“Daughters who walk this path” de Yejide Kilanko traz a história de Morayo da sua infância à idade adulta


“Daughters who walk this path” de Yejide Kilanko traz a história de Morayo da sua infância à idade adulta
Mulheres de todas as idades, de todos os estratos sociais, de todos os contextos profissionais contribuem para o crescente mercado de produtos e serviços eróticos. Os produtos e serviços vão desde aulas e sessões de aconselhamento a brinquedos sexuais, óleos e estimulantes e até danças.
Importante referir que eu mesma sou uma pessoa que gosta de se aventurar e de experimentar coisas novas sexualmente. E não me poupo na pesquisa – que envolve também “trabalho de campo” – para melhor perceber o fenómeno.
Em meios progressistas e talvez até feministas o mesmo acontece. Com outros nomes talvez, mas em moldes bastante parecidos. Exercita-se na verdade liberdade sexual (ou a busca disso): a mulher que diz sim, que experimenta, que se permite, que se conecta com o seu lado reprimido – ou, como muitas vezes ouvimos, a mulher sexualmente empoderada.
Mas o que isso significa de facto? Como vive esta mulher? Quem é ela? O que ela quer? Esse tal empoderamento como é que se manifesta?
Tenho visto que a tal mulher empoderada, ‘rainha da porra toda’, muitas é apenas mais uma mulher que hipoteca a sua sexualidade. Ou seja, o tal de empoderamento não trouxe libertação alguma.
Afinal de contas todo o investimento em aulas de rebolado, aulas disto, aulas daquilo, até aulas de broxe não são para ela, mas sim para o parceiro. Sexo é algo que se faz para outrém e não para si. Porque ele é que tem de atingir o clímax, sexo é para ele se satisfazer, ela é apenas um depósito onde ele vai despejar o seu “sagrado” sémen.
A mulher quer apenas ser o melhor depósito de sémen possível. Aquela que rebola mais – já que está em relação de rivalidade com todas as outras mulheres – aquela que lhe chupa mais, a que lhe permite fazer mais, fazer tudo o que ele quiser, mesmo que pague com o seu próprio desprazer.
A “boa de cama” que deixa o homem louco de prazer, praticamente imobilizado – tal acéfalo ser – hipnotizado pelos malabarismos e mutilações corporais daquela mulher, a “boa de cama”.
E nessa fixação em ser a “boa de cama”, caímos na armadilha da alienação da nossa própria sexualidade, do nosso próprio prazer. O nosso orgasmo não passa de um bónus e isso quando temos! Entendemos que “sexo foi bom” porque ele gemeu como nunca tinha gemido, porque ele gozou como nunca tinha gozado. Ou seja, sexo não faço para mim ou por mim, mas sim em relação a ele.
Para quê?
A promessa é simples: Faça o seu parceiro gozar e ele será “seu” para sempre. Ele nunca procurará mais ninguém. E se procurar, sempre vai voltar para si.
Ou seja, continuamos à procura do ‘homem prendido/ domesticado’. É essa mesma lógica que mantém mulheres bem sucedidas reféns de homens que não lhes respeitam porque um dia – um dia! – ele vai mudar.
Manas, não se enganem: Submissão voluntária não deixa de ser submissão.
Então, sejamos más de cama sim. Péssimas até, se for preciso.
Sejamos egoístas na cama. Sejamos preguiçosas. Sejamos nós mesmas, sem restrições nem medo. Sem precisarmos de validação e aprovação alheias.
Sejamos as que não sabem rebolar. Ou sabem e não querem. Ou não sabem e nem querem saber. Sejamos as que não gostam de broxe. Não dão broxe. Não querem saber de broxe.
Sejamos quem nós de facto queremos ser. Na cama. E fora dela.
Ouvi dizer que havia uma Livraria na Associação de Escritores Moçambicanos, então fui lá espreitar.
Sucedeu-se que esteve cá em casa uma simpática hóspede brasileira que queria muito o livro ‘Niketche‘ de Paulina Chiziane. Sentada na parte mais badalada da AEMO, o bar, ouviu falar de uma livraria localizada na parte interior do edifício principal, mas infelizmente não conseguiu ir lá antes da sua partida.
Como a boa anfitriã que sou, ficou a promessa em como lá voltaria e mobilizaria esforços para que o livro chegasse ao Rio de Janeiro, local onde ela reside.
Ora bem, o que não lhe disse foi que nunca tinha ouvido falar de tal livraria e que duvidava que houvesse de facto uma livraria dentro da AEMO. Afinal de contas, se houvesse eu saberia, certo? Certo. Errado. Eu não sei tudo. Mas sei que não se pode discutir assuntos “de casa” com as visitas, por isso calei-me. Fiquei-me pela promessa.
Então numa bela manhã, dessas em que o sol parece estar especialmente atento ao que se passa em Maputo, acordei e lá fui.
O que aconteceu entre a minha entrada e a minha saída da AEMO só pode ser classificado como um verdadeiro exorcismo, tamanho foi o cansaço e desgaste que senti após aquela visita.
Não podia prever que, por detrás, daquela imagem do edifício belo e simpático, rodeado de um verde jardim que convida a entrar, escondia-se uma mansão sombria e assombrada.
– Bom dia, tem livraria?
-Livraria?
-Sim, livraria. Queria ver um livro.
Senti-me mesmo num filme de terror. Seria a palavra “livraria” um código para desvendar algum mistério? Seria a livraria um lugar de cultos obscuros proibidos?
-Está bem. Aguarde.
Enquanto esperava, de pé, observei aquele pequeno espaço onde me tinham abandonado. À minha direita tinha uma porta para uma sala e à frente um estreito e escuro corredor. As paredes à minha volta tinham algumas fotos a preto e branco legendadas com nomes e datas.
Tirando o televisor enorme colado à parede, tudo ali era Passado. Memórias. Notei um vazio enorme preenchido apenas pelo pó colado em tudo: nas paredes, nos móveis e até mesmo nas pessoas.
A passos lentos e arrastados vem um senhor, pelo corredor, e acompanha-me até uma sala onde uma colega está a trabalhar. Em cima das secretárias vejo montes de cadernos, cadernetas e aquilo que pareciam ser actas, cartas e outros defectos da actividade burocrática. Num canto um amontoado de não mais de 20 livros me é apresentado:
-Pode ver esses aí. Mas está à procura de quê?
Ah, afinal isto é que é a “livraria”! – pensei comigo mesma.
– Só quero ver. Estou à procura de um presente para alguém.
Quando aquela pilha de livros acabou, a colega tirou de uma gaveta outros tantos livros.
-Também tenho estes aqui. Pode procurar à vontade.
Desencantada e impressionada, começo a folhear os cerca de 30 livros adicionais. O teimoso pó, grudava nos meus dedos a passos largos. À medida que eu ia mexendo naqueles livros, o pó invadia-me e o meu corpo, resistia.
Atchim!
A cada espirro uma parte de mim saía desesperada.
Atchim!!
Onde foram parar os nossos livros?
Atchim!!!
Não tem nenhuma obra de Paulina Chiziane?
Atchim!!!!
Por acaso tem algum livro de Lília Momplé?
Atchim!!!!!
Atchim!!!!!!
Alguns livros falam comigo. Eles querem se livrar do pó e abandonar a gaveta moribunda que habitam. Decido então resgatá-los, mas reparo que não têm preço marcado. Pergunto. Informam-me. Desconfio. Mas aceito levar e tiro da minha carteira um cartão do banco, assinalando a minha decisão final.
-Só aceitamos dinheiro.
Peço desculpas aos livros. Não os posso levar. Não assim. Não nestas condições. Num outro dia talvez.
E assim, tão rápido e precoce acabaram-se os livros. Ou melhor, acabou-se a livraria.
-Está bem. Fica para a próxima. Obrigada.
Os mesmos passos lentos e arrastados acompanham-me de volta à entrada. Pelo caminho reparo na porta daquilo que parece ser a Biblioteca. É uma sala triste, escura e está trancada. As suas frágeis portas de vidro seguram os sonhos lá esquecidos e abandonados.
São esses sonhos empoeirados, esses fantasmas do que poderia ter sido, que habitam aquele espaço inerte e apoderam-se das paredes, dos móveis e até mesmo das pessoas.
Atchim!
Cansada, saio daquele lugar e deixo-me banhar pelos raios de Sol.
Um dia volto com um espanador.
Reflexões em torno do livro autobiográfico “Bone Black: Memories of Girlhood” da bell hooks
bell hooks é uma escritora e académica norte-americana mais conhecida pelo seu trabalho em torno do Feminismo Negro e Racismo. Em 2014 tive o prazer de ler o livro “Ain’t I a Woman: Black women and Feminism”, quando comecei o meu compromisso com literatura marginalizada.
“deep within myself i had begun to worry that this loving care we gave to the pink and white flesh-colored dolls meant that somewhere left high on the shelves were boxes of unwanted, unloved brown dolls covered in dust. i thought that they would remain there forever, orphaned and alone, unless someone began to want them, to want to give them love and care, to want them more than anything. at first they ignored my wanting. they complained. they pointed out that white dolls were easier to find, cheaper. they never said where they found baby but i know. she was always there high in the shelf, covered in dust, waiting.”// “Dentro de mim, comecei a preocupar-me que esse cuidado e amor que dávamos às bonecas cor-de-rosa e brancas significava que, em algum lugar nas prateleiras, havia caixas de bonecas castanhas indesejadas e não amadas, cobertas de pó. Eu pensei que elas ficariam lá para sempre, órfãs e sozinhas, a menos que alguém começasse a querê-las, a querer dar-lhes amor e carinho, querê-las mais do que qualquer coisa. No começo eles ignoraram o meu desejo. Reclamaram. Disseram que bonecas brancas eram mais fáceis de encontrar, mais baratas. Eles nunca disseram onde encontraram a bebé [castanha], mas eu sei. Ela sempre esteve lá no alto da prateleira, coberta de pó, esperando. ” [tradução livre]
No filme “Felicidade por um fio” (Nappily Ever after) Violet Jones assume o seu cabelo natural no meio de uma crise pessoal
A história de Violet Jones, retratada por Sanaa Lathan começa num escritório daquilo que parece uma prestigiada agência de publicidade.
Ela é uma mulher preta linda, bem sucedida e com a vida organizada. Vive um relacionamento estável com um moço igualmente bonito e ambicioso. Tudo parece perfeito – e aí reside o problema.
Violet é escrava dessa perfeição. Todos os seus passos são milimetricamente calculados. O namorado não pode tocar no seu cabelo. Ela acorda mais cedo que ele, para que ele nunca a veja despenteada. A sua casa, cheia de móveis brancos, reforça essa ideia pelo seu aspecto clínico.
Mas a sua vida perfeita exige dela demasiado esforço, o que gera bastante ansiedade. Como muitas mulheres, Violet sente que não basta ser só bem sucedida e ter um relacionamento bom, ela tem de se casar e tem de estar sempre bonita, enfim, deve ser a mulher perfeita.
Essa pressão social no filme é representada pela mãe – uma mulher preta também – o que para mim foi um problema. Achei desnecessária a constante vilanização da mãe e acho que se perderam oportunidades para oferecer compaixão à mãe que, como mulher negra também enfrentou vários preconceitos e desafios para se aceitar e para criar a filha para ser a mulher de sucesso que é.
No entanto, a mãe aparece quase sempre infeliz com as decisões da filha e querendo impor as suas vontades e crenças.
“Felicidade por um fio” parece um filme de Tyler Perry: storyline relativamente simples em que a vida da mulher começa com uma tragédia que a obriga a emancipar-se, e essa mesma mulher apenas mais tarde realmente se cura ao encontrar o amor e aceitação de um homem. Ou seja, mulheres fortes são na verdade mulheres traumatizadas que precisam de um homem para aceitarem o seu lado mais frágil.
No caso de Violet, o momento decisivo foi uma sucessão de acontecimentos infelizes: término do namoro; perda de uma conta importante na empresa e um acidente num salão de beleza que danificou o seu cabelo.
Num acto espontâneo de loucura e rebelião, Violet decide rapar o cabelo. Inicialmente Violet é bastante insegura quanto ao seu novo visual, e procura esconder-se por detrás de turbantes até que conhece um novo moço que, auxiliado pela filha pequena, ajuda-a a aceitar-se tal como ela é.
Para desafiar os clichês do plot, a directora Haifaa Al-Mansour, poderia ter dado à protagonista a oportunidade de cortar o seu cabelo de forma consciente, em vez de trazer essa consciência depois – poupando também o homem (!!) disso. E adicionalmente, em vez de encarregar o homem da responsabilidade de validar a decisão da Violet (e educá-la!), essa tarefa podia ter recaído sobre as suas amigas.
Aliás, na vida real é a rede de outras mulheres que passam/ passaram por experiências semelhantes que tem mais impacto no processo de auto-aceitação.
Em suma, acho o filme muito raso nas suas provocações e observações. Dentro do estilo comédia romântica segue a típica linha do “tudo está bem quando acaba bem” e que o amor supera tudo e todos, e como um filme de elenco maioritariamente preto classe média alta nos EUA, tirando o facto de tratar de assuntos capilares, não desafia noções previamente existentes no que tange a relações mãe e filha; mulher negra no mercado laboral e relacionamentos heteronormativos entre pessoas pretas.
O Museu do Apartheid é dedicado à história do regime segregacionista sul-africano que durou de 1948 a 1994.
Apartheid literalmente significa “separação” ou “estar separado” e durante décadas o Partido Nacional da África do Sul implementou políticas para garantir a separação de raças no país, hipotecando as vidas de todos os não brancos.
Na bilheteira ao comprarmos um bilhete somos atribuídos um título: Black (preto) ou White (branco) e devemos entrar para o museu pela porta indicada para a nossa raça.
Só isso só mostra o quão forte foi o Apartheid e como presente ele estava em todos os momentos da vida quotidiana dos sul-africanos.
Não visitem o Museu do Apartheid.
Não bastassem os números, a legislação e estatísticas disponíveis ao longo de todas as salas, o Museu traz ainda histórias reais de pessoas ‘anónimas’ que viveram os traumas e as opressões do regime do Apartheid.
São essas histórias, acompanhadas muitas vezes de fotografias e objetos pessoais que dão uma cara, um elemento humano à chuva de informação a que somos expostos.
Não fossem essas pessoas e as suas pequenas revoluções diárias, seria muito difícil compreender o quanto o Apartheid afectou e limitou o futuro das gerações que hoje vivem na África do Sul.
Visitar o Museu do Apartheid é abrir a porta para o desespero, raiva e medo em nós.
Eu chorei.
Chorei quando li o poema “A Human Being Died That Night” de Pulma Gobodo-Madikizela. Chorei ao ver um trecho do depoimento de Winnie Mandela aquando do seu julgamento na Comissão da Verdade e Reconciliação. Chorei ao ver fotos do Soweto Uprising e ler mais sobre os sacrifícios que os jovens fizeram para ver uma África do Sul livre.
Chorei mesmo.
Não visitem o Museu do Apartheid.
Pelo menos não o façam sem terem pelo menos 2h para de facto se entregarem à obra extraordinária e muito bem conseguida que todo o museu é.
Para além de uma extensa exposição sobre Nelson Mandela, desde a sua entrada no ANC até à chegada à Presidência, o Museu conta com uma exposição permanente de Ernest Kole, fotojornalista sul-africano cujo trabalho foi banido na época.
Ernest Kole, para além de ter registado em imagens importantes momentos da vida da população negra na África do Sul, fez também questão de escrever várias notas, ensaios e depoimentos.
Visitar o Museu do Apartheid é fazer uma viagem pelos dramas e dilemas da vida num sistema extremamente opressor. Através de fotos, relatos, vídeos, textos e objectos, somos convidados – convidados, não – convocados! a questionar e perceber como essas estruturas e categorias se alteraram e ao mesmo tempo, perpetuaram.
Se existem fantasmas – e eu acredito que eles existam – o fantasma do Apartheid certamente frequenta aquele lugar. É um edifício sombrio, sóbrio, gigante e pesado, um pouco como o Apartheid… acredito.
Não seria justo nem correcto dizer que este Museu é bonito. Museu do Apartheid bonito? Não, obrigada. Este Museu é horrível, brutal e violento.
Não visitem o Museu do Apartheid!
Eu não sei com quantos anos recebi a minha primeira boneca, mas lembro-me que em criança tinha algumas bonecas e era sempre incentivada a cuidar delas, como se fossem minhas filhas.
Lembro-me também de ver na TV anúncios de bebés de brinquedo que choravam, faziam xixi e alguns até faziam cocó! Eu invejava tanto aqueles bebés de brinquedo. Quando ia a casa de alguma amiga que tivesse um bebé desses, todas as meninas ali presentes faziam questão de tocá-lo e acariciá-lo.
Também havia quem tivesse aquelas cozinhas de brincar em tamanho mini, era tão divertido! Lá íamos nós brincar de ser “dona de casa”, brincar de ser “mãe”.
Os rapazes se ocupavam em sair para “trabalhar”, conduziam os carros (muitas vezes eram apenas volantes improvisados) e davam ordens. Quando chegavam a casa queriam a roupa lavada e a comida pronta.
Quando não estivessem a brincar connosco, os rapazes brincavam com carrinhos, helicópteros e bonecos de super heróis.
Hoje noto como essas dinâmicas se perpetuaram e até grande medida nos influenciaram nas nossas escolhas e visões do mundo.
Os rapazes, que desde cedo são encorajados a sair de casa, seja para brincar, passear e de um modo mais amplo para viajar e estudar. Os rapazes que desde cedo são criados para olharem para eles próprios como super heróis, como os chefes de família e as figuras que lideram.
E por outro lado as mulheres, que desde cedo são encorajadas a ficar em casa, a cuidar dos filhos e a encontrarem no espaço físico doméstico as suas maiores realizações pessoais. As mulheres que desde cedo têm como aspirações a maternidade e a lida doméstica.
Já em adultos, estas visões de nós mesmos se mantêm, ainda que de outras formas.
As mulheres são pressionadas a ocupar esse papel no espaço doméstico: fazer filhos, casar, cuidar do marido e dos filhos, esperar o marido, fazer-lhe todas as vontades, etc. E para os homens: não mostrar sentimentos, não se envolverem nas lidas domésticas, trabalharem fora de casa, assumirem a liderança (mesmo que seja através da força) e por aí vai.
As mulheres que por algum motivo não querem seguir esse padrão são mal vistas e colocadas num canto, impedidas de conviver e/ou interagir com as restantes. Aliás, a rivalidade feminina é bastante encorajada e a mulher solteira, sem filhos ou sem interesse nas conversas sobre tarefas tradicionalmente femininas, é o alvo mais fácil.
Não aceitamos essas mulheres. Não queremos essas mulheres por perto. Não queremos ser essas mulheres. Nos afastamos ao máximo.
E o que fazemos com as nossas filhas? Repetimos o ciclo! Tudo cor-de-rosa, lacinhos e flores, bebés para cuidar, mini cozinhas para cozinhar, marido para educar.
Tudo começa com “Homem não gosta de mulher X” ou “Homem quer uma mulher Y”.
“Cortaste o cabelo! O que o teu parceiro acha disso?”
“Conseguiste bolsa para estudar fora. Vais deixar o teu parceiro? Vais obrigá-lo a mudar de país, deixar a carreira para te acompanhar?”
“Não podes aceitar esse emprego, senão não terás tempo para cuidar dos teus filhos.”
Às mulheres é esperado um comportamento submisso. Elas são desde cedo treinadas para tal, raramente encorajada a seguir as tuas vontades, assumir os seus ideais com convicção e autonomia.
Mesmo as mulheres economicamente estáveis, escolarizadas e com carreiras de sucesso é cobrada a “família”. Sempre nos perguntamos se ela consegue conjugar tudo isso, caso contrário, ela está a falhar. Como mulher ela sozinha não basta.
Mulheres são socializadas para aspirarem uma relação heternormativa em que é uma personagem secundária na sua própria história. É encorajada a abdicar dos seus sonhos e metas pessoais pela “família” (leia-se marido e filhos). É pressionada a ceder a todas e quaisquer vontades do seu parceiro, independentemente de concordar, muito menos compreender.
Quando as mulheres tentam sair dessas situações são pressionadas, muitas vezes por familiares e amigos, a tolerarem e aguentarem. As mulheres que saem são tidas como “fracas”, “mulheres de pouca fibra”, pois casamento é assim mesmo, é para ser infeliz e sofrer todos os dias.
E nesse papel de subalternidade, torna-se sujeito de outrem. Propriedade alheia. O que ela quer e o que ela sonha não mais importa. A mulher não tem poder de decisão, não tem opinião, praticamente não existe. Ela nada é senão um corpo, um pedaço de carne ali especado para entretenimento do seu esposo.
É nesse espaço vulnerável que é espancada, agredida, violada e até mesmo assassinada.
Todos os dias uma mulher morre nas mãos do seu parceiro.
Todos os dias.
Todos os dias somos violadas, espancadas, esquartejadas, assassinadas. Não é só onde eu vivo, é em todo o lado.
A violência contra a mulher tornou-se num espectáculo. Ligamos um telejornal qualquer e lá está mais um nome, mais uma mulher morta nas mãos de quem confiou, mais um número, uma cara anónima no meio de tantas outras.
Depois da notícia, uma outra coisa virá, mais ou menos sensacionalista e logo logo nos esquecemos do sucedido com aquela mulher. A vida segue.
Como sociedade nada fazemos para abordar o assunto de forma efectiva e eficaz, não trazemos soluções específicas para este tipo de violência, não procuramos respostas para fazer frente ao sofrimento de tantas mulheres.
Recentemente em Angola um novo grito, #ParemDeNosMatar fez ecoar o suplico de tantas vítimas. Foi o brutal assassinato da advogada Carolina , de 26 anos que forçou uma tão urgente conversa sobre a violência doméstica.
Entre marido e mulher mete-se a colher sim! O problema da violência doméstica é estrutural e ultrapassa o casal. É um problema que está nas nossas casas, nos gritos que vêm das casas dos vizinhos, nas marcas do corpo das nossas colegas e amigas, no silêncio assustado daquela tia que nem sequer encara o marido nos olhos, na conivência de toda a sociedade que aumenta o volume do som para abafar o grito de socorro que vem da rua.
Todos os dias uma mulher morre nas mãos do seu parceiro.
Todos os dias.
Imagina nascer, crescer e viver toda uma vida sendo bombardeada com mensagens violentas sobre o seu cabelo, a sua aparência, os seus traços, a sua forma de ser e tudo o que você representa.
Na série “Violências Diárias” pretendo retratar um pouco dessas vivências.
Desde pequena que a minha mãe sempre cuidou do meu cabelo. Era ela quem me fazia as tranças e embora eu me lembre de muitas vezes sentir dor, de um modo geral gostava desses momentos em que ela tratava de mim, tocava o meu cabelo, me penteava e me acariciava.
Com o tempo, fui querendo experimentar mais e aí comecei a frequentar salões de beleza. Acho que foi no início da adolescência, eu gostava de tranças mais elaboradas, muitas missangas e a ilusão de cabelo comprido (leia-se liso).
Deve ter sido nessa altura que passei a prestar mais atenção nos cabelos das outras pessoas e a querer o que elas tinham. O cabelo que voa, o cabelo que pode ser molhado sem nenhum problema, o cabelo que não precisa de muitas horas no salão de beleza, o cabelo que é perfeito tal como é, o cabelo que existe sem precisar de manipulações.
Então lá fui eu entregar-me de corpo e alma aos padrões eurocêntricos. Tentei e tentei, mas o meu teimoso cabelo sempre crescia da mesma forma carapinhada. Eram mais horas no salão de beleza. Mais cuidados com o cabelo. Mais precauções. Mais restrições.
Depois desse período de subjugação da minha raiz e dos meus fios aos agressivos tratamentos químicos, decidi deixar o meu cabelo simplesmente ser. Simplesmente ser, tal como ele é e sempre foi.
Mas não deixo de observar, ouvir e notar como essa mesma pressão persiste até hoje. Está em todo o lado: nos nossos salões, nos pentes que nos são vendidos, nas imagens dos produtos capilares disponíveis, nas capas de revistas, na Televisão e até nas pessoas que mais admiramos.
É violência. Diária.