E agora Senhor Ministro?

Um recente espectáculo gratuito de violência nas escolas foi distribuído, via redes sociais para todo o Moçambique. Qual é a resposta do Ministério da Educação? 

Não é surpresa a inexistência de segurança no Ensino Público, mas um caso de esfaqueamento filmado e reenviado vezes sem conta desperta qualquer sociedade. Ou pelo menos devia.

O vídeo, que mostrava dois rapazes numa Escola Secundária a lutarem, ambos a sangrar, ganhou atenção especial por um deles ter sido esfaqueado sem que nenhum professor, guarda ou qualquer outro funcionário do recinto percebesse o que estava a acontecer no momento do incidente.

As deficiências; carências e lacunas do nosso Ensino Público já são por todos nós conhecidas: falta de infraestruturas que promovam o bem-estar do estudante; condições estéreis para o nascimento de ideias e mentes brilhantes; sobrelotação das salas de aula; falta de manuais escolares; escassez de professores; desistência por parte dos alunos; reprovações em massa; etc etc etc.

O cenário é tenebroso. Catastrófico.

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Crianças a estudar ao relento numa manhã de nevoeiro em Maputo. Fonte: Facebook

O Ministério da Educação parece não saber bem por onde pegar. Está mesmo complicado!

No início do ano lectivo, numa tentativa de resgatar a honra e valores de outrora, S. Excia. Senhor Ministro decidiu implementar a obrigatoriedade do uso das maxi-saias.

A medida tem como intuito melhorar o ambiente de ensino e repor a decência nas salas de aula. Ou, por outras palavras, vem devolver ao professor a sua inocência e impedir as meninas de serem violadas – sim, porque a culpa é delas.

Agora enfrentamos outra crise – dentro de todas as outras crises (as mencionadas e as ocultadas): violência nas escolas.

Quando meninas começaram a aparecer grávidas nas escolas encaramos isso como um problema nacional. Aquilo foi um vuku-vuku jamais visto! Primeiro começou-se por tirá-las do curso diurno. Depois veio essa das saias até aos calcanhares.

As pessoas saíram à rua. Gritaram. Manifestaram-se (ou quase isso). Escreveram contra e a favor. Por causa das saias até houve quem fosse deportado de Moçambique.

O Senhor Ministro até já estava cansado de proteger os pedófilos que andam aí disfarçados com batas brancas como se estivessem a ensinar – até porque há um problema de quadros, não podemos mandá-los embora.

Enfim o Senhor Ministro lá geriu a situação e agora vem esta!

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A obrigatoriedade das maxi-saias gerou polémica. Fonte: Comunidade Moçambicana

Dois rapazes foram filmados por outros colegas numa luta violenta da qual um saiu esfaqueado e apenas um dos envolvidos foi expulso e preso (supostamente). O outro certamente também irá tirar contas com a Justiça em tempo útil.

Aguardo ansiosamente a próxima medida do Senhor Ministro.

Já não se fala de um problema de dimensão nacional, embora vários alunos tenham assistido (e até divulgado) o vídeo com conteúdo extremamente violento.

Embora a escola tenha várias pessoas dotadas de poder e competências para impedir que tais episódios aconteçam.

Embora não só naquela escola, mas em todas haja episódios semelhantes diariamente.

Embora a violência seja um problema de todos nós, encaramos o ocorrido como uma manifestação isolada de um possível problema mental, familiar ou social dos envolvidos, falhando na nossa análise.

Esquecemos que a violência e a criminalidade sempre fizeram parte do nosso Ensino Público: as reguadas do professor da Primária; os roubos de canetas, livros, telemóveis e até mesmo mochilas; os abusos de bebidas alcóolicas e estupefacientes; as violações sexuais; os pagamentos para passar de classe;  etc.

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 A discussão sobre a violência nas escolas ainda é uma gota no oceano perto da dimensão do problema.

 

O Senhor Ministro tem uma batata bem quente nas mãos!

Pouco se falou ou discutiu a reabilitação destes meninos. Pouco ou nada se decidiu no que toca a medidas para garantir mais segurança aos alunos nas escolas. Ninguém se pronunciou sobre o controle de instrumentos cortantes nos recintos escolares.

E porquê? Porque vemos a violência masculina como um problema individual. É um assunto de interesse privado, que diz respeito apenas aos envolvidos e às suas famílias. Enquanto olhamos a sexualidade feminina como algo de todos. É um assunto de interesse público no qual ~devemos~ opinar.

Resultado: Obrigamos as meninas a usarem saias compridas para acabar com a gravidez na adolescência, mas expulsamos um rapaz da escola para acabar com a violência nas escolas.

O Senhor Ministro está mesmo mal!

É a cultura da violência; a cultura do estupro; a cultura do deixa-andar… A cultura de tudo menos do estudo e da dedicação. Menos da leitura e da investigação. Menos da segurança; da qualidade e do rigor.

E agora Senhor Ministro?

 

Vamos falar de cabelo outra vez?

Para além de falar das politiquices em torno da carapinha, é importante reconhecer os espaços em que esse cabelo é representado – ou não – e como essa representação é feita.

Já falamos uma vez sobre as politiquices em torno do cabelo crespo e cacheado, e como existe um padrão ideal que nós, pretos, temos de pagar com a nossa própria saúde para atingir.

Aqui em África, onde a grande maioria das pessoas tem o cabelo crespo, dificilmente vemos figuras proeminentes a usar orgulhosamente o seu cabelo natural.

Se vemos, na sua maioria, são mulheres bem mais velhas ou pessoas ligadas às artes e com um estilo excêntrico que lhes confere uma certa liberdade, interdita a nós outros, meros mortais.

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Cantora moçambicana Mingas canta com as suas dreads.

Porém, figuras da cultura pop, com as quais a juventude mais se identifica regem-se sobretudo pelos padrões ocidentais de beleza. E como tal, não só nas suas músicas, e nos seus vídeos, mas também na sua forma de vestir se inspiram nos artistas norte-americanos, sobretudo.

Seria ingénuo e até mesmo infantil ignorar a influência que tais artistas têm na construção de mentalidades.

Assumindo que são estes que dominam a música moçambicana que toca em rádios e discotecas, então o seu papel no crescimento e consciência dos moçambicanos, e especialmente nos jovens moçambicanos, é imensurável.

Se meninas moçambicanas idolatram artistas com cabelos lisos, sentirão, logicamente uma desconexão consigo mesmas. Com as suas raízes. E o mesmo para os meninos.

E procurarão estes grupos formas de afirmação de beleza que se aproximem dos modelos que idolatram. Daí o bilionário mercado da extensões capilares em África apenas. Daí o negócio dos branqueadores de pele (mas isso falamos num outro dia).

Contudo, não podemos deixar tudo nas mãos dos artistas.

Olhemos para outras figuras importantes no nosso país: os nossos professores; os médicos; enfermeiros; ministros; presidentes; etc.

Mesmo nos Estados Unidos da América, a Primeira-Dama Michelle Obama, que é uma mulher negra, não usa os seus cabelos com a textura natural. Para o seu marido, o Presidente Barack Obama essa questão é facilmente contornada, já que ele pode usar o cabelo curto sem causar choque.

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Jacob, de 5 anos, sente o cabelo do Presidente Obama. Fonte: New York Times

E em casa, o que fazemos para que haja essa aceitação? Que trabalho temos feito para valorizar as nossas raízes?

Mesmo nos espaços mais vanguardistas, há ainda a expectativa de “arrumado” (trançado; amarrado; etc). As pessoas nem reparam que isso é fruto desse padrão de beleza europeu, que tem como base ideia errada de que o cabelo natural é sinal de desleixo ou sujidade.

Há sempre um policiamento que se disfarça de preocupação ou conselho.

Esse cabelo parece estar seco, tens de hidratar. Esse cabelo está muito despenteado, tenta organizá-lo. Tenho uma dica para dar mais vida ao teu cabelo. Usa o produto X que o teu cabelo vai ficar como o da Y.

Qualquer fórum sobre cabelos naturais está cheio de receitas e truques para domar o cabelo, como se ele fosse, de facto selvagem.

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Blogueiras My Natural Sisters

Twist out. Braid out. Blow out. Length check. 4A. 4B. 4C.

Uma linguagem codificada para abordar algo tão simples: cabelo. Uns mais, outros menos encarapinhados. Uns mais, outros menos longos. Uns sempre, outros nunca no lugar.

Temos de desconstruir a ideia de que o nosso cabelo natural vem na forma errada. Ou na textura errada. Ou no comprimento errado.

E essa desconstrução leva o seu tempo e requer muito trabalho. Talvez mais do que as pessoas estejam dispostas a dar.

Porque não basta perder uma manhã inteira a lavar o cabelo e aplicar produtos caros para ter um cabelo crespo q.b., e depois perguntar a uma mana de afro:

O que se passa com o teu cabelo?

 

Em defesa da(s) Winnie(s)

 

Winnie Madikizela-Mandela é uma figura que divide opiniões. Há quem a ama e quem a odeie, mas uma coisa é indelével: a marca que esta mulher deixou na luta contra o Apartheid.

Como mulher jovem quase-viúva, Winnie posicionou-se sempre como alguém disposto a arriscar tudo para ver a África do Sul livre do regime do Apartheid.

Sempre foi vilanizada pelo regime, pois era uma mulher que afrontava as autoridades, nunca se tendo vergado perante as suas exigências. Aliás, o próprio Congresso Nacional Africano (ANC) também se serviu dessa imagem de vilã para afastá-la, tirando-lhe os louros da sua luta.

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Winnie é considerada Mãe da Nação na África do Sul

Winnie está longe de ser perfeita. Cometeu os seus erros e admitiu tais erros.
A abordagem de Winnie era mais radical, apelando à violência para pôr um fim definitivo ao Apartheid.

Podemos discordar desta abordagem, mas não há como negar que o uso ou a ameaça de violência é vital para o sucesso de qualquer movimento de libertação. Nenhum regime opressor caiu por se apelar à sua boa vontade e/ou bom senso.

E na África do Sul foi muito pela pressão feita por grupos radicais – muitos aliados ao ANC – e perante o prenúncio de uma guerra civil que o Apartheid terminou. E terminou sobre a condição de fazer de Mandela presidente pois sabiam que nenhum outro líder do ANC seria capaz de assumir uma posição tão pacífica.

Nomes como o de Winnie não aparecem nos livros de História como deve ser.

Na África do Sul: Albertina Sisulu. Fatima Meer. Ruth First. E tantas outras!

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Mulheres sul-africanas protestam durante o Apartheid.

No seu livro 491 Days: Prisoner Number 1363/69, Winnie relata como a sua saúde se deteriorou na cadeia, tanto a nível físico como mental. Ela chega a ficar meses com o ciclo menstrual interrompido e com ataques de pânico constantes, sem assistência médica alguma.

Passa por tortura. Fica em confinamento solitário por mais de 12 meses. Não tem contacto com as suas filhas ou com o marido. Por vezes é privada de falar com o seu advogado. Pouco ou nada come. Enfim!

Winnie foi levada ao limite. E sobreviveu para ver uma África do Sul livre.

Tal como Winnie Madikizela-Mandela, foi também “Mãe da Nação” Josina Machel .

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Josina Machel foi uma das fundadoras do Destacamento Feminino

Josina Machel foi uma combatente na luta de libertação de Moçambique.

Entre os seus 18 e 20 anos foi presa e perseguida por seguir o sonho de combater as forças Portuguesas. Percorreu cerca de 2000km para chegar à Tanzânia, onde passou por treino militar e se juntou à Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO).

Foi ela que, em finais da década de 60, fez questão de posicionar as mulheres como parte integrante da luta pela independência e não meras espectadoras.

Ao morrer aos 25 anos, antes da independência, deixou um grande vazio não só no coração de Samora Machel, seu esposo e futuro Presidente da República, mas também na FRELIMO onde liderava antes de adoecer, o Departamento de Assuntos Sociais.

Embora no dia da sua morte, 7 de Abril, se comemore o Dia da Mulher Moçambicana, pouco se fala e se discute o papel de Josina e os seus ideais.

Antes pelo contrário, pode-se até dizer que usa-se a data para reforçar a posição da Mulher como costela de Samora – Ups! – Adão.

As mulheres que optavam pela carreira política, à semelhança do que acontece hoje, eram recebidas de braços abertos para fazer o trabalho sujo, mas não para ocupar cargos de liderança.

Como presas políticas sofreram vários tipos de violência física característicos apenas de mulheres, para além da esperada tortura, maus-tratos, perseguição e outras formas de intimidação por parte dos regimes que elas ousaram desafiar.

E ainda assim, mesmo no seio dos movimentos que integraram era esperado um comportamento passivo. Esperamos dessas mulheres a manutenção da sua “feminilidade”, baseada na ideia de fragilidade e doçura. Perdão incondicional e amor eterno.

Mesmo casando homens na política, não lhes foi permitida uma saída ao esperado papel da mulher no matrimónio: submissão; maternidade; sociabilidade.

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Hoje está aí Dilma Rousseff, no Brasil sendo destituída num processo misógino e elitista, quase despótico. E ao mesmo tempo assistimos a ascensão de Hillary Clinton – de um background diferente, mais privilegiado -, de quem também se espera uma cara sorridente e maternal.

Às mulheres está interdito o acesso à raiva ou ódio. Muito menos ao rancor. Não podemos guardar mágoa nem podemos ficar zangadas. Senão somos ingratas. Somos loucas. Somos doentes.

Winnie foi privada de circular livremente. Não podia receber visitas. Não podia visitar o marido. Não tinha como trabalhar. Era cidadã de segunda classe no seu próprio país.

Foi lá e gritou. Lutou. Sofreu.

Winnie não é maluca.

 

 

Vamos falar de cabelo?

Para a maioria das pessoas não negras cabelo é algo trivial.

É algo tão comum e ao mesmo tempo significante como unhas: Há pessoas que gostam de unhas curtas; outras de unhas compridas. Há quem pinte as unhas e há que as deixe desnudas. Há também as opções de extensões e tratamentos para as unhas, mas de modo geral, não há um padrão forçado no que toca a unhas. E para essas pessoas o mesmo acontece com o cabelo.

Contudo para as pessoas negras o cabelo é algo muito maior que isso.

Muitas pessoas negras, em especial as mulheres, vêem-se acorrentadas ao cabelo. Se chove ela não pode andar a pé. Se tem um evento, tem necessariamente de perder horas no salão de cabeleireiro. Se tem uma entrevista de emprego, é obrigada a avaliar minuciosamente como irá apresentar o seu cabelo aos potenciais patrões. Se vai conhecer alguém novo; vai a um local diferente; tem de participar de um evento desportivo; ir à piscina; viajar; tudo isso envolve algum tipo de decisão quanto ao cabelo. Esse cuidado vai para além de vaidade. É uma necessidade.

O cabelo torna-se uma espécie de prisão.

O cabelo dos negros, seja ele crespo ou cacheado está carregado de conotações negativas. Entre as mais comuns, há o mito da falta de higiene, este recaindo sobretudo em estilos como as tranças e dreadlocks, e o mito da desorganização e desleixo, mais associado ao afro.

Existe uma pressão para as pessoas negras terem o cabelo liso, que é exactamente o inverso daquilo que cresce naturalmente nas nossas raízes. Para além do processo de alisamento de cabelo ser feito com recurso a químicos prejudiciais à saúde, é muitas vezes doloroso e dispendioso (sobretudo quando associado a extensões capilares).

Recentemente adolescentes sul-africanas ganharam fama com os seus protestos contra a discriminação dos seus cabelos naturais na escola que frequentam.

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Protesto na Escola Secundária de Pretória, na África do Sul

As meninas sofriam pressão diariamente por parte dos professores para a alisarem os seus cabelos sobre a pena de serem privadas de assistirem às aulas por causa dos seus naturais e crespos Afros.

Em Moçambique também vivemos uma ditadura dos padrões ocidentais.

No início do ano lectivo uma mãe publicou no Facebook que teve de cortar as dreads da filha que de outra forma, seria impedida de entrar na escola.

Num outro relato, um cidadão reportou que apesar de ter qualificações para tal e ter sido aceite através de um concurso público, foi impedido de dar aulas na província de Nampula por ter rastas.

Os nossos cabelos na sua forma mais natural são, vezes sem conta, alvo de ataques que nos empurram para um abismo de ódio próprio e auto-destruição.

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Mãe teve de cortar as dreads da filha sobre a ameaça de suspensão.

Estes casos evidenciam como o padrão de beleza ocidental nos é forçado desde cedo e em várias esferas sociais. Também deixa claro que o policiamento dos nossos corpos é mais importante que a nossa educação.

Isto é apenas uma amostra do racismo institucional espalhado um pouco por toda a parte. Os padrões instituídos pelo Imperialismo Ocidental continuam a influenciar aquilo que é esperado nos centros escolares e empresariais, ainda que de forma implícita.

As politiquices em torno do cabelo dos negros não são nada de novo. O cabelo afro, por exemplo, foi usado nos anos 60 pelos Panteras Negras nos E.U.A. como afirmação de identidade. Aquilo que hoje chamados de rastas e o Movimento Rastafari surgiu na Jamaica como manifestação de adoração do Imperador Ras Tafari (Haile Selassie) da Etiópia (anos 30).

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Crente Rastafari

Vivemos sobre códigos de conduta que buscam a uniformidade. A estandardização do ser humano. E o modelo padrão é o modelo ocidental (branco). Assim sendo, para que nos aproximemos desse modelo tem de haver um processo de subjugação. Temos de nos afastar da nossa Negritude.

Quando elementos da nossa Negritude – tal como o cabelo – têm acesso vedado a espaços públicos somos obrigados a abdicar de uma parte da nossa identidade.

E quando este acesso nos é vedado não pelas autoridades coloniais, mas por mentes africanas colonizadas, vemos quão longe foi o projecto imperialista ocidental.

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Vários penteados tradicionais africanos.

Não é só cabelo.

É muito mais que isso. É sobretudo o valor colocado numa ideia. A ideia de que aspectos culturais e estéticos devem se guiar por um padrão do outro lado do espectro onde me encontro. A ideia de que a validade da minha existência mede-se mediante a aproximação a um determinado padrão.

A ideia em como a minha negritude, a minha identidade tem menos valor.

Corre Semeneya, Corre!

 

Lynsey Sharp, que terminou em sexto lugar na corrida dos 800m femininos foi a primeira atleta a contestar a participação de Semeneya na corrida, afirmando que era uma desvantagem correr contra ela. 

Sharp, com todo o seu privilégio de menina branca, nascida e criada na Escócia, filha de um medalhista olímpico, treinada nas melhores Academias, tem a audácia de atribuir a sua  sexta posição, ao facto de competir contra Mokgadi Semeneya.

Semeneya, que vem de uma isolada vila na África do Sul, país onde até 1994 os negros nem sequer tinham direito ao voto, para não falar em oportunidades de crescimento pessoal e profissional, teve de enfrentar mais dificuldades para chegar ao pódio.

Insatisfeita com a sua performance, Sharp desmereceu até todo o investimento feito pelo seu país para o Atletismo.

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Caster Semeneya foi alvo de várias críticas ao terminar em primeiro lugar
Será que haveria tanto alarido caso Semeneya tivesse terminado em último na corrida? E se fosse branca como teriam reagido as suas adversárias?

Atenção que Semeneya não foi acusada de doping, mas sim de ter uma vantagem natural e injusta devido ao seu corpo.

Lynsey Sharp, que não fosse por Semeneya-  vale a pena ressalvar- teria ainda assim terminado atrás de quatro outras pessoas, ou seja, não chegaria ao pódio, sentiu-se no lugar de questionar a presença de Caster Semeneya na competição.

Jarmila Kratochvílová, a actual recordista dos 800m femininos, da República Checa não só tem um físico mais “masculino” que Semeneya, como também já foi acusada de doping, sem nunca no entanto ter sido alvo de exames ou escrutínio por parte do COI ou IAAF.

Os ataques sofridos por Caster Semeneya evidenciam o racismo ainda muito vivo no desporto até no mais alto nível.

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Jarmila Kratochvilova já foi acusada de doping, mas nunca foi provado e mantém a sua inocência
Há aqui, para além de um claro sentido de intitulação por parte de Sharp, que a faz acreditar que era seu DIREITO ganhar uma medalha, a presunção que de alguma forma, Caster Semeneya tem uma vantagem sobrenatural.

Essa vantagem sobrenatural, prende-se, logicamente com o seu corpo e alegações de hiperandrogenismo.

Mulheres negras são tidas como uma espécie sub-humana. Devido à exotificação e hipersexualização do seu corpo, há a expectativa que a Mulher Negra tenha um comportamento semi-animal.

O padrão de Mulher dominante define a Mulher Ideal como branca, cisgénero e heterossexual. De tamanho pequeno, com aspecto frágil e dócil.

É difícil para qualquer mulher viver à altura desses padrões e para uma mulher negra essa luta é ainda pior. Os nossos traços robustos; os nossos ombros e braços largos; as nossas pernas tipicamente grossas; tudo isto apresenta uma inconformidade aos critérios do Imperialismo Branco.

Porque o corpo de Semeneya não corresponde às expectativas do corpo de uma mulher – e leia-se aqui, de uma mulher branca- isso de alguma forma a coloca numa posição em que ela deveria correr contra homens.

A suposição em como o seu corpo, por ter aspectos considerados masculinos, ou na melhor das hipóteses, andróginos, darem-lhe uma vantagem injusta não só reforça a ideia que ela não é mulher, como também, desvaloriza as mulheres, visto que suporta a visão da supremacia da força e corpo masculinos.

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Mokgadi Semeneya levou para a casa o Ouro na corrida dos 800m

 

Os nossos corpos vivem à margem daquilo que se considera “Mulher”. Os nossos corpos sequer se podem intitular “femininos”.

Mas são. Nós somos. Mulheres. Negras.

Mokgadi Caster Semeneya é uma mulher.

Lá porque o seu corpo desafia os padrões pré-definidos como aceitáveis numa Mulher. Porque desafia os limites da força considerável máxima numa Mulher. Porque coloca em perspectiva o nosso conceito de Mulher. Isso não faz dela menos Mulher.

Mokgadi Caster Semeneya é uma mulher.

Uma mulher merecedora da sua medalha. Fruto de todo o seu esforço e treino. Do seu corpo negro maravilhosamente esculturado.

 

 

3 coisas sobre virgindade que todos deviam saber

Tudo o que envolve sexualidade ainda é coberto por um nevoeiro espesso composto por tabus e mitos que nos impedem de ter relações saudáveis com os nossos corpos e com os corpos dos outros.

Para além dos riscos de saúde associados à falta de conhecimento sobre sexo, existe também toda uma lavagem cerebral feita para controlar os corpos das mulheres e com isso perpetuar slut-shaming e victim-blaming.

No que toca à sexualidade feminina, é ainda mais difícil um debate construtivo e educativo que promova comportamentos sexuais saudáveis, já que se promove sobretudo a abstinência e a manutenção da virgindade.

Mas afinal, o que é virgindade?

1. Virgindade não existe 

Não existe. Virgindade é um termo heteronormativo que classifica sexo apenas como a penetração, excluindo todo o sexo que ocorre longe de formas fálicas.

Há várias formas de contacto sexual que não envolvem um pénis.

E agora, vem a pergunta: E o hímen? Pois é, o hímen! O hímen pode-se romper por uma série de factores como exercício físico ou masturbação; pode se romper na trigésima relação sexual e pode até nem existir! Se considerarmos apenas o rompimento do hímen, então quem não tem hímen permanece virgem? Os homens não têm virgindade?

Outra pergunta: E o tamanho da vagina não muda?

Claro que, sendo a vagina um músculo, a sua elasticidade depende da quantidade de esforço e exercício que lhe for pedido. E assim sendo, pouca actividade sexual significa uma vagina menos elástica que pode dar a sensação de contracção.

Para além do conceito de virgindade estar intimamente ligado à supressão da sexualidade feminina, apenas fomenta a ideia que pénis têm poderes mágicos de transformação.

A ideia que a desvirgindade muda o nosso corpo totalmente, de forma repentina e completamente irreversível é falsa.

2. Ninguém tira a virgindade de ninguém

É sempre vendida a Primeira Vez como um momento memorável e cheio de efeitos especiais. E acima de tudo, com alguém que “valha a pena” porque essa pessoa terá para sempre uma parte de nós e ficará para sempre na nossa memória.

Mas a verdade é que a Primeira Vez nem sempre é assim. Não tem de ser assim. O que deve haver é consentimento e vontade de ambas as partes. Dali para frente vai ser sempre melhor, vamos aprender mais e descobrir mais.

Supostamente, para nós, mulheres, o início da vida sexual, marcado pela Primeira Vez tem de ser milimetricamente avaliado e considerado, visto que estaremos a dar algo do nosso corpo que jamais será recuperada.

A percepção que virgindade é algo que se perde, reforça o mito de pureza da mulher, segundo o qual o seu corpo se desvaloriza e desvirtua sempre que for tocado de forma sexual.

Mas a verdade é que a relação sexual é a dois, consiste numa troca. Ninguém tira nada de ninguém – até porque não se pode tirar algo que não existe!

Então não se perde nada, só se ganha.

3. Desvirgindade não é um evento só

Assumindo virgindade como a acumulação de experiência  sexual, esse fenómeno não ocorre de uma única vez.

A desvirgindade, nesse sentido, é um processo. Isto é, deixar de ser virgem envolve toda a descoberta do corpo e da sexualidade, acontece em etapas através de várias experiências sexuais.

E fazem parte desse processo, todas as formas de expressão sexual, começando pela própria masturbação.

Nessa perspectiva, somos todos eternos virgens. Estamos todos em constante crescimento e descoberta no que toca à nossa sexualidade e em busca de mais formas de ter e dar prazer.

 

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Nude Woman Reclining, Seen from the Back by Vincent Van Gogh
As mulheres devem ser ensinadas a tomar decisões sobre os seus corpos sem julgamento nem vergonha.

É preciso que haja uma abolição do conceito de virgindade, e com isso, por associação, uma redefinição das ideias de consentimento, de prazer e de saúde sexual e reprodutiva.

 

 

 

 

 

Poliamor africano em tempos de crise

Em Moçambique a poligamia não está legalizada e nem constitui crime. É algo mais ou menos aceite, com ou sem amor.

Quase sempre que nos referimos à poligamia para definir na verdade “poliginia”, que se caracteriza por uma relação entre um homem e várias esposas. E quase nunca se fala em “poliandria”, uma relação de uma mulher e vários esposos. Este debate foi levantado aquando da discussão da (nova) Lei da Família em 2004, na Assembleia da República.

Aquilo que é mais frequente na nossa sociedade – como em qualquer sociedade patriarcal é a poliginia. Encaramos esta realidade como algo normal, pois crescemos vendo tais situações nas nossas casas, nas casas dos nossos vizinhos, dos nossos tios, primos, etc.

Num país como Moçambique famoso pela variedade de religiões, povos e línguas é de admirar que se fale na poligamia apenas nestes termos. É quase impensável falar de uma relação entre uma mulher e vários homens como algo legítimo. Por que será? Cheira-me a machismo…

Muitos vão invocar factores ‘culturais’, mas a verdade é que a cultura não é algo estático e imutável. A cultura acompanha o tempo e o espaço. Motivo pelo qual uma família moçambicana a viver na África do Sul adopta alguns hábitos da cultura sulafricana, e uma família moçambicana há 30 anos atrás não vivia como uma família moçambicana vive hoje. Aliás, o próprio conceito de família já mudou!

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Ngungunhana, o último monarca do Reino de Gaza, com 7 das suas centenas de mulheres em Manjacaze. Séc. XIX
Falemos então de factos:

É facto que existe uma valorização dos filhos em Moçambique, tanto é que a taxa de fertilidade é de 5,27 crianças por mulher. Numa relação poligâmica, um homem com várias mulheres consegue gerar muitos mais filhos, por isso é mais respeitado e considera-se com mais “riqueza”.

Outro facto é que em muitas relações poligâmicas, especialmente as que ocorrem à margem da lei, nas comunidades rurais, as próprias esposas concordam e participam activamente na manutenção desta ordem.

Mesmo assumindo a legitimidade e respeito pela agência pessoal destas mulheres, deve-se olhar para o sistema onde esta agência pessoal está inserida. Cada indivíduo faz as suas escolhas dentro de uma rede de opressões e privilégios que delimitam os seus sonhos.

Sabemos que aquela imagem das esposas-irmãs que há muito nos tentam vender não corresponde à vasta maioria das famílias poligâmicas. Aliás, muitas vezes as próprias práticas sócio-culturais criam condições que fomentam o ódio e ressentimento entre as mulheres.

Mesmo entre os filhos, é só perguntar a qualquer um que seja filho de uma segunda ou terceira esposa, existem distinções de tratamento, condições e oportunidades. Este clima acaba impedindo que haja uma relação saudável e de harmonia entre os irmãos.

Poucas são as mulheres que aceitam deliberadamente esse estilo de vida. Para as primeiras esposas, a poligamia é uma forma de manter relativo prestígio e ganhar algum poder sobre as decisões tomadas pelo marido ao arranjar a segunda esposa.

Já para as segundas, o estilo de vida oferece uma certa segurança para si e para os seus filhos, saindo do anonimato de uma relação em que é apenas a “amante”.

Há factores económicos e de poder que se sobrepõem à ideia de se considerar, de facto, amar.

Um elo é comum a todas: a pré-aceitação da fragilidade do sexo masculino face à ameaça de uma outra mulher por perto. A aceitação da irracionalidade do homem e da traição como uma fatalidade à qual não se pode fugir, ficando-se apenas pela salvaguarda da relação “legítima”.

Por isso, embora eu não questione a escolha a nível individual, eu sou obrigada a observar, num todo, como um determinado grupo de mulheres fez essa escolha. O que caracteriza esse grupo? Que opções estavam disponíveis no momento da escolha? De que ferramentas esse grupo dispõe para contestar a ordem em vigor?

E sobretudo: Por que é que essas mulheres que se dizem polígamas não praticam a poliandria, apenas a poliginia?

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Não podemos ignorar a vulnerabilidade que estas relações trazem para as mulheres que nelas participam.

Se por um lado, a poligamia surge como uma forma de controlar os danos causados pelo adultério, por outro, traz consigo todas as certezas da superioridade do homem como prémio máximo para qualquer mulher: primeira, segunda ou décima.

Para além dos óbvios perigos de saúde, num país como Moçambique com uma das maiores taxas de HIV do mundo, estas mulheres estão completamente desprovidas de protecção legal.

Ao abrigo da Lei da Família, apenas a esposa que tiver o matrimónio registado no Cartório, ou conseguir provar a união de facto, que geralmente é a primeira, está protegida. Há um vazio no que toca a relações poligâmicas relativamente ao direito de sucessão, herança e transmissão de bens para as restantes viúvas.

Os filhos poderão ser dados como herdeiros, mas isso não os salvará dos olhares de desprezo e comentários desagradáveis nas suas famílias e comunidades.

É fácil falar em poligamia quando isso significa acesso livre ao corpo de várias mulheres. Quando é “poli” a disponibilidade sexual e o aparente respeito que lhe é conferido. E amor, há?

 

 

Para mais informações/ opiniões sobre o assunto:

Tendências e Factores Associados à Poligamia em Moçambique

Apanágio em Caso de União Polígama (art. 426º LF)

Menstruar é bom, e eu gosto!

A primeira vez que a menina menstrua é um momento de viragem, em que o mundo parece virar-se contra nós e ao mesmo tempo exigir mais.

Quando era mais nova e ouvia as minhas primas a falarem da sua menstruação, eu queria fazer parte desse mundo. Sempre que conversávamos sobre relacionamentos – da única forma que meninas entre os 10 e os 15 anos o sabem fazer – elas me diziam “As coisas não são bem assim, tu ainda és criança. Quando tiveres o período vais entender.”.

Parecia que todas as minhas opiniões eram inválidas pelo simples facto de eu não menstruar todos os meses como elas. Eu achava que o período era a única forma de dar legitimidade àquilo que pensava, de mostrar que eu era uma menina madura e com ideias boas o suficiente para serem ouvidas.

Na manhã em que vi a minha primeira gota de sangue eu tinha 11 anos e estava prestes a tomar banho para a escola. Fiquei muito feliz, pois finalmente teria o “estatuto” que tanto queria.

Mas a verdade é que depois desse dia tudo mudou.

Eu já não podia mais brincar como as outras meninas que não tinham o período. Não podia ir à praia ou à piscina sempre que me apetecesse. Tinha de usar umas fraldas estranhas sempre que estivesse período. E pior de tudo, tinha de esconder essa realidade de todos. À excepção da minha mãe, ninguém podia saber que eu estava menstruando.

Esse silêncio é o pior de tudo.

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Projecto “Period” pela artista Rupi Kaur.

Com a minha mãe aprendi a fazer a tabelinha e prever os dias de menstruação para nunca ser surpreendida. Na escola nos ensinaram os órgãos genitais e como o corpo humano funcionava.

Mas a vergonha e nojo de ter sangue a sair de mim mensalmente fui descobrindo sozinha, despreparada. Ninguém me disse que era bonito. Ninguém me disse que podia ser normal ou até mesmo divertido. Era sempre algo feio, estranho.

Depois fui aprendendo que muitas das minhas amigas, tal como eu, não podiam fazer certas coisas quando estavam menstruadas.

Coisas normais e que lhes davam prazer, mas que pelo simples facto de elas estarem “impuras” durante esses dias do mês não podiam mais fazer. Desde simples tarefas domésticas como cozinhar, até certos rituais religiosos.

Outros mitos foram surgindo ao meu redor, num ambiente de secretismo, sem muita ciência por detrás que pudesse explicar ou segurança para perguntar a outras pessoas: Mulher não pode ficar no secador quando vai ao cabeleireiro de período; mulher não pode ficar muito perto de homens senão aumenta o fluxo; mulher não pode ir a cerimónias fúnebres; não pode ter relações sexuais; etc.

Todo o estigma à volta da menstruação afasta muitas mulheres de elas mesmas.

Faz com que repudiem o seu próprio corpo e todas as maravilhas que ele é capaz de fazer.

Foi apenas na idade adulta em que comecei a ficar mais confortável com a minha própria menstruação. Perdi o medo de esconder que era uma mulher com um útero funcional e um ciclo de 28 dias.

Aprendi a admirar como este corpo é capaz de se manter de pé, de me permitir sorrir e chorar, mesmo a jorrar sangue durante dias. Este corpo consegue amar e ser amado, mesmo depois de tirar lágrimas de sangue por dentro. Este corpo é palco de um espectáculo sangrento todos os meses e ainda não desistiu de viver.

O meu corpo faz tudo isso e muito mais.

 

Girlhood: a ilusão da realidade

Girlhood é um filme escrito e realizado por uma mulher branca, francesa que pretendeu retratar a vida de jovens mulheres negras da periferia francesa.

Costuma-se dizer que “percepção é realidade” e não poderia estar mais de acordo. Cada indivíduo vive numa realidade completamente diferente, pois sente e absorve o seu ambiente de formas diferentes.

Esse seja talvez o maior desafio para quem faz um filme: como criar uma imagem que represente a realidade ?

No filme Girlhood, da realizadora francesa Céline Sciamma, é quase impossível não sentir essa distinção entre a percepção dela e a realidade que procura retratar. Ou pelo menos para quem conhece minimamente essa realidade!

A história acompanha o desenvolvimento de Mariéme, desde uma tímida e solitária menina negra a uma adolescente rebelde e conflituosa.

A intenção do filme é de despertar um sentimento de culpa face à indiferença da sociedade francesa às comunidades imigrantes que vivem à margem de tudo: da cidade; da lei e até mesmo da “francofonia”.

 

Infelizmente, o que o filme tem de real é pouco.

A realidade familiar é praticamente secundária à situação da adolescente durante o filme, evidenciando o desconhecimento da realizadora no que toca às especificidades de uma família imigrante.

O pai não aparece. A mãe trabalha como empregada doméstica e quase não passa tempo com os filhos. O irmão é extremamente abusivo. A irmã mais nova está à procura de um ídolo. E Mariéme tem apenas 16 anos e aparentemente nenhum sonho.

O que a realizadora consegue- e muito bem- é descrever a força que vem de um grupo de mulheres unidas. É essencial para a auto-afirmação de qualquer mulher que esta se rodeie de mulheres como ela.

No entanto, rapidamente o grupo de amigas torna-se destrutivo, trazendo à superfície tudo o que há de pior na protagonista: inveja; raiva; tristeza; carência.

Outro ponto positivo é a gradual evolução das tentações a que Mariéme está exposta. O que começa por ser uma vontade de estar na moda e usar roupas trendy, rapidamente transforma-se numa porta para um mundo de drogas e prostituição.

Note-se que este lado está intimamente ligado à exploração da sexualidade da adolescente. A adolescente vê-se dividida entre o seu desejo e curiosidade e os olhos incriminadores da sociedade machista.

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O filme é uma obra interessante na medida em que, embora carregada de estereótipos, permite-nos olhar (de uma forma unidimensional) para a realidade de muitas raparigas descendentes de africanos imigrantes na Europa.

Para a maioria dos adolescentes nessas condições, a construção da sua identidade passa muito pela descoberta da sua Africanidade, e depois pela rejeição ou aceitação desta. Pela manutenção das relações familiares, que se estendem às outras famílias em situações similares.  E pela resposta à pressão das estruturas da sociedade onde estão inseridos: escola; mercado de trabalho; oportunidades de crescimento; etc.

Infelizmente para Céline Sciamma a sua percepção não lhe permitiu chegar tão longe. Ela ficou-se pelo que estava à superfície da realidade: pela armadilha fácil do crime e justiça de rua.

A Mariéme de França, que poderia muito bem ser a Mariana em Portugal, empurrada para a marginalidade sem uma chance de saber quem é ou quer ser.

 

 

 

 

 

 

Alicia Keys e a rejeição das negras escuras

O que os aplausos à campanha #nomakeup /sem maquilhagem de Alicia Keys dizem sobre o grande elefante branco na sala das feministas negras.

A cantora norte-americana Alicia Keys tomou um bravo passo posicionando-se contra a ditadura de beleza que obriga as mulheres a maquilharem-se todos os dias, escondendo as partes de si que menos gostam e realçando os traços que as aproximam ao ideal de beleza que tanto procuramos alcançar.

Para uma artista como ela que serve de inspiração para muitas adolescentes, jovens adultas e mulheres, a manipulação da sua imagem  promove um ideal de perfeição inalcançável. Uma imagem que não corresponde à realidade e que deturpa a imagem que temos de nós mesmas.

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Alicia Keys para Fault Magazine

No entanto, Alicia não é a primeira mulher americana negra a tomar uma posição contra essa cultura.

No ano passado Lupita Nyong’o e Viola Davis, entre outras artistas, fizeram um ensaio fotográfico para a revista Vanity Fair em que posaram completamente desvestidas de maquilhagem.

 

Como mulheres negras e escuras, os seus traços foram imediatamente ridicularizados e as actrizes foram ostracizadas por não estarem “glamurosas” o suficiente.

blog-post-viola-davis-3No seu trabalho em “How To Get Away With Murder/ Como Defender um Assassino”, Viola Davis representa uma sensual advogada negra, com uma carreira de sonho e uma vida abastada e emocionante.
Numa das cenas mais icónicas da série, Viola tira a peruca e a maquilhagem preparando-se para dormir, mostrando essa dualidade que muitas mulheres negras vivem: por um lado são livres e fortes; por outro, são completamente reféns de um padrão de beleza longe da sua verdadeira face que só enfrentam no escuro da sua própria intimidade.

Lupita, por sua vez, escolheu um papel mais discreto às luzes de Hollywwod, para trazer diferentes representações da mulher negra daquelas que estamos cansados de ver.

Para além disso, ambas têm vindo a trazer essa luta para o tapete vermelho, preferindo o cabelo natural e mostrando a versatilidade e beleza que daí pode vir. Um exemplo perfeito é o penteado escolhido por Lupita para a Met Gala, em que a atriz se inspirou na África Ocidental.

Mas infelizmente, o trabalho feito por estas duas é ignorado.

Aparentemente não há espaço no Feminismo Negro para as mulheres escuras. Para mulheres de lábios grossos. Mulheres com carapinha.

O nosso silêncio perante o trabalho destas mulheres evidencia o colorismo que nos orienta, e o racismo aí escondido.

Queremos apenas os traços mais finos: o nariz em bico e lábios discretos. Queremos o cabelo em cachos e a pele mais clara.

Porquê?

Que Feminismo é esse e para quem?