Chimamanda, de novo

Chimamanda, de novo

Meu terceiro livro da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, desta vez “Purple Hibicus” (Hibisco Roxo).

Tive o prazer de ler este livro num vôo de 16h e não fosse por ele, não sei se teria sobrevivido à viagem!

A história segue uma família pelos olhos de Kambili, a filha de 15 anos. Apesar de ser um homem respeitado na sua comunidade, o pai é abusivo dentro da sua casa para com a sua esposa e os seus filhos.

Kambili é uma adolescente em conflito: ela idolatra o pai, admira o seu carácter e faz de tudo para ganhar o seu respeito e aprovação, mas por outro lado, também cultiva um medo profundo por ele e sabe que o que ele faz não está certo.

O título do livro vem da flor que a sua tia tinha no seu quintal em Enugu, onde Kambili e o seu irmão Jaja se tornaram livres, o hibisco roxo.

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O livro começa como um filme de suspense. Embora não saibamos ainda o que se passa, dá para sentir que algo está mal. Uma energia pesada no ar. O abuso nunca é directamente referenciado, apenas a descrição do sofrimento: os gritos, as marcas, a loiça partida e todo o trauma que permanecia.

Até o abuso de poder do Estado aparecia apenas como uma força invisível, mas omnipresente.

A religião também aparecia como uma força abusiva e opressiva.

E no olhar de Kambili, a filha mais nova, vamos descobrindo tudo isso na sua inocência. Sem as palavras certas, sem a maturidade para reconhecer as diferentes violências e sem o apoio necessário para denunciá-las.

Eugene ou simplesmente Papa, um homem defensor dos direitos humanos, um empresário de sucesso, um católico exemplar e ao mesmo tempo um esposo abusivo, um pai violento, um filho reprovável, um irmão ausente.

A tirania do pai, Papa, pode ser assemelhar até à tirania da Nigéria, como Estado: em casa, é um homem poderoso e temido por todos, que se usa do seu lugar de poder para abusar física e verbalmente de toda a sua família. E lá fora, é um homem poderoso e admirado por todos, que usa do seu lugar de poder para ajudar e desenvolver a sua comunidade.

Aliás, Papa não se diferente de muitos líderes africanos aplaudidos e premiados internacionalmente, mas déspotas impunes a nível doméstico. Os abusos de muitos desses tiranos eram conhecidos, no entanto, era conveniente ignorar as evidências pelos ganhos individuais (com especial atenção a parcerias econômicas – papo para outro dia).

E Papa, embora tentasse esconder, deixava sempre marcas visíveis do abuso que impunha sobre os seus.

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Embora mais tarde Kambili consiga encontrar as palavras certas, a sua vontade de reconciliação e aprovação são mais fortes.

Eu adorei o livro porque Adichie consegue humanizar até o pior do vilões. É fácil odiar e nos colocarmos num patamar superior, assumirmos que temos um compasso moral mais digno… A prática da empatia é um exercício doloroso. Mas com as palavras de Adichie, é possível entender e quiçá até perdoar o pai abusivo.

Se nós estivéssemos na mesma posição, seríamos diferentes?

 

Chimamanda e as mulheres trans

Recentemente a autora nigeriana Chimamanda Adichie levantou polémica ao comentar os privilégios de mulheres trans.

A escritora nigeriana Chimamanda Adichie, autora de Americanah nos últimos cinco anos tem vindo a destacar-se pela forma peculiar como conta a experiência de emigrante africana e de mulher negra no mundo, abordando temas como o feminismo, racismo e africanidade entre outros.

Para quem vive da fama há a exigência de se ser um cidadão exemplar, sempre bem informado e capaz de guiar as massas na direcção certa. Ser fã passou a ser religião. Há uma verdadeira adoração das figuras mais famosas da cultura pop.

Muitos artistas de facto usam do espaço que têm para chamar a atenção a temas importantes e envolvem-se até em campanhas eleitorais.

Vejamos por exemplo Beyoncé, ao longo dos anos ela tem vindo a dar mais do que simples entretenimento, através do seu trabalho ela procura dar mais voz às mulheres e ao movimento negro nos E.U.A.

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Beyonce tem vindo a mostrar mais o seu lado activista – Fonte: The Huffington Post

Numa entrevista recente Adichie, ao comentar a experiência de pessoa transgénero fez uma leitura demasiado biológica, partindo de uma clara falta de conhecimento sobre o assunto.

Segundo ela, mulheres transgénero e mulheres cisgénero não devem ser olhadas como uma só. Até aí tudo bem, pois existem especificidades que dizem respeito a apenas um grupo.

A polémica vem por ela afirmar que uma mulher cis, isto é, uma mulher que nasceu biologicamente com um corpo identificado como feminino, cresceu com menos privilégios que uma mulher trans, uma mulher que nasceu biologicamente com um corpo identificado como masculino.

Para a autora as mulheres trans em algum momento usufruem do espaço concedido aos homens cisgénero.

“(…) I don’t think it’s a good thing to talk about women’s issues being exactly the same as the issues of trans women, because I don’t think that’s true./  Eu não acho um boa ideia  falar das questões de mulheres como sendo exactamente as mesmas que mulheres transgénero, porque eu não acho que isso seja verdade.” – Chimamanda Adichie

Sim, ela errou. Ela falou de algo sem entender a complexidade da vida de uma mulher transgénero. Falou de forma equivocada sem antes fazer o trabalho de casa, assumindo até que a expressão “mulher” não inclui a própria mulher trans.

Mas o que mais me surpreendeu foi ler as críticas e julgamentos feitos à pessoa e não ao que a pessoa disse. Houve uma tentativa de desqualificação intelectual, como se tudo o que ela tivesse dito, escrito, feito até à data fosse irrelevante face às suas palavras.

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Chicanada reforçou a sua defesa pelos direitos LGBT após a polémica – fonte: Facebook Chimamanda Adichie

Calma aí.

Acredito que podemos aproveitar a oportunidade para ter um debate alargado sobre a vida de mulheres trans. Uma oportunidade para perceber como essa realidade é vivida na Nigéria, de onde vem Chimamanda, e em Moçambique, por exemplo, no Brasil, nos E.U.A, em Portugal, etc.

Quem são as mulheres trans? De onde vêm? Onde estão elas?

Laverne Cox, mulher trans norte americana famosa pelo seu trabalho como atriz em “Orange Is The New Black” partiu do comentário de Adichie para reflectir sobre a sua vivência e os seus privilégios.

Segundo ela, na sua infância ela nunca pôde de facto aceder aos privilégios concedidos aos meninos por ter sido sempre demasiado afeminada, de modo que o seu comportamento era constantemente policiado por todos à sua volta.

“There’s no universal experience of gender, of womanhood. / Não existe uma experiência universal de género, de feminilidade.” – Laverne Cox

Acredito que é necessário nos aprofundarmos sobre as diferentes realidades dentro do(s) género(s) em questão.

Tal como existe uma diferença entre nascermos e sermos reconhecidas como mulheres cis negras, também existe uma diferença na forma como as mulheres cis brancas nascem e são reconhecidas. Ou seja, mesmo dentro do grupo de mulheres cis existem experiências variadas marcadas por raça, condição social e mesmo local.

Então não deve ser tão difícil assim conceber um mundo em que as mulheres cis e as mulheres trans tenham experiências diferentes, tal como Chimamanda defende. No entanto essas diferenças vão para além da biologia e englobam factores sociológicos.

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Laverne Cox sonha com a abolição do sistema binário – Fonte: Twitter Laverne Cox

Vivemos em tempos em que facilmente se parte para a idolatração de certas figuras, como se de verdadeiros Deuses se tratassem, incapazes de cometer erros ou ter ideias pouco populares.

Rapidamente, quando os nossos Deuses nos decepcionam deslegitimizamos todo o trabalho feito ou por fazer.

Tal como Beyonce é muitas vezes questionada e criticada por não se declarar feminista ou por supostamente usar-se do feminismo para lucrar, chegou a vez de Chimamanda Adichie também ter esse banho de pedras.

Um outro ponto relevante é a nossa própria humildade e o reconhecimento do direito ao erro do outro. Não existe perfeição. Todos nós somos criados dentro de uma sociedade com determinados valores e ideais que inevitavelmente moldam a forma como olhamos o mundo, daí não existir um activista perfeito, que sabe tudo e faz tudo bem.

Que possamos aprender com esses erros para nos aprofundarmos sobre assuntos variados dentro dos vários movimentos sociais com os quais nos identificamos.

O grande desafio que temos não é o de os nossos Deuses errarem, mas sim a nossa incapacidade de usar tais erros como catapultas para debates importantes que precisamos de ter enquanto sociedade.

 

 

“Americanah” de Chimamanda Adichie

Eu acho importante ler este livro porque…

Chimamanda Ngozi Adichie by Beowulf Sheehan

Este livro conta a história de uma jovem nigeriana nos Estados Unidos da América, que devido à instabilidade política é levada a abandonar a Universidade no seu país de origem.

À medida que o drama se vai desenrolando Ifemelu, a protagonista, é levada a confrontar-se com o desespero de se querer integrar, com a obrigatoriedade de fugir de estereótipos e com a necessidade de descobrir quem ela é para além da cor da pele ou da textura do cabelo.

A prosa da nigeriana Adichie, rica em poesia, consegue retratar a complexidade das partidas e chegadas de quem vive imigrantemente. Uma das minhas passagens favoritas é a seguinte:

[“Alexa and the other guests, and perhaps even Georgina, all understood the fleeing from war, from the kind of poverty that crushed human souls, but they would not understand the need to escape from the oppressive lethargy of choicelessness. They would not understand why people like him who were raised well fed and watered but mired in dissatisfaction, conditioned from birth to look towards somewhere else, eternally convinced that real lives happened in that somewhere else, were now resolved to do dangerous things, illegal things, so as to leave, none of them starving, or raped, or from burned villages, but merely hungry for choice and certainty.”

Alexa e os outros hóspedes, e talvez até mesmo Georgina, todos entendiam a fuga da guerra, do tipo de pobreza que esmaga as almas humanas, mas eles não entendiam a necessidade de escapar da letargia opressiva da não-escolha. Elas não entendiam por que pessoas como ele que foram criadas bem, alimentadas e com água para beber mas que estavam mergulhadas na insatisfação, condicionadas desde o nascimento a olhar para outro lugar, eternamente convencidas de que a vida real acontecia em algum outro lugar, estavam agora decididas a fazer coisas perigosas, coisas ilegais, de modo a partir, nenhum deles faminto, ou violado, ou vindo de aldeias queimadas, mas apenas famintos por ter escolhas e certezas.]

A autora consegue, com muito humor e elegância, debater racismo e xenofobia de um modo atrevido.

 

(Continua aqui)

12 Tons de Negro

Um Ano Em Busca Da Minha Negritude

2015 livrariaContar histórias é uma arte que descobri na escola ao ler escritores como sophia de mello breyner andressen; luis de camões; josé saramago; luís de stau monteiro e eça de queirós, entre outros que certamente muitos afrolisboetas devem reconhecer dos livros de leitura obrigatória do currículo português.

Aliás, é uma pena que em Portugal, um país cuja História passa por África, não se cultive mais a literatura africana (ou pelo menos lusófona).
E infelizmente os nomes que acompanharam a minha infância, à semelhança de outros africanos na diáspora, são nomes de quem conta histórias de pessoas brancas; de meios urbanos; de famílias aristocratas; histórias de situações e realidades que negam ou ignoram uma parte de mim.

Então decidi: vou ler negritude.

 

 

 

 

(Continua aqui)