Entre Ela e Deus

Entre Ela e Deus

O documentário “Entre Eu e Deus” de Yara Costa traz-nos importantes reflexões sobre a religião.

Gravado na Ilha de Moçambique, no norte de país, “Entre Eu e Deus” mostra-nos como uma nova forma de viver o Islão, o Wahhabismo, está a mudar a Ilha e quem são os protagonistas destas mudanças.

Tendo como ponto de partida a história de Karen, o filme revela-nos o que há por detrás do seu véu: uma jovem muçulmana estudante de Engenharia Civil, com todos os sonhos e questões de quem tem vinte e poucos anos.

 

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O filme estreou esta semana em maputo. Fonte: Maputo Fast Forward

O Islão chegou no séc. VIII e fundiu-se com a própria cultura macua. Este Islão africano, e talvez diria até, Islão macua, tem as suas raízes no Islão suni e na própria tradição local.

 

No documentário, esta vertente do Islão é personificada por uma velha macua que defende a existência de uma certa flexibilidade da religião tendo em conta a terra de onde a pessoa é. Um muçulmano em Moçambique é diferente de um muçulmano em Portugal. O seu véu é composto por duas capulanas, e na sua face a tradicional máscara de mussiro evidenciam o seu local de origem.

Já o islão Wahhabi defende a interpretação do Alcorão da forma mais pura. E ironicamente, esta visão mais conservadora é personificada por jovens como a Karen, a protagonista.

Estes jovens, ligados ao mundo pela internet e alguns ainda, viajados tendo estudado na Arábia Saudita, trazem um islão diferente que se opõe a alguns traços da tradição macua. Para eles, Deus está acima de tudo: das tradições; dos costumes locais; etc.

A Ilha de Moçambique é um local com muita História e muitas fusões. Foi lá onde se instalaram os primeiros árabes e mais tarde os indianos e portugueses, entre outros povos.

Numa das passagens do filme, vemos uma cerimónia religiosa católica, em que os crentes e o próprio padre usam capulanas com imagens de Nossa Senhora e tocam batuques na missa, enquanto cantam música religiosa.

Noutra, as mulheres muçulmanas macuas vestem-se de capulanas e pintam o mussiro, segurando o Alcorão.

Isto mostra como as diferentes religiões moldaram-se e se misturaram com a cultura local.

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A Ilha foi marcada durante séculos pela cultura swahili e o Islão dos povos da África Oriental. Fonte: DW Africa

A família da Karen, tal como tantas outras, sempre foi praticante do Islão. Então porquê essa busca, essa sede de seguir um “outro” Islão?

Aquilo que à partida é, deixa de o ser. Olhamos para a Karen com as roupas escuras, o hijab, e pensamos que ela é uma jovem alienada, sem sentido de identidade próprio, sem vontades nem quereres. Porém, à medida que ela se vai revelando, vemos uma jovem esclarecida, crente, convicta das suas ideias e do caminho que ela mesma escolheu seguir.

Dúvidas nascem em si como cogumelos sobre os mais diversos temas: Existem gays muçulmanos? Será que a minha mãe (falecida) aceitaria as minhas escolhas?  Os meus amigos ainda sabem quem eu sou?

E como não podia deixar de ser, uma jovem cheia de contradições. E esta é para mim a componente mais bela, mais simples, mais importante deste filme.

Se por um lado, a Karen quer seguir o Islão puro e sonha em conhecer a Arábia Saudita, por outro, reconhece e admira os privilégios de que goza na Ilha: ela pode conduzir, ela escolheu o curso que queria seguir, gere um pequeno negócio de compra e venda de roupas, etc.

Se por um lado a Karen quer terminar a Licenciatura e quiçá até continuar os estudos e/ou ter uma carreira profissional, por outro, sonha em ter um marido e ficar em casa a cuidar dos filhos.

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O filme “Entre Eu e Deus” é um alerta à moderação. Fonte: O País

É esta dimensão humana, individualizada, que me permite olhar para a Karen e me rever nas suas experiências.

Eu também sou uma mulher cheia de contradições. Eu também defendo ao mesmo tempo me oponho a certas coisas.

Eu também acredito e depois desminto. Enfim, eu também sou uma complicada teia de aceitações e rejeições, num mundo em constante mudança ao qual não me posso fechar e do qual não posso fugir, pois faço parte dele.

E isso é entre eu e eu mesma.

 

 

 

 

Homossexualidade não é importação

Homossexualidade não é importação

A homossexualidade é Africana e não importada, como costumamos ouvir por aí.

No continente Africano é muito hostil com a homossexualidade. Nos anos mais recentes, vários foram os países, tais como o Malawi, Uganda e Nigéria que proativamente aprovaram ou reforçaram leis que proíbam a homossexualidade.

Os motivos para tal prendem-se sobretudo com valores sociais e religiosos.

Do lado social, há dois aspectos a considerar: o primeiro é que vivemos em sociedades em que se valoriza muito o matrimónio e a procriação, e uma vez que as relações homoafetivas não permitem que se viva (pelo menos não da forma tradicional) estes processos, são desvalorizadas e vistas como inválidas; e o segundo é que vivemos em sociedades em que o conceito de indivíduo praticamente não existe, pois todas as decisões, rituais, direitos e deveres são vividos em comunidade.

Nesse sentido, uma vez que a experiência da homossexualidade é muito íntima e pessoal, algo vivido de forma isolada e que não acontece no colectivo, ela passa a ser invisível e até mesmo desprezível.

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A homofobia não é africana. Fonte: Rede Angola

Mas acima de tudo isso, um dos maiores argumentos, senão o maior argumento utilizado para a oposição à garantia de direitos iguais aos casais homossexuais é o facto de se considerar a homossexualidade como algo novo, importado do Ocidente.

Outro argumento comum prende-se com as escrituras sagradas. Seja no Islão ou no Cristianismo, segundo os africanos que praticam estas duas religiões, o seu Deus não aprova relacionamentos homoafetivos. Isso é coisa do Diabo.

Mas se tanto o Islão como o Cristianismo como religiões, isto é, como formas organizadas de se praticar a fé, foram forçados no continente, então temos também de aceitar que não fazem parte da ‘cultura’ africana.

Se supostamente, a homossexualidade é um conceito estrangeiro a África. Então se assim for, também o é a homofobia.

A homofobia foi-se proliferando com o Colonialismo através da formalização do poder europeu na África.

Na Nigéria, tal como em outras ex-colónias britânicas, a lei vitoriana que invoca sodomia e homossexualidade, os homossexuais podem ser condenados a até 14 anos de prisão. Isto, quando aliado às mensagens proliferadas pelos líderes religiosos, cria um ambiente em que ataques violentos a homossexuais são aceitáveis.

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A tradição do casamento entre mulheres nas sociedades Igbo não pode ser negada. Fonte: Black Agenda Report

Contudo, é importante ressalvar que as relações homoafetivas tanto entre homens como entre mulheres já existiam nas sociedades pré-coloniais.

No livro “Boy-wives and Female husbands – Studies in African Homosexualities”, os autores descrevem extensivamente a pluralidade de ‘homossexualidades’ reconhecidas no continente.

Em Angola, naquilo que eram os Reinos de Matamba e do Congo, no séx XVII, eram reconhecidos os supostos homens que se sentiam e viviam como mulheres, ou seja travestis, chamadas de “quimbanda”. Às travestis era permitido vestirem-se e viverem como mulheres, recebendo homens em suas casas para terem relações sexuais.

Na Nigéria, mais precisamente nas sociedades Igbo, era comum relações entre mulheres. Nestas relações, embora uma mulher representasse a figura masculina, tendo de assumir o dote, as divisões de papéis não eram como aquelas que vemos nas relações heterossexuais. Estas relações regiam-se sobre um código próprio e completamente legitimo, reconhecido por toda a comunidade.

Ou seja, a homossexualidade como conhecemos hoje podia não existir. Designávamos por outros nomes e usávamos outros parâmetros, mas estava lá.

Quando os Europeus chegaram à Europa desenharam esta imagem das pessoas africanas como primitivas e sem cultura, filosofia ou conhecimento para dar ao mundo. Nessa linha de pensamento, como seres primitivos, a única razão para nos relacionarmos sexualmente era a procriação. Afinal de contas é assim com os animais.

E nós fomos nos (sub)desenvolvendo com esta imagem de nós mesmos, pensando que em África não existem humanos complexos, com emoções, vivências e ideias progressivas.

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Na África do Sul o casamento entre pessoas do mesmo sexo é previsto por lei. Fonte: BBC

Num continente tão grande e diverso como África, não é de admirar que haja também uma pluradidade de homossexualidades e heterossexualidade. Estes conceitos, bem como os de género nos acompanham há muito tempo e já sofreram alterações face aos processos históricos e ao desenvolvimento das nossas sociedades.

No entanto, não podemos continuar a viver como se não fosse nossa “cultura” abraçar a diversidade e complexidade de vivências que podem existir – e existem! – ao nosso redor.

Como sociedade temos de fazer melhor, precisamos de melhor.

Países como a África do Sul estão na vanguarda dos direitos LGBT+ em África, pois aproveitaram a época de libertação para garantir direitos fundamentais a todos os cidadãos, sem distinção no que toca a raça, credo, género, sexualidade, etc.

Então, mais do que perceber se a vivência da homossexualidade é ou não compatível com o conceito de Africanidade, talvez seja mais importante nos perguntarmos:

Por que é que somos tão resistentes à ideia de existirem africanos homossexuais?

 

Perceber a Medicina Tradicional Africana

A Medicina Tradicional Africana é muitas vezes vista como uma ciência subdesenvolvida, mas é uma ciência milenar

Segundo a Organização Mundial da Saúde, aMedicina Tradicional é “a combinação total de conhecimentos e práticas, sejam elas aplicáveis ou não, usadas no diagnóstico, prevenção e eliminação de doenças físicas, mentais e sociais que podem assentar-se em experiências passadas, e na observação transmitida de geração em geração, de forma oral ou escrita.”

Ou seja, é isto que constitui a Medicina Tradicional tanto em África como na China, por exemplo. No entanto, a Medicina Tradicional Africana é talvez a expessão mais visível do Pensamento Filosófico Africano, que vê o ser humano como resultado de condições materiais (corpo; terra; sol; água; etc) e imateriais (antepassados; crenças; etc).

Apesar de África ser um continente vasto que engloba várias culturas, etnias e nações, tem uma Filosofia peculiar que perdurou milhares de anos. Na Filosofia Africana a comunidade prevalece o indivíduo, ou seja, o sentido de pertença e partilha, de respeito e mutualidade entre o “eu” e os “outros” é um principio máximo.

Deste modo, a Medicina Tradicional Africana é interdisciplinar. Engloba a biologia, farmacologia, biomedicina, mas também a justiça e a religião, formando um código complexo de saberes tradicionais.

 

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A Medicina Tradicional deve ser incorporada nos sistemas de saúde publica. Fonte: The conversation

Tal como outras Civilizações, as Civilizações Africanas foram, ao longo dos anos, afectadas por várias pragas e doenças e tiveram de usar-se da Natureza para se protegerem e sobreviverem.

Dessas experiências surge uma ciência forte, assentada na farmacopeia tradicional, mas também composta por crenças religiosas que dura até hoje.

Durante o período colonial a Medicina Tradicional Africana, como várias outras componentes da cultura africana, foi tratada como um “não saber”. Por ser uma prática que incorpora em si superstições, nunca se olhou para ela como ciência.

Os colonialistas, que tinham uma forte herança católica, designaram a Medicina Tradicional de obscurantismo e feitiçaria, acusando os médicos tradicionais de burlões e mafiosos – fama que dura até hoje – e desencorajando, com penas fortes, a consulta e acesso a estes serviços.

Contudo, vale lembrar que vários médicos e investigadores europeus durante essa época foram recolhendo informações e observando como os médicos tradicionais africanos faziam o uso das plantas e aplicavam as suas técnicas.

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O povo Banyoro já fazia cesarianas quando era raro na Europa. Fonte: Black & African History

É o caso do médico Robert Felkin que em 1878, chega ao actual Uganda como missionário e surpreende-se ao ver a agilidade com que os médicos locais faziam cesarianas em mulheres grávidas com sucesso, salvando a mãe e o bebé, o que era raro na Europa.

Num tempo em que o conceito de propriedade intelectual não se debatia como actualmente se faz,  muitos foram os cientistas europeus que, com os seus jardins e herbanários, apropriaram-se desses conhecimentos, compilando muito dessa ciência e incorporando-a na Medicina Ocidental.

Uma vez que a Medicina Tradicional Africana entende a vida humana como multidimensional, a saúde – e consequentemente a doença – também é encarada sobre esse olhar.

Uma pessoa saudável é aquela que não só está bem fisicamente, mas também está bem com a sua comunidade, é respeitada e segue os princípios que regem o mundo, dentro desta moldura ética.

Deste modo, entende-se a doença, seja esta física ou mental, como um sinal de desequilíbrio no Universo. E a doença de um indivíduo afecta por isso toda a comunidade.

A doença é a manifestação física, mas o sofrimento ultrapassa essa dimensão e é aí que entra a força religiosa.

Por exemplo, alguém que abandona certas tradições e não segue certos rituais que são vistos como essenciais, pode vir a sofrer de doença grave como resultado da sua desobediência. Romper com tradições significa quebrar uma ligação milenar com os seus antepassados.

O médico tradicional é por isso mais do que um simples farmacêutico, ele é também psicólogo, juiz e até mesmo padre. É ele quem faz o diagnóstico e define a cura a saúde física, espiritual e psicológica, bem a salvaguarda dos princípios éticos e morais daquela pessoa que na verdade afectam toda a comunidade.

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O médico tradicional é preparado para ser além de responsável e eficiente, um bom ouvinte, orgulhoso de si mesmo, de sua tradição e cultura. Fonte: Afreaka

Segundo a Organização Mundial da Saúde, cerca de 80% da população africana deixa os seus cuidados médicos a cargo de médicos tradicionais.

Os médicos tradicionais são educados desde cedo, durante anos, para exercerem a sua profissão. Ser médico tradicional não é algo voluntário, mas sim um dom com o qual a pessoa nasce e que deve ser treinado.

Infelizmente, com os fluxos migratórios e o êxodo rural, muitos jovens abandonaram as suas vilas e aldeias. Esta factor quando combinado à demonização das religiões africanas, resultou num abandono também desta profissão.

Os médicos tradicionais já não têm o mesmo prestígio nem lhes é conferido o mesmo respeito que antigamente. Pelo contrário, especialmente nas zonas mais urbanas, são ridicularizados e existe uma descrença generalizada no seu papel. Ainda é tabu falar sobre o assunto.

Embora estes vivam praticamente na marginalidade e em alguns casos clandestinidade, a OMS reconhece a sua importância para os serviços de saúde materno-infantil, cuidados gerais e doenças não agudas.

Num tempo em que a ciência actual começa a abrir portas para soluções alternativas e cala-se perante doenças sem cura e epidemias que dizimam milhares de pessoas todos os anos, é essencial reconhecermos e aprendermos mais com a Medicina Tradicional Africana.

Lobolo aos olhos de hoje

O lobolo é uma cerimónia tradicional em que a família do noivo oferece um dote à família da noiva, celebrando assim a sua união.

Tenho notado já há algum tempo que hoje em dia, especialmente nos meios urbanos, há uma intepretação errada de vários elementos tradicionais da nossa cultura moçambicana.

Desde a chegada dos Europeus a África que houve uma demonização de tudo o que era estranho e bizarro quando comparado aos seus hábitos e costumes. E assim os modos das sociedades africanas foram ridicularizados e até proibidos, motivo pelo qual muitos rituais deixaram de ser praticados.

Um desses elementos mal interpretados aos olhos de hoje é o ritual matrimonial tradicional – o lobolo.

Como é que em Moçambique se dizia “casamento” antes de chegar a Igreja Cristã? Como é que se reconhecia a união entre duas pessoas antes de haver um “Estado”? O que era um “casamento”?

Temos de usar os olhos de ontem para procurarmos interpretações – e validade! – nos rituais hoje ou corremos o risco de viver acorrentados às ideias medievais que o Velho Continente nos passou.

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O lobolo é mutável, variável e adaptável. Fonte: Antropocoiso

A cerimónia do lobolo consiste numa oferta de bens em forma de gado, dinheiro, roupas e alimentos, entre outros à família (clã) da noiva. Após a aceitação e recepção destes bens por parte da sua família, a noiva passa a pertencer à família (clã) do noivo. Por esse motivo, aos olhos do colono, a mulher estaria a ser “vendida” e é essa narrativa que até hoje se mantém para rejeitar o ritual.

O dote oferecido servia de fundo comunitário para aquela família (clã). E de certa forma também de seguro, pois para anular a união seria necessário a devolução do dote, o que poderia pôr em causa toda a economia local.

Sempre ouvi o meu pai contar uma história que aconteceu há muitos anos em Homoíne (província de Inhambane) na aldeia onde ele cresceu. Um homem matou a sua própria irmã à catanada e foi enviado para S. Tomé & Príncipe, onde cumpriu a sua pena trabalhando como escravo para o regime colonial Português.

O motivo do assassinato foi o facto de a sua irmã ter manifestado a sua vontade em querer dissolver o seu matrimónio, o que obrigava a sua família a devolver o dote ao seu esposo. O seu irmão, por sua vez, já tinha usado grande parte do dote para lobolar a sua esposa, então teria ele também de se divorciar para devolver os bens.

Ou seja, o dissolução de uma união criava a dissolução de outras uniões em forma de cadeia, destruindo por completo a harmonia naquela sociedade. A situação levou o irmão à beira do desespero e terminou de forma trágica.

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Na Namíbia, Quénia e África do Sul, o lobolo chama-se lobola. Em Angola é o alambamento.

Estando inserido numa sociedade patriarcal (q.b.) o matrimónio tradicional não deixa de ser um fenómeno económico e de poder – como o matrimónio religioso cristão,- na medida em que serve de regulação social, pois o lobolo legitima a relação do casal e eleva o estatuto dos nubentes.

Para além disso, o lobolo estabelece uma família (garante descendência) e alberga também garantias que asseguram a vida e sobrevivência das famílias envolvidas no caso de morte de uma das partes.

Hoje em dia o lobolo, como qualquer outro ritual, já sofreu alterações na sua forma e no seu conteúdo, no entanto mantém o valor social que representa. É um dos elementos tradicionais que até as famílias mais modernas conseguiram manter, e por isso reforça o nosso sentido de Africanidade.

Por exemplo, no lobolo já se oferece um anel de ouro, que foi incorporado dos rituais da Igreja Cristã. A loiça feita de barro e madeira foi substituída pela porcelana (apesar de não servir para as orações e oferendas aos antepassados). Por outro lado houve símbolos africanos como o gado e as capulanas que sobreviveram a essas mutações.

Nos dias que correm é comum a realização do lobolo seguida do casamento religioso e/ou cerimónia civil, antes do copo d’água. Esta prática tem como objectivo a manutenção do nosso sentido de identidade e de compromisso com os antepassados.

Nas regiões mais rurais, o lobolo é um ritual que confere um reconhecimento social que as outras cerimónias (na Igreja, Mesquita, Conservatória, etc) não oferecem, pela dimensão de envolvimento da comunidade e ligação histórica e espiritual.

Tendo em conta estes factores, a “nova” Lei da Família já prevê o lobolo como uma cerimónia legítima, com o mesmo peso legal que o casamento civil.

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Hoje em dia é comum incorporar elementos tradicionais com os mais modernos.

O lobolo em Moçambique é uma prática que visa o reconhecimento matrimonial, isto é, garante a reprodução, estabilidade, compromisso, e estabelece os direitos e deveres entre um homem e uma mulher perante a comunidade.

Ao conotarmos o lobolo como uma simples transacção de compra e venda tiramos todo o simbolismo e importância que o ritual de facto tem. Estamos a olhar como o Europeu que aqui chegou olhou, sem ter sensibilidade para perceber as estruturas e crenças das sociedades da época.

Tal como entendemos, praticamos – e perdoamos! – o casamento religioso cristão, com todas as suas limitações, devemos também fazer o mesmo exercício ao olharmos para o lobolo.

É nosso dever descolonizar estas ideias ultrapassadas dos nossos próprios hábitos e costumes e encontrar formas de adaptar os rituais à nossa actualidade.

 

Novas Igrejas, Colonialismos Antigos

O papel das Igrejas como centros de submissão de povos, estabelecendo controle sobre o imaginário divino para facilitar então o domínio político e social.

Durante toda a História da Humanidade, vários sistemas de comunicação com o Divino foram estabelecidos. E de uma forma ou de outra, esses sistemas criavam sempre uma ordem que devia ser respeitada, sobre a ameaça de consequências catastróficas para os desviantes.

As religiões sempre estiveram ligadas ao poder. Foi com essa desculpa de evangelizar os povos de todos o mundo que as nações ocidentais invadiram continentes e colonizaram nações.

Para os países colonizados, essas feridas até hoje se fazem sentir.

A religião sempre foi utilizada para entrar na mente de uma pessoa, pois para escravizá-la ou colonizá-la é preciso primeiro que ela o permita. E isso é conseguido através do ensino de um sentido de inferioridade.

Seria necessário, para durante séculos dominar um povo inteiro, eliminar qualquer fé que esse povo teria nele próprio e nos seus Deuses. Os Deuses que os protegiam nas grandes batalhas, que os alertavam para os perigos do Futuro; os Deuses para quem esses povos eram importantes e especiais foram então eliminados.

Através da demonização das religiões de matriz africana e da perseguição dos seus praticantes, bem como o baptizado forçado de africanos escravizados ou de qualquer africano que quisesse ter mais oportunidades, aos poucos os povos colonizados esqueceram-se dos seus Deuses.

Passaram adorar um Deus branco. Anjos loiros e de olhos azuis. Profetas de cabelo liso e longo. Foi assim que os colonizadores romperam por completo a ligação que os povos africanos tinham com o Divino e conseguiram, por muito tempo, saquear as suas terras e riquezas.

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Missionários no Séc. XIV convertendo crianças para o Cristianismo.

Mais recentemente, com a febre das igrejas neopentecostais, uma nova Cruzada começou a ser feita.

Hoje em dia os soldados de Cristo já não andam a cavalo nem chegam de navio. Aparecem com os mais recentes modelos de automóveis e andam bem vestidos. Aparentam uma vida de sucesso, com uma família perfeita e um comportamento exemplar.

Segundo a doutrina neopentecostal, a prosperidade na vida de um crente é proporcional à sua entrega a Deus. Assim sendo, a marca da plenitude da fé é muita saúde e aptidão física, estabilidade emocional e prosperidade material.

Não é de admirar que estas Igrejas, a destacar a IURD, têm nos seus crentes pessoas capazes de entregar tudo o que conseguem com o suor do seu trabalho em troca de um pedaço de terra no Céu.

Em África, e mais precisamente em Moçambique, esta linha de pensamento não está muito longe das religiões tradicionais baseadas na ligação histórica aos antepassados. De acordo com a crença tradicional, doenças e azares resultam de maldições e pragas lançadas pelos antepassados insatisfeitos.

Em muitos países infestados por guerras; doenças; fomes e catástrofes naturais, a sociedade como um todo vê-se perdida. As pessoas são deslocadas e abandonam os seus locais sagrados; perdem-se das suas famílias e da sua história e nesses processos, desligam-se também das suas divindades, vivendo com pouca paz espiritual.

Os traumas, dramas e depressões dessas desgraças são presenças constantes no nosso quotidiano, criando um ambiente de desespero e incredulidade generalizados.

Quando cruzamos estes factores, torna-se evidente o sucesso das Igrejas Neopentecostais em Moçambique e em outros países cujas religiões de base se guiam por esse pensamento.

A tudo isso, acrescentam-se ainda as dificuldades económicas e financeiras da vida contemporânea: não tenho dinheiro para cobrir as minhas necessidades básicas; vivo numa casa precária; tenho um emprego que não me satisfaz; os meus filhos não têm o que vestir; etc. Essa crise material, quando se depara com a crise espiritual cria condições para o sucesso dessas Igrejas.

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Fonte: Facebook Igreja Universal do Reino de Deus

Vejamos que, por exemplo, nas religiões de matriz africana até os locais sagrados são simples e rudimentares, muitas vezes debaixo de árvores e no meio da natureza. Os líderes religiosos usam roupas feitas de materiais baratos e falam línguas ditas “primitivas”, comunicando-se com o Divino através de conchas, ossos ou mesmo a água.

Enquanto essas Igrejas têm templos grandes e robustos, onde se falam línguas célebres no microfone. Os líderes usam fatos e roupas bem vistosas. Andam de carro e vivem em verdadeiros palacetes. Até os seus rituais são mais compostos e sofisticados.

Então eu pobre; desesperada; doente; com fome; com sede; sem tecto; onde vou pedir riqueza?

Por muitos anos foi-nos negada a nossa forma de ver, sentir e falar com Deus. E nós crescemos sem uma imagem sagrada de nós mesmos, sem um sentido positivo das nossas religiões e completamente desligados das nossas raízes.

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Celebrações do Dia de VooDoo no Benin

Curiosamente, alguns países ocidentais estão a resgatar as suas ligações espirituais que ocorrem fora dos padrões da Igreja. Aquilo que chamavam de animismo começaram também a incluir nos seus cultos.

Mas nós negamos essa presença, apesar de nos usarmos de alguns rituais quando nos convém, pois continua no nosso inconsciente a sua veracidade.

A nossa História colectiva foi apagada e com ela a nossa Fé. Essa vulnerabilidade torna-nos superfícies altamente permeáveis, capazes de facilmente adoptar qualquer doutrina de pensamento sem questionar a sua validade para o nosso contexto.

No início chegaram os Árabes, passámos a chamar-nos Zeinab, Mohamed, Catija, como o Profeta e a sua família. Depois invadiram-nos os Portugueses e aos nossos filhos demos nomes como Francisco, Miguel, Maria, como se chamam os seus santos e agora vêm os Brasileiros, e já surgiram os Enzo, Caíque, Nicole… Quando é que os nossos filhos terão os nossos nomes? Nomes da nossa História? Dos heróis? Dos nossos antepassados?