teu anonimato anterior ao episódio viral só evidencia o racismo estrutural em que há na França, onde um jovem imigrante não consegue um emprego digno até demonstrar qualidades super-humanas. Onde a cidadania é reservada apenas aos imigrantes que provarem de forma extraordinária que a merecem. Onde um imigrante africano apenas é digno de aplausos e respeito quando arrisca a sua própria vida para salvar um bebê, mas não quando arrisca a sua própria vida para salvar-se a si mesmo.

A narrativa actual que limita os imigrantes a ladrões, preguiçosos, bandidos é tóxica e racista. A narrativa actual que legitima a xenofobia… É só olharmos para o Brexit, para as políticas de migração na era Trump e para todos os muros que se fazem para impedir-nos de chegar ao Ocidente.

A narrativa que nos divide entre os bons e os maus imigrantes. E como tu Mamoudou, passaste para o lado dos bons. Tu agora já nem sequer és imigrante, és um cidadão francês. Tu agora falas com Presidentes.

Mas cuidado, não deixes que te usem como ferramenta para justificar os seus preconceitos, a sua afrofobia, porque nenhum ser humano, nenhum africano precisa de ser herói para ser bem tratado e ter o seu valor reconhecido.

7WOROZC6NYI6RNSWENWGEFHPAE
Governo Francês negligencia campos de imigrantes em Paris. Fonte: The Washington Post

Tu atravessaste perigos e oceanos, traficantes e ladrões e finalmente chegaste a França. Sem documentos e contando apenas com a generosidade daqueles que, como tu, se alimentavam apenas dos seus sonhos, vivias nos apertados arredores de Paris e aceitavas os poucos (e precários) trabalhos a que tinhas acesso.

Por isso não aceites a hipocrisia e cinismo de quem hoje te acolhe de braços abertos, contudo, aprova políticas repressivas contra imigrantes e especialmente contra imigrantes sem documentos.

Quando vemos um jovem imigrante como tu, muitas vezes é a matar ou a morrer, nunca a salvar ou a nascer.

Quando vemos um jovem imigrante como tu, muitas vezes vemos essa força física exibida de forma selvagem, como um defeito e tu mostraste que essa força física é na verdade um sinal de excelência e fonte de bravura.

Quantas vezes a força física dos corpos negros não foi usada para justificar a nossa exploração? Para deslegitimar as nossas conquistas?

7742430_803ae032-635d-11e8-93a7-968806526ab9-1_1000x625
Mamoudou Gassama ganhou um estágio no Corpo dos Bombeiros de Paris. Fonte: The Guardian

Poucos de nós teríamos conseguido fazer o que fizeste. Poucos, mesmo que conseguíssem, talvez nem o tentassem. Por isso, parabéns!

Tu nos representaste na nossa forma mais nobre, delicada e ao mesmo tempo veloz e forte. Obrigada!

Espero que, na plataforma que agora tens, encontres um espaço para que a tua voz seja ouvida e para que outras vozes, que durante muito tempo foram silenciadas, possam também usá-la para que a sua humanidade seja reconhecida.

Com os melhores cumprimentos e um forte abraço,

Eliana N’Zualo

Sou mulher e sou moçambicana

Sou mulher e sou moçambicana

No dia da Mulher Moçambicana é importante refletir sobre o que nos torna quem somos. 

É a 7 de Abril, em homenagem a Josina Machel que celebramos o Dia da Mulher Moçambicana. Esta é a data da sua morte, do seu derradeiro sacrifício, e daí tamanha homenagem.

Mas tenho estado a pensar muito sobre o que é ser uma mulher; uma mulher em África; uma mulher em Moçambique é uma Mulher Moçambicana. O que é que faz de mim o que sou? Que partes me ampliam? Que partes me limitam?

Não sei… Mas sei que sou mulher e sou Moçambicana.

  
Mulher que usa roupa curta não presta. É puta. Mulher com muitos amigos homens é oferecida. É puta. Mulher não pode vestir o que quiser, senão é mal interpretada. É puta. Mulher não pode sair para beber um copo e dançar. É puta. Mulher não pode fumar. É puta. Mulher não pode ter quantos parceiros bem entender. É puta. 

Sou puta. Sou mulher e sou Moçambicana.

Mulher que estuda muito não serve para casar. É rebelde. Mulher que expõe a sua opinião não tem respeito. É rebelde. Mulher que vive a sua vida consoante os seus objectivos pessoais quer ser homem. É rebelde. Mulher que se coloca em primeiro lugar na sua vida não está boa. É rebelde. Mulher que se recusa a ser submissa não vai ter um casamento duradouro. É rebelde.

Sou rebelde. Sou mulher e sou Moçambicana. 

Mulher que não segue nenhuma religião tem marido espiritual. É feiticeira. Mulher que fica viúva e não segue os rituais de luto tradicionais quer dar azar à família. É feiticeira. Mulher que tem problemas de fertilidade não pode ser esposa. É feiticeira. Mulher que vive sozinha de forma independente tem algo de errado. É feiticeira.

Sou feiticeira. Sou mulher e sou Moçambicana.

Mulher que dorme muito não sabe gerir uma casa. É preguiçosa. Mulher que não sabe cozinhar vai matar os filhos e o marido à fome. É preguiçosa. Mulher que não fica na cozinha com outras mulheres a cozinhar e falar das lides da casa/ família, não é mulher ainda. É preguiçosa. Mulher que não tem sempre o cabelo arrumado, a maquilhagem feita, não se depila, não se “cuida” é feia. É preguiçosa.

Sou preguiçosa. Sou mulher e sou Moçambicana.

  
Sou uma mulher Moçambicana a viver neste corpo, neste espaço, ocupando um certo lugar na sociedade e exercendo determinados direitos e deveres. 
Veremos este ano, como já é hábito, homenagens bonitas dirigidas a nós, mulheres moçambicanas.

Guerreiras para cá. Mães para lá.

Nossas heroínas. Batalhadoras.

Blá. Blá. Blá.

Mas estas homenagens nada são senão palavras sem nenhum sentido real e sincero que se possa aplicar no nosso dia-a-dia. Afinal de contas Passamos a vida a ouvir cobranças e exigências, a ter de provar a nossa autenticidade. 

Só é Moçambicana se se vestir assado e se falar cozido. Mulher de verdade não faz A, não aceita B. Se queres ser uma mulher de valor, tens de seguir este caminho e não aquele.

Não fica bem uma mulher que não usar capulana. Uma mulher que se preze deve saber usar o pilão e o ralador de côco. Mulher de verdade tem de ter filhos e têm de serbiológicos. Tens de provar que és mulher quando estás entre outras mulheres, especialmente se forem da família do teu parceiro/a. 

 

autoria: Malangatana
 
O 7 de Abril é de todas nós. Das putas. Das rebeldes. Das feiticeiras. Das preguiçosas. Daquelas que já se foram e das que ainda estão por vir.

Uma revolução se aproxima. 

Somos mulheres e somos moçambicanas. 

Há dias assim

Há dias assim,

Invernos longos e frios

Arrastando a massa por dever.

Abrindo os olhos sem nada ver.
Há dias assim

Muitas páginas em branco para enfrentar,

Todos os santos à espera no altar.

Fugir para onde,

Para que lugar?
Há dias assim.

Tempo é tempo sem fim.

Escrever é chorar palavras,

Libertar as dores da cadeia.
Há dias assim.

Fim.

Era uma vez um final feliz

Queria ser uma princesa bonita, como nos filmes, mas na sua torre fazia muito frio.
Lá de cima ninguém a tocava e ela também não tocava ninguém.
Queria ser uma princesa bonita e perfeita, por isso deixava-se estar na sua torre à espera do prometido príncipe.
Os seus olhos passeavam pelos picos das árvores e pelas cores das flores, mas as suas mãos continuavam vazias.
O vento subia as escadas aos berros, invocando espíritos que ela desconhecia. À noite as portas batiam numa sinfonia dançante e ela ouvia vozes desafinadas em louvor.
Tinha muito medo.
Queria ser uma princesa bonita e perfeita e delicada e na sua torre ficava, de pé à janela. Durante o dia falava com os pássaros, à noite com os seus fantasmas, mas nunca com o prometido príncipe. Sempre à espera dele.
Da torre dava para ver toda a cidade, os vales verdes e todos os rios que regavam as flores e florestas.
Dentro da torre era calmo.
O silêncio tomava conta de todos os cantos do espaço, não fosse pelas canções dos fantasmas que a atormentavam.
As paredes eram brancas, ou sem cor. Sei lá. Que diferença fazia?
A torre era uma extensão de si mesma. Um local meio abandonado à espera do calor de um amor e das borboletas da barriga para enfeitar as janelas.
A torre: bonita, perfeita e delicada, mas sem luz própria, dependente do humor do Sol para clarear as suas manhãs.
Um dia decidiu sair da Torre para apreciar de perto o lindo jardim que se tinha formado em baixo da sua janela.
Buganvílias amarelas trepavam as altas paredes da torre e alguns tentáculos se aventuravam numa tentativa de caminhar sozinhos. Ao seu lado, um pequeno arbusto se erguia, meio desengonçado, mas sem desistir.
Os pássaros cantavam alegres, e as abelhas zumbiam livremente, distribuindo beijos pelas flores. Parecia que tudo e todos lhe davam as boas-vindas.
Primeiro sentou-se à porta e respirou o ar de baixo. Ali, tão perto da relva, dava para ver, entre as folhas verdes esticadas para cima, a cor escura da terra. Era quase preta e estava húmida, protegida pelas flores e raízes que nela se apoiavam.
Como é que a mesma terra que sustentava a monstruosa Torre, também servia de casa para aquelas delicadas plantas?
Lá de cima não dava para ver esses detalhes.
Ficou ali sentada, com a cabeça apoiada à entrada a observar apenas. A sombra da Torre ia fugindo de si, e os seus pés já doíam, pedindo movimento. O seu sangue ali parado queria sentir a terra de perto.
Então levantou-se.
Começou a andar e sentiu cócegas nos pés, da relva que lhe ia recebendo os passos alegremente. Só parou quando viu um tapete de jacarandás e ali se deitou.
Quando olhou para cima viu os ramos e neles pequenas folhas, que por sua vez formavam outra folha maior.
Ao seu lado, viu uma flor lilás grande e perfumada a olhar para si e ela também olhou para si própria, princesa e pensou na Torre e nos seus fantasmas. Lembrou-se do escuro e do silêncio da sua espera prolongada.
Decidiu não se levantar hoje. Estava feliz.
Ia ficar por ali durante a noite, talvez até para sempre.

Wangari Maathai na primeira pessoa

Wangari Maathai na primeira pessoa

Foi há 13 anos atrás que Wangari Maathai se tornou na primeira africana a ser premiada com o Prémio Nobel da Paz pelo seu trabalho como ambientalista.

Maathai lutou pela liberdade e paz no Quénia usando o Ambiente como ferramenta para tal.

A sua abordagem multidimensional interligava abordagens científicas, ambientais, e culturais, lembrando as comunidades rurais daquilo que eram as tradições para a conservação da terra.

Estas tradições, que ao pouco foram se perdendo, sobretudo pela influência do capitalismo e do colonialismo, estavam muito ligadas à preservação e respeito pela Terra.

Na sua autobiografia “Unbowed”, percebemos como a sua teimosa dedicação e o seu sentido forte de compromisso foram o seu Norte e o seu Sul para a tomada de decisões.

22281823_10155630428325390_243293201014592235_n

Tendo passado grande parte da infância na parte rural do Quénia, Maathai cresceu rodeada de árvores, plantas e animais.

Qual foi o seu susto, quando anos mais tarde, percebeu que grande parte desses ecossistemas estavam destruídos e que pessoas antes auto-sustentáveis, não só dependiam de doações para se alimentar, como também não tinham condições para plantar os seus alimentos.

Muito do conhecimento foi-se perdendo com o passar do tempo e, muitas áreas aráveis tinham sido cedidas para grandes plantações, como por exemplo do chá.

Foi então que começou um movimento ingénuo e isolado, em 1977, o Green Belt Movement, no sentido de reflorestar essas zonas e resgatar todo o conhecimento que já existia.

Este movimento começou primeiramente por dinamizar grupos de mulheres rurais – responsáveis por cultivar as terras – no sentido de plantar algumas zonas perto das suas casas.

Rapidamente, com o seu tempo e os seus sacrifícios, transformou-se numa verdadeira revolução.

portrait.-Wangari-Maathai-1
Wangari Maathai fundou o “Green Belt Movement” em 1977. Fonte: The Green Belt Movement

Não bastava apenas plantar árvores isoladamente. Era preciso perceber a importância de cada espécie; a pertinência de serem plantadas em determinadas zonas; de regá-las e mantê-las vivas, ainda que seja para as gerações futuras.

“The trees (we) are cutting today were not planted by us, but by those who came before. So we must plant trees that will benefit communities in the future.”/ As plantas que estamos a cortar hoje não foram plantadas por nós, mas por aqueles que vieram antes. Portanto devemos plantar árvores que irão beneficiar comunidades no futuro. 

E para tal era preciso também abordar questões de género; de herança de terras; de cedência de terras a indústrias poderosas; de doenças; de saúde; etc.

Estes grupos começaram portanto a exercer a sua cidadania de forma mais activa, questionando decisões tomadas no topo; exigindo explicações e conhecendo os seus direitos.

Esta abordagem despertou a atenção de quem estava no poder e ela foi obrigada a fazer grandes sacrifícios em nome da sua visão. Perseguida, presa, torturada, nada a parou de seguir os seus objectivos.

04_05_oslo
Maathai foi a primeira mulher africana com o grau de PhD e a primeira a ganhar o Nobel da PAz. Fonte: Nobel Prize

Ela soube ser uma figura pública: a estratégia; a logística; que é preciso saber para se defender e proteger de um regime opressor. O crescimento da sua imagem e da sua legitimidade, permitiram-lhe canalizar mais meios e poder para o movimento.

E mesmo antes disso, é impressionante e inspirador perceber como ela soube maximizar todas as oportunidades que lhe foram dadas: a oportunidade de começar a estudar, mais tarde, de ir para um internato de freiras, posteriormente o ensino superior nos EUA e por fim a sua posição aquando do regresso ao Quênia.

“Education, if it means anything, should not take people away from the land, but instill in them even more respect for it, because educated people are in a position to understand what is being lost.”/ Educação, se significa alguma coisa, não deveria afastar as pessoas da terra, mas incutir nelas ainda mais respeito, porque pessoas educadas estão numa posição de entender o que se está a perder. 

A sua mobilização das comunidades não se limitou somente à plantação de árvores, pois Maathai viu nisso uma oportunidade para criar sinergias entre temas como democracia; género; solidariedade.

Essa teia criada permitiu-lhe não só replicar o modelo, mas criar um impacto gigantesco (mais de 20 milhões de árvores plantadas) e deixar um legado imensurável.

Wangari Maathai fez-nos acreditar na possibilidade de um desenvolvimento sustentável antes de isso estar na moda.