Chimamanda e as mulheres trans

Recentemente a autora nigeriana Chimamanda Adichie levantou polémica ao comentar os privilégios de mulheres trans.

A escritora nigeriana Chimamanda Adichie, autora de Americanah nos últimos cinco anos tem vindo a destacar-se pela forma peculiar como conta a experiência de emigrante africana e de mulher negra no mundo, abordando temas como o feminismo, racismo e africanidade entre outros.

Para quem vive da fama há a exigência de se ser um cidadão exemplar, sempre bem informado e capaz de guiar as massas na direcção certa. Ser fã passou a ser religião. Há uma verdadeira adoração das figuras mais famosas da cultura pop.

Muitos artistas de facto usam do espaço que têm para chamar a atenção a temas importantes e envolvem-se até em campanhas eleitorais.

Vejamos por exemplo Beyoncé, ao longo dos anos ela tem vindo a dar mais do que simples entretenimento, através do seu trabalho ela procura dar mais voz às mulheres e ao movimento negro nos E.U.A.

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Beyonce tem vindo a mostrar mais o seu lado activista – Fonte: The Huffington Post

Numa entrevista recente Adichie, ao comentar a experiência de pessoa transgénero fez uma leitura demasiado biológica, partindo de uma clara falta de conhecimento sobre o assunto.

Segundo ela, mulheres transgénero e mulheres cisgénero não devem ser olhadas como uma só. Até aí tudo bem, pois existem especificidades que dizem respeito a apenas um grupo.

A polémica vem por ela afirmar que uma mulher cis, isto é, uma mulher que nasceu biologicamente com um corpo identificado como feminino, cresceu com menos privilégios que uma mulher trans, uma mulher que nasceu biologicamente com um corpo identificado como masculino.

Para a autora as mulheres trans em algum momento usufruem do espaço concedido aos homens cisgénero.

“(…) I don’t think it’s a good thing to talk about women’s issues being exactly the same as the issues of trans women, because I don’t think that’s true./  Eu não acho um boa ideia  falar das questões de mulheres como sendo exactamente as mesmas que mulheres transgénero, porque eu não acho que isso seja verdade.” – Chimamanda Adichie

Sim, ela errou. Ela falou de algo sem entender a complexidade da vida de uma mulher transgénero. Falou de forma equivocada sem antes fazer o trabalho de casa, assumindo até que a expressão “mulher” não inclui a própria mulher trans.

Mas o que mais me surpreendeu foi ler as críticas e julgamentos feitos à pessoa e não ao que a pessoa disse. Houve uma tentativa de desqualificação intelectual, como se tudo o que ela tivesse dito, escrito, feito até à data fosse irrelevante face às suas palavras.

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Chicanada reforçou a sua defesa pelos direitos LGBT após a polémica – fonte: Facebook Chimamanda Adichie

Calma aí.

Acredito que podemos aproveitar a oportunidade para ter um debate alargado sobre a vida de mulheres trans. Uma oportunidade para perceber como essa realidade é vivida na Nigéria, de onde vem Chimamanda, e em Moçambique, por exemplo, no Brasil, nos E.U.A, em Portugal, etc.

Quem são as mulheres trans? De onde vêm? Onde estão elas?

Laverne Cox, mulher trans norte americana famosa pelo seu trabalho como atriz em “Orange Is The New Black” partiu do comentário de Adichie para reflectir sobre a sua vivência e os seus privilégios.

Segundo ela, na sua infância ela nunca pôde de facto aceder aos privilégios concedidos aos meninos por ter sido sempre demasiado afeminada, de modo que o seu comportamento era constantemente policiado por todos à sua volta.

“There’s no universal experience of gender, of womanhood. / Não existe uma experiência universal de género, de feminilidade.” – Laverne Cox

Acredito que é necessário nos aprofundarmos sobre as diferentes realidades dentro do(s) género(s) em questão.

Tal como existe uma diferença entre nascermos e sermos reconhecidas como mulheres cis negras, também existe uma diferença na forma como as mulheres cis brancas nascem e são reconhecidas. Ou seja, mesmo dentro do grupo de mulheres cis existem experiências variadas marcadas por raça, condição social e mesmo local.

Então não deve ser tão difícil assim conceber um mundo em que as mulheres cis e as mulheres trans tenham experiências diferentes, tal como Chimamanda defende. No entanto essas diferenças vão para além da biologia e englobam factores sociológicos.

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Laverne Cox sonha com a abolição do sistema binário – Fonte: Twitter Laverne Cox

Vivemos em tempos em que facilmente se parte para a idolatração de certas figuras, como se de verdadeiros Deuses se tratassem, incapazes de cometer erros ou ter ideias pouco populares.

Rapidamente, quando os nossos Deuses nos decepcionam deslegitimizamos todo o trabalho feito ou por fazer.

Tal como Beyonce é muitas vezes questionada e criticada por não se declarar feminista ou por supostamente usar-se do feminismo para lucrar, chegou a vez de Chimamanda Adichie também ter esse banho de pedras.

Um outro ponto relevante é a nossa própria humildade e o reconhecimento do direito ao erro do outro. Não existe perfeição. Todos nós somos criados dentro de uma sociedade com determinados valores e ideais que inevitavelmente moldam a forma como olhamos o mundo, daí não existir um activista perfeito, que sabe tudo e faz tudo bem.

Que possamos aprender com esses erros para nos aprofundarmos sobre assuntos variados dentro dos vários movimentos sociais com os quais nos identificamos.

O grande desafio que temos não é o de os nossos Deuses errarem, mas sim a nossa incapacidade de usar tais erros como catapultas para debates importantes que precisamos de ter enquanto sociedade.

 

 

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