O Kutchinga é um ritual que tem como objectivo purificar a viúva, levado a cabo através de relações sexuais com um dos familiares do falecido (geralmente um cunhado).
Pela forma como vivenciamos a vida é comum não encontrarmos respostas para as nossas questões no mundo material. É então que nos viramos para o mundo espiritual para ter explicações para os diversos fenômenos que acontecem no nosso dia-a-dia.
Uma das grandes questões daqueles que estão vivos é precisamente a morte. O que é a morte? Como acontece? Porquê?
No caso das mulheres moçambicanas, ao perderem ao marido têm ainda uma caminhada difícil para enfrentar.
Uma vez que a Mulher representa a vida, a fertilidade, é ela a origem de todas as coisas – boas e más. Quando o seu esposo morre é necessário que se tire a morte dela, isto é, que se purifique.
Como acreditamos que a morte não é um mero acaso, mas sim resultado de uma série de acontecimentos sobrenaturais, o pagamento de dívidas que temos com o Universo, é preciso livrar os vivos das vivências dos mortos.
E a esposa, como parceira de vida, com quem o falecido partilhava os dias, é quem tem de salvaguardar a segurança de todos. A viúva tem de se purificar para evitar mais tragédias; infortúnios; azares para si, os seus filhos; netos; etc.

Kutchinga, no sul de Moçambique ou Kupitafuka no Centro é o ritual através do qual se faz essa purificação da viúva.
A morte do seu esposo é também o marco do nascimento de energias negativas/ impurezas. Estas energias (ndzaka) quando não são seguidos os devidos rituais, podem causar danos na vida da família e comunidade.
Todos os parentes e pertences do morto – mesmo aqueles que vivem longe – tornam-se impuros no momento da morte. Daí o luto. Essas pessoas devem cumprir os rituais de luto à risca, sobre a pena de consequências terríveis a eles próprios e àqueles ao seu redor.
A purificação da viúva dá-se através do Kutchinga, que deve acontecer entre 8 dias a 2 anos da morte do marido. O Kutchinga em si deve durar por volta de seis noites seguidas, durante as quais a viúva deve manter relações sexuais com um familiar do esposo, geralmente um irmão ou primo mais novo.
Em outros casos, o Kutchinga por ser realizado por um homem alheio à família. Estes homens geralmente são conhecidos na região por serem “purificadores natos”/ “purificadores experientes”/ “purificadores viris” e chegam a ser pagos pelos seus serviços.

Porque na nossa cultura os nossos mortos estão sempre vivos, a partida física de um ente querido não quer dizer necessariamente o desaparecimento das suas energias; alegrias; tristezas; arrependimentos do mundo material.
Daí a invocação constante aos nossos antepassados em todos os momentos importantes das nossas vidas, pois o mundo espiritual habita no mundo material. Tendo em conta a omnipresença dos nossos antepassados, a viúva e os demais familiares podem se sentir em dívida com o falecido.
Por isso, embora haja situações em que a viúva se recusa a praticar o Kutchinga, muitas vezes o medo da maldição fala mais alto.
Para além de não ser um acto voluntário ou seja, de ser um caso de violação sexual; o ritual valida a ‘transmissão’ da viúva de um homem para o outro dentro da mesma família como se de um bem se tratasse.
Adicionalmente, num contexto de um país com uma das maiores taxas de seroprevalência no mundo, o Kutchinga é também um risco à saúde pública, motivo pelo qual a AMETRAMO – Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique desencoraja a sua prática.

Mas tal como outro rituais, como por exemplo o lobolo já sofreram alterações, o Kutchinga também deve acompanhar o tempo e o espaço.
Nenhum ritual está imune a actualizações. Pode-se fazer a purificação através de banhos; chás ou orações. Porquê relações sexuais? Não é esta uma forma de reforçar a submissão da mulher face à família do seu esposo?
E mais, por que um homem não passa pelo ritual do Kutchinga quando a sua esposa morre?
Há que repensar o enquadramento da tradição nos paradigmas da vida actual de modo a mantermos a nossa cultura relevante sem colocar em causa a nossa integridade e os valores pelos quais pretendemos viver.
Muito triste este ritual. Além da dor de perder um ente querido, a mulher tem que deitar-se com um estranho…
Pois é, para a mulher é um sofrimento sem fim. Mas atenção que o ritual em si, isto é, o seu conteúdo (explicação) não é triste, o que é triste é a sua forma. Porque a purificação depois da morte pode ser feita de mil e uma formas, o problema é que está-se a fazer de uma forma cruel.
Nem vou falar o que penso sobre isso!!
Só falando podemos ultrapassar os nossos problemas. Há que transformar a indignação/ raiva/ descontentamento em soluções concretas.
De certa forma isso me lembrou uma tradição judaica, posso estar falando besteira, mas se muito não me engano no antigo testamento havia algo do tipo: Ficando a mulher viúva esta deverá ser desposada pelo irmão de seu marido. Pergunto, seria esta a forma que a sociedade encarava como solução para amparar a viúva e sua família?
Certamente um dos objectivos era esse, garantir que a viúva e os filhos tinham apoio e suporte necessário para a sua sobrevivência. No entanto, esse apoio pode (deve!) ser dado sem forçar uma relação entre a viúva e o cunhado.