Viu de longe a sua figura plantada no meio do nada e foi ficando, ficando, criando raízes até hoje.
Aquela é a sua avenida: uma encruzilhada de pretos, brancos, mulatos, monhés, um encontro de todos e de ninguém.
De um lado, o fim e o princípio de uma coisa nova já envelhecida. Projectos, sonhos, ideias que nunca avançaram. Obras e infraestruturas que morreram no papel.
Lá ao fundo um novo horizonte se ergue, ao passo galopante de quem anda atrasado numa corrida já perdida ainda no ponto de partida. Como costumamos dizer “É trabalho de Marracuene!”.
Queria ser mais do que um espantalho no meio da praça.
O meu braço erguido às vezes dói.
Um dia ainda me mexo.
Atrás de si, um cobrador de chapa aperta os seus passageiros para além da lotação do seu carro. Senhoras, meninas, crianças, homens e velhos de todos os tamanhos se diminuem para chegar rapidamente ao seu destino.
O motorista abre a porta do co-piloto para uma jovem menina entrar.
A menina aceita o convite e senta-se à frente, puxando uma colega para ficar ao seu lado no privilegiado lugar de acompanhante do condutor.
Ambas estão de uniforme escolar de uma escola secundária qualquer da cidade. Pelas suas camisas dá para notar os pequenos seios que já se acomodam no soutien e os lábios pintados com gloss brilhante aumentam os sorrisos malandros que escondem segredos adolescentes.
A música está a tocar bem alto e não dá para ouvir metade das coisas que o condutor está a dizer. Não faz mal. Elas sorriem em concordância.
Daqui de cima não consigo mudar nada.
Não há revoluções do topo.
Nem povo sem sonhos.
À frente, vendedores ambulantes deambulam pela melhor sombra, à procura dos mais distraídos na esperança de os convencerem a adquirir algum produto.
Uma mamana consegue a atenção de um rapaz que espera alguém de uma das lojas de roupas dos nigerianos.
Os cinco meticais do amendoim servem de entretenimento enquanto a sua namorada não sai do job. Hoje é sexta-feira, vão sentar num sítio para tomar um refresco, quem sabe até matar outras sedes.
Talvez eu é que sonhei demasiado alto.
Ninguém me tira fotos.
Essas pessoas sabem quem eu sou?
Ninguém olha a estátua de frente.
Enfrentar aquela figura é olhar para História, para o Passado, para a origem de nós mesmos.
Alguns atrevidos usam os degraus como abrigo, às vezes o Passado é o único sitio seguro para dormir.
O capim apaga o rasto dos seus passos. O lixo enfeita a campa dos mortos enterrados sem despedidas.
Os pombos, indiferentes, voam e cagam na direção que o sopro Presente permitir. E assim vivemos, como quem não sabe, nem quer saber.
A célebre foto de Ricardo Rangel, o ‘Último Pão’ e a utopia da cidade perfeita.
Olhando assim parece um grupo de amigos, irmãos, em passeio, não fosse pelo uniforme e armas dos dois homens na foto.
A moça parece calma, olha em frente e caminha certa dos seus passos, com a cabeça erguida e exibe um colar de pérolas enrolado vezes sem conta no seu pescoço.
Foi em 1975, Ricardo Rangel estava lá quando aconteceu.
Foram cerca de 3000 cidadãos, recolhidos em Maputo, Beira Nampula e Chimoio os primeiros neste primeiro dia de uma operação que viu o seu fim apenas nos finais dos anos 80.
Era dia 3 Novembro quando o Daily News [Dar es Salaam] anunciou a detenção, pelo regime de Samora Machel, de milhares de moçambicanos acusados de vagabundagem. O destino? Centros de reeducação.
Foto: O Último Pão, Ricardo Rangel, 1975
É importante realçar que foram as mulheres, sobretudo, que sofreram com esta operação pois foi uma ferramenta para controlar a sua sexualidade. Parte desta história foi recontada por Licínio de Azevedo em ‘Virgem Margarida’.
Muitas prostitutas e mulheres solteiras mas com “filhos sem pai” (as chamadas “mães solteiras”) infelizmente morreram no caminho ou durante a sua estadia nesses centros, pelas pobres condições em que eram mantidas. Isto para não falar dos abusos físicos e emocionais a que eram submetidas, fosse pelos seus carcereiros ou transportadores.
As mulheres, especialmente das cidades, com as suas roupas, maquilhagem, saltos altos, e o seu sentido de independência forte entrava em choque com os ideais da época que acreditavam que a mulher rural, atarefada com os afazeres domésticos, fiel ao seu marido e aos seus filhos, era o protótipo.
Assim, quanto mais longe deste padrão, maior risco estas mulheres representavam ao regime pois poderiam “infestar” o país.
É difícil falar nos Centros de reeducação porque as feridas ainda estão abertas. Fonte: DW
Tendo como ponto de partida o puritanismo católico herdado do regime colonial Português, Moçambique independente tentou também separar os “cidadãos de bem” dos restantes.
E, como um bom regime socialista faria, fê-lo através do trabalho.
Nos centros de reeducação, os reeducandos eram responsáveis por lavrar a terra; construir a sua própria casa; cozinhar e aprender algum ofício de modo a poderem reintegrar a sociedade.
Aliada à estratégia dos Centros de Reeducação, implementou-se também a Operação Produção em 1983, com o intuito de garantir a subsistência de todo o país e aumentar a população em zonas desabitadas. Até aí, tudo bem.
No entanto a própria Operação Produção também se usou de “improdutivos” para arrancar, forçando pessoas a saírem dos meios urbanos (especialmente Maputo) para zonas rurais em outras províncias (especialmente para Niassa e Cabo Delgado) a fim de lá habitarem e produzirem.
Os “improdutivos” eram todos aqueles que, durante as rusgas, eram encontrados sem documentos de identificação e/ou não conseguissem provar que estudavam ou trabalhavam, ou seja, que eram úteis para o Estado.
“Vinte pessoas numa família e quem trabalha é uma pessoa só. E são adultas! A quantidade é grande que come.(…) De todas estas zonas vinha dantes o tomate, a couve, o repolho, a cebola, a batata, o arroz, o milho, o feijão, a mandioca, a alface, a banana, tudo aquilo que esta cidade consumia. É isto que vamos produzir!” – Samora Machel
Contudo, é importante realçar que enquanto os reeducandos – os que sobreviviam – que mostravam que tinham mudado o seu estilo de vida podiam voltar para casa, aqueles levados pela Operação Produção não podiam regressar à terra natal.
De tal forma que, muitas famílias até hoje vivem separadas. Muitas pessoas são tidas como mortas. Outras já apagaram da sua memória por completo aquilo que deixaram para trás e reconstruíram a sua vida das cinzas que restaram.
Estima-se que entre 50 a 100 mil pessoas tenham sido deportadas de Maputo para o meio rural durante a Operação Produção. Fonte: DW
Hoje em dia há um certo saudosismo ao recordar a pessoa e Presidente que foi Samora Machel, ignorando os erros que cometeu em nome das suas utopias.
Uma dessas utopias é a da “purificação das cidades”, evidenciada através dessas duas estratégias que em muito feriram cidadãos moçambicanos.
Não nos esqueçamos do “último pão”. Nessa foto vemos dois agentes de um regime altamente repressivo a prender uma mulher, levando-a sabe-se lá para onde. O que acontecerá com ela fica na nossa responsabilidade; se ela vive ou se ela morre na nossa memória, na nossa História.
Foi há 40 anos que Moçambique se tornou um país independente, governado tendo em conta os seus próprios interesses e para o seu próprio povo.
No entanto, a herança colonial até hoje está bastante presente.
A auto-imagem que temos é na verdade um reflexo do que nos foi ensinado sobre nós mesmos durante os anos de ocupação europeia no território Africano.
É comum entre nós, especialmente para as pessoas mais velhas que viveram o período colonial, reforçarem alguns mitos sobre os africanos: os africanos são preguiçosos; os africanos não têm tanta capacidade intelectual como os europeus; os africanos servem apenas para trabalho braçal; etc.
Por outro lado, também existe um discurso de saudosismo ao tempo colonial, que glorifica os horrores e opressões por que passavam todos os dias as populações africanas durante esse período.
E acima de tudo, herdamos muito da forma de estar, de ser e fazer do colono.
A luta pela descolonização continua. Fonte: Público
Embora exista a União Africana, os blocos regionais e aqueles definidos pela língua são os que têm mais peso. Ainda nos definimos como lusófonos (os que falam Português); francófonos (os que falam Francês) e Anglófonos (os que falam inglês), e deixamos de lado as nossas restantes línguas, que representam a maioria da população e provavelmente os elos mais fortes que nos ligam.
A recente crise nos Camarões centra-se sobretudo na fricção entre camaronenses “francófocos” e camaronenses “anglófonos”, o que evidencia até que ponto essas identidades forjadas até hoje se fazem sentir.
A crise dos Camarões prende-se com identidade. Fonte: Crisis Group
A verdade é que as próprias fronteiras não existiam e por isso, juntaram-se nações, repartiram-se outras para formar os países que hoje conhecemos.
Os poderes coloniais impuseram desta forma as suas línguas, costumes e culturas nos povos africanos. Desse processo houve mudanças sociais políticas e económicas que alteraram para sempre o destino dessas nações.
Portanto os conflitos étnicos/ tribais surgem como resultado dessas disputas: espaço legitimidade; recursos; etc.
Um outro exemplo marcante do colonialismo europeu é a réplica do funcionamento das insituições do Estado, até nas suas vestes.
Nos países outrora ocupados pela Grã-Bretanha, por exemplo, as formas de tratamento nos tribunais, o funcionamento dos mesmos e até mesmo o vestuário dos Juízes parecem ter saído do séc. XIX.
Membros do Poder Judiciário no Malawi, Nigéria e Ghana, entre outros países africanos ainda usam o traje tradicional britânico. Fonte: The Independent UK
Uma das marcas mais fortes do colonialismo europeu em Moçambique é a institucionalização das “boas maneiras” e da “decência” especialmente na Função Pública, que é claramente herança do puritanismo católico.
As instituições públicas, na altura em que Moçambique estava ocupado pelos Portugueses, eram reservadas apenas aos europeus ou a alguns negros – os assimilados, que tinham alguns privilégios uma vez que eram “civilizados”.
Até hoje nas repartições públicas não se pode ir de calções, chinelos, blusas de alças ou saias acima do joelho. Estas medidas também são reforçadas em Escolas e até mesmo Universidades.
Recentemente uma imagem tornou-se viral por se tratar do aviso de um hospital. O aviso restringia o vestuário permitido aos utentes, o que é um absurdo, tendo em conta que se trata de um hospital.
Isto é novamente a reprodução do discurso do colono. O cidadão comum, pobre, camponês, tem desta forma o acesso vedado a estes serviços pois não tem roupas para entrar na Esquadra ou no Hospital, nem tão pouco para tratar o seu Bilhete de Identidade. Aliás, nem o rei da Swazi, com as suas roupas tradicionais seria admitido no Hospital!
Este falso moralismo sente-se um pouco por todo o lado. Estas noções de decência e civilização ultrapassadas são usadas até hoje nas nossas sociedades.
Ainda hoje nos inspiramos na legislação, educação, etc das potências europeias para edificar os nossos países “independentes”.
E como resultado, continuamos a reproduzir mecanismos de exclusão e a atrasar o nosso desenvolvimento.
O filme “Lumumba, a morte de um Profeta” de Raoul Peck descreve os acontecimentos em torno da ascensão, declínio e assassinato do Primeiro Ministro democraticamente eleito no Congo.
Com o intuito nem de criar uma imagem idealista e heróica de Lumumba e nem de o crucificar, ou de crucificar as pessoas que permitiram que o seu assassinato acontecesse, o realizador haitiano Raoul Peck criou um filme histórico e comovente sobre a pessoa que foi Lumumba.
Patrice Lumumba lutou por um Congo unido. Para ele, não havia liberdade com divisões tribais ou territoriais e essa era uma das grandes discussões para os partidos da altura.
No filme, Peck consegue contextualizar todos os acontecimentos desde a luta de libertação travada pelo Congo, as figuras políticas que o protagonizaram e os resultados conseguidos.
R. Peck viveu em exílio no Congo e viveu a morte de Lumumba de perto. Fonte: The Culture Trip
Com apenas 12 semanas no poder, Lumumba foi assassinado.
O filme começa com dois homens brancos a carregar cadáveres, a beberem algum licor barato pelo gargalo e posteriormente a equartejarem os corpos sem vida.
Já mais para o fim, vemos esses corpos a arderem. Os restos mortais de Patrice Lumumba até hoje não foram encontrados.
Patrice Lumumba foi um dos fundadores do Movimento Nacional Congolês, o primeiro partido político nativo do Congo em 1958. E desde esse primeiro momento, aliou-se a vários líderes Pan-Africanistas, o que moldou muito a sua visão e ideais nacionalistas.
Por essa altura, outros partidos com ideais variados surgiram no Congo, no entanto nenhum líder era tão carismático, perspicaz e radical como Lumumba.
Na defesa da independência do Congo, ele foi preso e torturado, libertado apenas para participar da conferência em Bruxelas onde se preparou a transição política do Congo. E assim foi, as eleições foram em Maio de 1960, em que o partido de Lumumba saiu como grande vencedor, no entanto não conseguiu formar uma coalizão no Parlamento.
O seu rival, Joseph Kasavubu, ficou então como Presidente e convidou-lhe a ficar como Primeiro-Ministro.
Os dois são completamente diferentes: enquanto Kasavubu é calmo, e tenta manter a relação com a Bélgica pacífica e cordial, Lumumba é impulsivo, orgulhoso e revolucionário.
Uma das cenas em que estas diferenças melhor se manifestam é durante a tomada de posse, em que a Bélgica entrega o poder aos Congoleses, com um discurso condescendente e paternalista, mesmo depois de todas as atrocidades cometidas.
Kasavubu, como Presidente, agradece a bondade e liderança da Bélgica durante os anos de ocupação, e promete não decepcionar enquanto Lumumba, logo a seguir, movido pela raiva e dor do povo congolês, relembra a Bélgica de todo o sangue derramado pela independência e reafirma-se como um líder
O filme capta alguns raros momentos de glória de Lumumba. Fonte: NY Times
Com um território de cerca de 2 345 000 km2 e mais de 80 milhões pessoas, o Congo é um país com diversos grupos étnicos distintos. Esta diversidade sempre foi usada pela Bélgica para separar o povo congolês.
De tal forma que, após independência os principais rivais de Patrice Lumumba e os respectivos partidos criaram várias manifestações e distúrbios para defenderem a libertação de vários territórios tidos como de uma única etnia.
Após a independência o Congo entra em crise.
Moise Tshombe, da etnia Lunda, liderou um movimento separatista com o apoio da Bélgica, chegando a declarar a independência da província de Katanga a 11 de Julho de 1960. Esta província é rica em cobre, urânio e diamantes, entre outros recursos.
Peck mostra-nos como esta crise afecta Lumumba. Ele fica cada vez mais ansioso, dorme pouco, mexe-se muito. Sem apoio dos E.U.A. nem das Nações Unidas, ele recorre à União Soviética para controlar a crise, sem o consentimento do Presidente Kasavubu nem de Joseph Mobutu, Secretário de Estado.
Lumumba fica isolado.
Lumumba foi capturado e assassinado com o apoio da Bélgica, Reino Unido e EUA. Fonte: BBC
Raoul Peck consegue contar todos estes factos históricos de uma forma envolvente e emotiva.
Fica claro que não foi apenas a promiscuidade entre o poder militar e a Bélgica e outras potências ocidentais mas também a própria indisciplina do Exército e o contexto da Guerra Fria, combinados com o temperamento de Patrice Lumumba e sua ingenuidade que culminaram no seu afastamento.
O filme não é apenas sobre o caos e sobre a guerra, é também sobre as forças maiores que qualquer homem e qualquer ideal que ele possa defender: é sobre um pai que não consegue estar lá quando o seu filho ainda bebé morre, sobre um esposo que não está presente quando a mulher precisa.
Patrice Lumumba teve a coragem de se posicionar contra a condescendência ocidental. Ele ousou defender a causa Africana, mesmo sobre o risco de morrer – e morreu. A sua vida foi o seu maior sacrifício.
Morreu herói sim, mas a sua ausência causou prejuízos inestimáveis ao Congo que se fazem sentir até hoje.
Foi a 19 de Setembro de 1903 que o rei Leopoldo II da Bélgica negou as acusações de brutalidade no Estado Livre do Congo e avisou os restantes países europeus para não interferirem no seu projecto.
Aquando da Conferência de Berlim, em 1884/85, o rei fez questão de segurar “o coração de África”. Este era um projecto pessoal e não da coroa belga, como se de um animal de estimação se tratasse.
Com 2 344 milhões de km2, a área do Estado Livre do Congo era 76 vezes maior que a Bélgica. Na altura os estimados 30 milhões de habitantes da região passaram a responder ao rei Leopoldo II, sem nunca sequer ter ouvido falar dele, como aconteceu com grandes nações africanas.
Sem uma constituição nem supervisão internacional, o rei conseguiu domínio sobre o território. Conseguiu fazê-lo por um lado através de jogos de poder, aproveitando os egos frágeis dos outros monarcas europeus. E por outro, usando o discurso paternalista e missionário, afirmando que o Congo era na verdade um Protectorado seu, que vivia sobre a ameaça de invasão árabe.
Na verdade o Congo era domínio seu, pessoal, rico em matéria prima valiosa como borracha e marfim, entre outros recursos naturais, que lhe permitiram acumular bastante riqueza e alimentar os seus vícios fartos.
Por mais de 20 anos o rei Leopoldo causou danos anos no Congo que ecoam até hoje. Fonte: The Espresso Stalinist
Para cada região quem não cumprisse com as exigências do rei era penalizado severamente. As mãos e em algumas circunstâncias os pés dos filhos e mulheres dos homens que não conseguiam atingir as ambiciosas metas de extracção de borracha era cortados.
Este era o castigo mais comuns no Estado Livre do Congo, de tal forma que, as mãos passaram a ser usados como verdadeira moeda. Nas vilas em que a meta não era alcançada, os seus habitantes sacrificavam as mãos das famílias que menos contribuíam.
Guerras e assaltos a vilas vizinhas passaram a ser comuns, fosse para roubar a matéria prima, ou cortar os membros dos seus habitantes para pagar o prejuízo.
Sobre o domínio do rei Leopoldo II, estima-se que o Congo tenha tido a sua população reduzida à metade. Isto deveu-se sobretudo devido a guerras múltiplas; fome; redução da taxa de natalidade e epidemias.
A administração imperialista do rei belga criou mudanças drásticas na forma de viver do povo nativo, trazendo novas doenças; forçando movimentos migratórios; alterando a demografia das vilas e claro, deixando rastos de trauma.
Isto para não mencionar, claro, as situações precárias e brutais a que eram subjugadas as populações. Estas eram obrigadas a vender, a um preço fixo, aquilo que conseguiam e trabalhavam nas minas em tempo integral, como escravos, não recebendo nada por isso.
Adicionalmente eram também obrigados a fornecer comida aos seus colonos e eram proibidos de vender qualquer produto.
O terror e violência eram usados para dominar os habitantes do Congo. Fonte: NY Times
John Harris de Baringa, um missionário em visita ao Congo ficou tão chocado pelo que viu que escreveu uma carta ao Comissário Residente:
“I have just returned from a journey inland to the village of Insongo Mboyo. The abject misery and utter abandon is positively indescribable. I was so moved, Your Excellency, by the people’s stories that I took the liberty of promising them that in future you will only kill them for crimes they commit./ Acabo de regressar de uma viagem pelo interior do país para a vila Insongo Mboyo. A miséria e o abandono total são indiscritíveis. Fiquei tão comovido pelas histórias do povo, Sua Excelência, que tomei a liberdade de promoter-lhes que no futuro haverá mortes somente por crimes que eles cometerem.”
No início do séc. XX, face à pressão externa, o rei Leopoldo II vendeu o Estado Livre do Congo à Bélgica e queimou grande parte do acervo histórico referente ao seu Protectorado.
Nem mesmo no Museu de África, construído pelo rei na Bélgica tem vestígios dos massacres e atrocidades cometidos no Estado Livre do Congo. Ainda prevalece o discurso condescendente dos tempos de glória do colonialismo europeu.
E a República Democrática do Congo, berço de Patrice Lumumba, continua assombrada pelos fantasmas daqueles que sofreram nas mãos do rei belga e tal como outros genocídios em África, este permanece ausente dos livros de História.
Foi a 9 de Agosto de 1956 que a força das rochas se fez sentir na África do Sul.
Na altura o país vivia em regime de Apartheid, que privilegiava a minoria branca, em detrimento da maioria negra. E as mulheres caminharam em protesto em Pretória, na sede do Governo.
Aos brancos, detentores do poder, lhes era concedida educação de qualidade, acesso a hospitais e segurança, e o direito de viver e ocupar qualquer espaço. Já os negros não podiam circular livremente no território sul-africano, tendo os seus espaços devidamente delimitados.
Numa histórica marcha, que juntou cerca de 20 000 pessoas em Joanesburgo, as mulheres protestaram contra o uso de passes.
Na época, a legislação sul africana exigia que todos os cidadãos não brancos provassem que tinham autorização para frequentar as áreas reservados aos brancos.
Os passes eram documentos que definiam os limites de circulação para os cidadãos não brancos na África do Sul, impedindo-os de andar livremente nos centros urbanos e estipulando zonas e horários onde podiam estar.
Os passes serviam para segregar as cidades através da gestão do meio urbano e do controle do êxodo rural. Com os passes, o regime controlava as entradas/ saídas das cidades, impedindo jovens negros de procurar emprego melhor nas cidades, bem como de encontrar melhores hospitais ou escolas.
Estas leis não só dificultavam o desenvolvimento emocional, social e intelectual das populações não brancas, como também impediam, de forma deliberada, que os poucos que conseguissem quebrar algumas barreiras se sentissem como os brancos.
Muitos homens negros eram presos, torturados ou mesmo assassinados quando encontrados nas zonas reservadas aos brancos sem os passes. Assim, era comum, nas zonas adjacentes às cidades, nos bairros periféricos habitados pela mão-de-obra que durante o dia trabalhava nas zonas reservadas aos brancos, que muitas mulheres ficassem a cargo da subsistência da família.
As mulheres tiveram um papel central para o fim do Apartheid. Fonte: Africa.com
À semelhança do que aconteceu com outros países, na África do Sul, a ausência dos homens fez com que a estrutura familiar tradicional mudasse radicalmente. Os papéis de género foram desafiados e as mulheres passaram a ter uma posição mais central, com poder de decisão.
Como um sistema racista, capitalista e patriarcal, as mulheres negras eram o grupo mais oprimido. Eram elas que ocupavam os piores postos de trabalho, que viviam nas piores condições e que eram ainda responsáveis pela segurança e subsistência dos seus filhos.
Obrigando as mulheres negras a usarem os passes, o regime estava a empurrá-las para longe das cidades.
We, women, will never carry these passes. This is something that touches my heart. I appeal to you young Africans to come forward and fight. These passes make the road even narrower for us. We have seen unemployment, lack of accommodation and families broken because of passes. We have seen it with our men. Who will look after our children when we go to jail for a small technical offence — not having a pass?//
Nós, as mulheres, jamais andaremos com estes passes. Isto é algo que me toca o coração. Eu apelo a vocês, jovens africanas que avancem e lutem. Estes passes tornam a estrada ainda mais dura para nós. Nós vimos o desemprego; a falta de alojamento e famílias desfeitas por causa dos passes. Nós vimos com os nossos homens! Quem irá olhar pelos nossos filhos quando nós formos para a cadeia por uma pequena infracção- não ter o passe? – Dora Tamana, durante o protesto em 1956
As mulheres não queriam mais ter um papel submisso, pelo contrário, estavam dispostas a ir à luta para ter mais direitos e foi por isso que rapidamente as mulheres estiveram na vanguarda da resistência anti-apartheid.
A opressão racial levou as mulheres a não só ganhar consciência da sua cor de pele, mas também do seu género. Esta consciência deu vida a um movimento que se fortaleceu e não se calou.
Mulheres de todas as raças e credos juntaram-se ao protesto. Fonte: GENI
Foram mulheres como Lilian Ngoyi,Helen Joseph, Rahima Moosa e Sophia Williams-de Brun, que tornaram o movimento possível, mobilizando mulheres de todo o país para saírem das suas casas e invadirem as ruas em protesto.
As quatro mulheres e o seu exército mostraram o poder que têm quando unidas: foram 100 000 assinaturas numa petição para entregarem ao Primeiro-Ministro da altura.
Mesmo em silêncio com os filhos nas costas, elas não se deixaram intimidar. Mesmo sobre o risco de perderem os seus empregos, mesmo arriscando as próprias vidas, elas foram à rua.
Mesmo enjauladas em cadeias, como Winnie Mandela, estas verdadeiras rochas fizeram uma muralha inquebrável que inevitavelmente derrubou o regime do Apartheid.
Recentemente nos Estados Unidos da América tem havido um debate sobre políticas afirmativas no que toca às admissões em Universidades, que de alguma forma podem estar a prejudicar os cidadãos americanos descendentes de asiáticos.
No centro do debate está a questão da necessidade de tais políticas e dos beneficiários.
Mas afinal de contas, o que são políticas afirmativas?
As políticas afirmativas são mecanismos usados para promover a inclusão e/ou protecção de um determinado grupo social que de outra forma, seria excluído e/ou privado de exercer um determinado direito. Geralmente as políticas afirmativas são direcionadas a afrodescendentes; mulheres; homossexuais, idosos; portadores de deficiência; etc.
Estes grupos são tratados de forma desigual em diversos sectores, e por isso as políticas afirmativas visam reparar essas disparidades de modo a criar condições para, a longo prazo, não ser preciso reafirmar os seus direitos.
Numa sociedade desigual em que há disparidades entre os diferentes grupos não podemos ignorar que a Constituição por si só é insuficiente para proteger todos os cidadãos.
Bem sabemos que há grupos distintos que sofrem violências diárias e não são protegidos pela Lei, e por isso é preciso criar outras leis para protegê-los e colocá-los em pé de igualdade com os restantes grupos sociais.
As acções afirmativas no mercado de trabalho. Fonte: JUS
Por exemplo, em 1984 a União Europeia incentivou a inclusão e participação das mulheres no mercado de trabalho, em todos os sectores profissionais e em todos os níveis de liderança.
Desde então todos os Estados Membros têm criado mecanismos não só para encorajar a participação das mulheres, tais como por exemplo premiar empresas, como também para aproximar os salários de homens e mulheres.
A Índia, por sua vez, na primeira metade do séc. XX, aquando da sua independência introduziu um sistema de quotas para garantir acesso a empregos públicos e vagas em universidades a castas desprivilegiadas.
Este ano foi eleito um presidente Dalit, com 65% dos votos, Ram Nath Kovind, que segundo a cultura indiana é a casta mais inferior, dos ‘intocáveis’.
Implementar políticas afirmativas é negar o princípio de igualdade?
Não, pelo contrário, é admitirmos que existem sim desigualdades e ignorar essas diferenças na nossa sociedade seria admitirmos a nossa cumplicidade com a perpetuação dos modelos actuais.
Se não encararmos a realidade corremos o risco de assistir, tal como aconteceu em séculos passados e começa agora a reaparecer, a manifestações explícitas de intolerância e preconceito. Estas manifestações são levadas a cabo sobretudo por grupos privilegiados que pretendem manter o status quo, deixando os grupos marginalizados aquém do seu potencial de desenvolvimento.
Por outro lado, há que reconhecer a necessidade de oferecer equidade.
Cada cidadão cresce e se desenvolve num determinado grupo, onde tem acesso a certas oportunidades. Um cidadão que é educado em escolas privadas, nas férias viaja para o exterior; tira cursos de inglês na infância; tem acesso a computadores e internet, já tem uma vantagem na Universidade quando comparado a um cidadão que sempre estudou em escolas públicas, com pouco acesso a outras realidades ou línguas.
Por isso as políticas afirmativas procuram compensar essas circunstâncias que afectam aqueles em desvantagem, criando mais equidade.
Existe meritocracia numa sociedade desigual? Fonte: Estadão
Por exemplo, um pouco por todo o mundo há que aceitar que existem grupos sistematicamente excluídos do mercado de trabalho, como é o caso dos portadores de deficiência física.
Quando foi a última vez que você viu uma professora com deficiência física? Quantas médicas você conhece que sejam portadores de uma deficiência física?
Talvez se houvesse uma política de afirmação que garantisse a este grupo o acesso a educação superior e/ou o acesso ao emprego, poderíamos ver estas pessoas a ocupar tais postos.
Finalizando, a razão de existir das políticas afirmativas é aumentar as oportunidades para cidadãos historicamente discriminados. As políticas servem para equiparar todos os cidadãos, de forma a assegurar uma vida digna a todos.
O Presidente francês fez alguns comentários recentemente sobre o estado actual de África que despontaram grandes debates.
Durante a cimeira dos G20, quando um jornalista da Costa do Marfim perguntou sobre a possibilidade da implementação de um programa em África como o Plano Marshall (Europa) , o Emmanuel Macron afirmou que os problemas enfrentados actualmente pelo continente africano são completamente diferentes, pois são civilizacionais e mais tarde ainda refere-se ao facto de as mulheres terem 7 a 8 filhos como um factor central para o sub-desenvolvimento do continente.
Bem, primeiramente, a taxa de fecundidade a nível do continente é de 4,45 filhos por mulher segundo dados da ONU de 2009. O único país Africano perto do número referido por Macron é o Níger, em que cada mulher tem em média 7,6 filhos.
Depois, vários foram os estudiosos que confirmaram que não é o sobre-povoamento que causa pobreza, mas sim a pobreza que causa sobre-povoamento. Ou seja, sociedades com níveis de literacia baixos e pouco acesso a serviços de saúde de qualidade estão mais predispostas a fazer muitos filhos. Pelo contrário, se esses “muitos filhos” conseguirem viver num ambiente mais propício ao seu desenvolvimento, provavelmente farão menos filhos.
Para além disso, a ideia em como recai na mulher todo o peso do desenvolvimento de um país inteiro é não só machista, como distrai-nos de questionar o papel de políticas imperialistas e neo-colonislistas em vigor nos países africanos.
Macron não é diferente dos restantes líderes ocidentais. Fonte: This is Africa
Macron, ainda nessa resposta fala no combate à corrupção e em melhor governação.
Nos últimos 50 anos África assistiu a mais de 26 golpes de Estado (ou quase isso) sendo que 16 destes aconteceram em países que tinham sido colónias francesas.
Adicionalmente, até hoje 14 países africanos “francófonos” pagam €440 bilhões anualmente para a França. Estes países devem pagar 85% das suas reservas em moeda estrangeira ao Banco Central Francês.
Ou seja, a política externa da França no que toca aos países africanos mostra que ainda é baseada numa visão colonialista, em que os países “francófonos” são uma extensão do seu território na Europa.
O papel da França no genocídio de Ruanda, no assassinato de Thomas Sankara e mais recentemente na morte de Gaddafi, ainda que por esclarecer, mostra como a França tem agido tendo em conta os seus próprios interesses e não o crescimento e desenvolvimento do continente africano.
Isto evidencia o papel da França no sub-desenvolvimento de África e de África no desenvolvimento da França.
Por que são tão importantes as ex-colónias africanas para a França? Fonte: Mail & Guardian
A instalibilidade do continente é em grande parte resultado da interferência ocidental em África.
Tudo o que foi dito por Macron – ou grande parte – é verdade, mas não é o problema, não é a doença. São apenas sintomas: Estados descredibilizados; conflitos armados constantes; fraco controle da natalidade; etc.
Estas verdades são a parte material, a parte visível. Mesmo se esses sintomas não estivessem lá teríamos outros, e precisaríamos de ajuda à mesma.
Foi o Ocidente que instalou estes regimes corruptos para melhor manipularem os povos e servirem os seus interesses e depois vêm aqui falar em corrupção e boa governação. Isto para não mencionar as medidas racistas anti-imigração que implementam na Europa para impedir-nos de fugir à Pobreza e miséria.
É muita hipocrisia – ou ignorância – Macron sentar-se no topo da montanha de dinheiro arrancada aos países africanos, com o seu vinho francês e falar de África como um fardo que ele carrega.
Macron não vê os países africanos como parceiros de negócios, mas sim como bebés ricos que precisam de ajuda a gerir os recursos.
Quando a França começar a falar em reparações pelos danos humanos e materiais que causou com a sua ocupação no continente africano; quando a França parar de deixar africanos morrerem no Mediterrâneo em busca de uma vida melhor; quando a França devolver o dinheiro de África que tem nos seus cofres, bem como arte nos seus museus, aí sim vamos falar em “civilização“.
O problema com o “complexo de salvador branco” em África. Fonte: Ventures Africa
Contudo, a maior decepção acho que foi mesmo para quem aplaudiu e se jubilou com a sua eleição.
Afinal de contas, Emmanuel Macron criou esta imagem carismática, com os seus olhos claros e sorriso fácil. Quebrando protocolo de vez em quando, para lembrar ao público da sua humanidade e sejamos francos, com o oponentes que ele tinha, seria difícil se não tivéssemos caído no seu jogo de sedução.
Mas a verdade é que ele é apenas tão liberal como outro presidente ocidental branco qualquer. Ele provavelmente só não diz as coisas racistas e xenófobas que o Trump diz para não ferir susceptibilidades, mas ri-se das piadas no seu íntimo e agradece por haver alguém que diga essas coisas em voz alta.
Macron não é diferente dos nossos amigos estrangeiros, brancos, imigrantes (ou talvez diria expatriados) vindos do Ocidente que adoram África e contam histórias fantásticas de todos os países africanos que visitaram e do trabalho que as ONGs para quem trabalham/ trabalharam faz e até lêem Chimamanda Adichie ou Chinua Achebe porque “literatura africana é fascinante”.
Mas esses nossos amigos vivem nos melhores bairros das nossas cidades; recebem muito acima da média e têm regalias que lhes permitem viver de forma luxuosa, mesmo no meio de tanta Pobreza e sendo a ‘voz dos desfavorecidos’.
Ao jantar com amigos falam das decepções de viver num país em que nada funciona e em que não se pode confiar sequer na polícia, e levam as empregadas fardadas aos restaurantes enquanto discutem os direitos das mulheres.
Macron se encaixaria perfeitamente nessas conversas e provavelmente falaria da crise da caça furtiva e da pena que é ir aos safaris e não ver elefantes. Falaria também do quão gosta da comida local e da hospitalidade onde quer que vá, mas jamais faria a relação entre isso e a cor da sua pele.
Enfim, Emmanuel Macron, aquele amigo europeu branco que contribuiu 1 dólar para uma ONG qualquer, daquelas com fotos de crianças mal nutridas nas assinaturas dos emails para limpar a sua alma da culpa que o seu capitalismo e condescendência lhe trazem.
Como a História que nos ensinam deturpa a realidade dos tempos que se foram.
No nosso imaginário a “vida na quinta de escravos” ou a “vida na colónia” era cheia de alegrias e tempo livre para correr, brincar, namorar. Lá as senhoras brancas confidenciavam nas suas amas de leite, que depois de apaixonavam pelos seus patrões brancos e desse amor proibido nasciam filhos mestiços.
As crianças, tanto brancas como negras, eram livres para correr, brincar e comer. Podiam ir à praia ou comer os frutos silvestres que caíam das árvores.
Ah! Como eram bonitos, os bons e velhos tempos!
Esse saudosismo barato que glorifica as atrocidades cometidas pelos países colonizadores e sociedades esclavagistas é muito comum e começa cedo.
Durante a infância, as crianças são ensinadas a fazer uma interpretação romântica da Escravatura e do Colonialismo.
Os livros escolares trivializam as questões de violação de direitos humanos. Adicionalmente, não fazem uma leitura fidedigna da natureza das relações de poder e das violências levadas a cabo pelos países colonizadores.
Assim, as crianças crescem sem uma visão fiel da História e perpetuam os ideais imperialistas e racistas que até hoje regem o mundo.
Os Portugueses sabem pouco do seu Passado Colonial. Fonte: Diário de Notícias
Na África do Sul recentemente a deputada Helen Zille do principal partido da oposição (Aliança Democrática) elogiou o legado do Colonialismo.
Segundo ela, foi graças ao sistema colonial que a África do Sul conseguiu ter grandes infraestruturas (hospitais; rede de transportes; etc). Mas, para quem eram tais infraestruturas? Quantas pessoas tiveram de morrer para construir tudo isso? E até hoje, quem tem acesso a tais infraestruturas?
E sobretudo, é importante referir que tais construções tiveram um preço muito alto, demasiado alto. Apenas em 1994 a África do Sul se libertou das correntes do Apartheid, que deixaram a população negra sul-africana estruturalmente desfavorecida.
É a população negra que ocupa os cargos mais precário, que faz o trabalho mais pesado; que vive nas zonas mais vulneráveis tanto para a sua saúde como para a sua segurança e obviamente, é a população negra quem tem menos acesso a Educação Superior.
Taxativamente falando, é esse o legado do Colonialismo.
Maputo (Lourenço Marques) no tempo colonial.
Maputo (Lourenço Marques) no tempo colonial.
A imagem e fotografia que se dá ao Colonialismo sempre é aquela dos tempos de glória, em que as cidades andavam limpas e os restaurantes eram bem frequentados (leia-se aqui, na altura em que os pretos não podiam lá estar).
É esta mesma imagem que vemos recriada em hotéis, restaurantes, revistas, filmes, etc.
Essas imagens reforçam a ideia de “exótico” e “étnico” que se usam frequentemente para descrever as populações negras. São retratos que reflectem a saudade e vontade de reviver tempos que na verdade foram sombrios e de muita dor para quem foi oprimido durante séculos.
Essas reconfigurações da memória colonial não só a deturpam, como a validam. O mito vira facto.
Para além disso, reflectem também como na nossa sociedade o racismo e o colonialismo é visto como algo ultrapassado. É impensável haver um café, num hotel, com nome de “Café Nazi”, como existe em Lisboa o “Café Colonial“.
No entanto, o Colonialismo foi também um sistema de domínio que definia uma determinada raça como superior à outra; um sistema que limitava as liberdades das raças tido como inferiores; um sistema que perseguia, torturava e matava aqueles que se opunham ao poder. Tal como o Nazismo, o Colonialismo foi perverso, violento, nocivo.
Embora com objectivos distintos, ambos sistemas deixaram marcas que se fazem sentir até hoje.
Designer paquistanesa Aamma Aqeel foi criticada pela coleção “Be My Slave” (Seja meu escravo): Fonte: Clutch Magazine
Mas a nostalgia colonial está também presente nos países hoje independentes.
Por exemplo, até recentemente havia uma discoteca chamada “Sanzala” na Baixa de Maputo. Isto evidencia a insensibilidade com que se trata a escravatura no país e a falta de conhecimento do horror e violência a que as pessoas escravizadas eram submetidas.
No Brasil também são comuns as referências à escravatura. No ano passado uma quinta que fazia encenação da vida dos escravizados (incluindo torturas) foi denunciada e obrigada a encerrar o “entretenimento”.
No Brasil é pertinente explorar melhor a Lei Áurea. Fonte: Brasil Escola
É importante contar a História tal ela aconteceu. Houve exploração, violação, dominação dos povos africanos. Houve desmando e abuso.
O Colonialismo e a Escravatura foram processos dolorosos que não só dizimaram pessoas, mas também culturas. As nações foram roubadas e impedidas de se desenvolverem, de usar os seus nomes e as suas línguas.
Cabe-nos a nós reconhecer e falar das atrocidades cometidas com a devida seriedade sem crises de consciência.
Quem dirá ao Rei, cheio da sua vaidade, que ele está na verdade nu?
Era uma vez um rei muito vaidoso que vivia rodeado de luxo num reino em que os plebeus viviam na miséria.
Conhecido pelos seus trajes extravagantes, o rei é abordado por dois aldabrões (certamente moçambicanos) que dizem ter um tecido muito belo, visto apenas por pessoas inteligentes e requintadas.
O Rei permitiu que os dois tirassem-lhe as medidas e dali a alguns dias eles apareceram com o “fato”. O Rei não via nada, mas também não queria dar a entender que não era inteligente ou requintado, por isso confirmou que o tecido de facto tinha uma qualidade superior.
Depois de fingir que vestia o fato, já que era invisível, o Rei encheu os aldrabões de elogios, que em troca aplaudiram a sua elegância. Rapidamente a notícia se espalhou: O Rei tinha um fato especial, de qualidade superior, visível apenas aos olhos de quem fosse inteligente e requintado.
Então certo dia o Rei decide sair às ruas com o seu fato especial. Todos admiraram o fato, pois não queriam passar por ignorantes até que a criançada começou a rir e a gritar “O Rei vai nu! O Rei vai nu!”, e todos se espantaram, porque de facto ele estava nu. E todos se riram dele.
O Rei fugiu envergonhado para o seu Palácio.
O Presidente sul-africano Zuma vai nu sem alguém que lhe diga a verdade. Fonte: Brett Murray
É assim também por aqui, na vida real, nas nossas pseudo-democracias. Meio-ditaduras. Os nossos reis estão nus. Só que ninguém lhes diz.
Segundo o mais recente relatório sobre a liberdade de imprensa, muitos governos têm usado estratégias mais subtis para ameaçar e intimidar os cidadãos de modo a evitar críticas.
Em África, apesar do avanços nos anos mais recentes ainda temos um longo caminho para fazer.
A investigadora é acusada de assédio moral contra o Presidente e a Primeira-Dama. Fonte: The Guardian
Esta semana, a activista ugandesa Stella Nyanzi questionou na sua página de Facebook, o que terá sido das crianças que apontaram o óbvio.
Será que foram mortas por ordens do rei? Será que a multidão voltou-se contra elas e tentou fazer com que elas vissem as roupas invisíveis por terem medo do rei? Ou receberam o amor dos amigos? O que acontece a quem diz a verdade em regimes maléficos?
Com um PhD em Antropologia Social, Stella Nyanzi é investigadora nas áreas de sexualidade; saúde sexual e reprodutiva; racismo e medicina alternativa, entre outras.
No Uganda, onde o Presidente Museveni ocupa o mesmo cargo há mais de 30 anos, Nyanzi já foi presa várias vezes por protestos pacíficos e pelas críticas severas ao regime.
Em Moçambique, pelo trauma dos conflitos vividos, temos muito medo de falar, pois não queremos mais violência. A sociedade como um todo promove o silêncio e entretenimento que distraia e não questione o status quo.
No entanto, há sempre quem tenha coragem de levantar a voz. Uma dessas pessoas é o rapper Azagaia, famoso pela música de intervenção que faz.
Depois das manifestações populares de 2008, o músico lançou a música “Povo no Poder” que resultou numa intimação pela Procuradoria Geral da República por supostamente “atentar à segurança do Estado” e “incitar a violência”.
Nos anos mais recentes jornalistas; investigadores; juristas; seqüestradores foram assassinados em circunstâncias duvidosas. É o exemplo de Gilles Cistac, um jurista, baleado em 2015 ao entrar num táxi na cidade de Maputo.
Gilles Cistac entra para a lista de pessoas assassinadas em Moçambique por motivos políticos. Fonte: The European Magazine
Tal como eles, um pouco por todo o mundo, as liberdades de expressão dos cidadãos são cada vez mais limitadas.
Em Angola por lerem e debaterem um livro, activistas foram presos e julgados no que ficou conhecido como o caso 15+2.
No entanto, no mesmo país recentemente os deputados decidiram importam carros de luxo no valor de mais de 75 milhões de dólares americanos. Simultaneamente, num hospital da capital, Luanda, as mulheres grávidas e recentes mães são obrigadas a partilhar as camas ou dormir no chão.
Os reis estão mesmo nus. E ninguém faz nada.
Em “democracias” frágeis, como grande parte das democracias africanas, as ameaças a quem questiona quem está no Poder são evidentes.
Até quando deixaremos o medo travarem as nossas vozes?