Para que(m) serve a CPLP?

Há alguns meses, aquando do vigésimo aniversário da CPLP, comentei que a CPLP era uma espécie de prisão para nós. 

Vivemos numa ditadura do Português, pois no nosso consciente essa é a nossa Língua e faz parte da nossa identidade como Nação. Mesmo o nosso ensino bilíngue ainda é muito imaturo e não consegue dar resposta aos nossos problemas, pois a grande maioria da população em Moçambique não fala Português, mas sim uma outra língua local.

Por que é que as pessoas que falam, por exemplo, o changana não podem aprender a ler e escrever em changana? Por que é que não criamos alianças com países vizinhos para falarmos as nossas línguas em comum?

Nós metemos na cabeça que a Língua Portuguesa é nossa esposa e todas as outras línguas que falamos são nossas amantes, obrigadas a viver na clandestinidade e longe dos espaços públicos. É a CPLP sustenta essa ideia de nós mesmos, fazemos parte desta “comunidade” e não criamos uma comunidade de países que falam swahili ou makhwua.

Na África do Sul, por exemplo, nos hospitais há cartazes em línguas locais. Isso facilita o acesso a este serviço. Mas as nossas línguas locais são praticamente invisíveis na esfera pública.

Pouca é a nossa literatura em línguas locais e as grandes editoras investem mais em Português. Imaginem quantos escritores já perdemos assim! Temos exímios contadores de histórias, mas o seu legado fica pela oralidade.

Outros jovens de países vários tiveram opiniões semelhantes. Qual é a relevância da CPLP nos dias de hoje?

2b71cba739f1e002f4d8a33b4b0e6ac8da37acc6

O Ministro dos Negócios Estrangeiros Português, Augusto Santos Silva, tem uma opinião diferente. Para ele, a Comunidade baseia-se num princípio de igualdade entre todos:

“São Estados soberanos, iguais em direitos, iguais em responsabilidades. Têm um traço de união fundamental, que é a língua portuguesa, uma língua que pertence a todos, na diversidade com que a usam e enriquecem.” – 20 anos de CPLP: a melhor juventude

No entanto, as bases onde se apoia a CPLP têm origem na teoria do luso-tropicalismo e é por isso que é difícil falarmos numa relação de amizade e apoio mútuos, quando durante todos anos houve – e ainda há – um desequilíbrio na distribuição de poder.

No Brasil, quando participei do Festival do Rio tive o privilégio de assistir o filme moçambicano “Comboio de Sal & Açúcar”, do realizador brasileiro radicado em Moçambique Licínio de Azevedo. Para a minha surpresa o filme, falado em Português de Moçambique, estava legendado para o Português do Brasil. Achei ridículo!

Quando as novelas brasileiras são transmitidas aqui não assistimos com legendas! É como se o nosso Português fosse um dialecto primitivo imperceptível aos outros falantes da Língua Portuguesa. Não sei se os filmes de Portugal tiveram o mesmo tratamento, por exemplo. Mas de qualquer uma das formas já demonstra uma certa arrogância dos brasileiros ao assistir uma obra cinematográfica moçambicana falada em Português.

O mesmo se pode dizer do exame de Português a que estudantes moçambicanos são submetidos quando se candidatam a bolsas de estudo no Brasil.

Para que serve essa tal Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP) senão para legitimizar a língua como elo comum a todos? Por que então, há uma hierarquia do Português que se fala?

E outra coisa, se a língua é de facto de todos, nós temos tanto direito de alterá-la e usá-la como melhor acharmos no nosso contexto como qualquer outro falante de outro país. Da mesma forma que o Brasil tem palavras e expressões próprias, que nós tentamos entender, nós também temos as nossas e não sinto que estas sirvam de impedimento para quem vê o filme.

premio-camoes.jpg
O Novo Acordo Ortográfico gerou polémica na Comunidade.

A propósito, é exactamente esse o grande debate em torno do Novo Acordo Ortográfico. O acordo é um acto violento contra os diferentes léxicos dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP).

Supostamente o objectivo do Acordo é facilitar o intercâmbio cultural e científico e ao mesmo tempo ampliar a divulgação do idioma, no entanto é uma forma de nos obrigar a falar como os brasileiros e os portugueses falam, como se a língua deles tivesse se desenvolvido por auto-combustão e não pelos mesmos processos de transformação que acontecem em todas as línguas (neologismos; estrangeirismos; etc).

Na mais recente cimeira da CPLP, realizada no Brasil, falou-se de um projecto de livre circulação dentro da CPLP.

Neste momento o mais urgente é a facilitação na obtenção de vistos de residência e o reconhecimento de diplomas, o que tem sido especialmente difícil para os Portugueses e Brasileiros a viver em outros países.

Para nós africanos habituados a mendigar para obter vistos e acostumados com a nossa condição de cidadãos de segunda classe, isto é um tema antigo que já deixou até de ser urgente.

Não se sabe como irá funcionar ou quais as implicações da livre circulação para aqueles que aderirem ao projecto, mas certamente não irá beneficiar todos de forma igual.

Há muito que a Europa e a América do Sul beneficiam da migração africana, aliás, não sei o que teria sido do Euro sem os imigrantes (e/ou afrodescendentes) a vestir a camisola dos ex-colonos.

 

18994548_401
Os imigrantes africanos em Portugal continuam escondidos – Fonte: DW.com 

 

Hoje Portugal surpreende-se pelo talento proveniente dos PALOP. Já não servimos apenas para trabalhar nas obras ou como empregadas domésticas, mas também somos artistas, engenheiros, médicos, etc.

Com muito esforço as comunidades afrodescendentes começam a ganhar espaço central e com as recentes crises na Europa e América do Sul, os movimentos de migração começam a acontecer em várias direcções. Adicionalmente, as descobertas de riquezas mineiras em países como Moçambique e Angola atraem vários empresários, especialmente aqueles que falam o Português.

É importante que esta nova dinâmica fuja do ideal colonial de irmandade e promova o uso de todas as variantes da mesma língua. Agora queremos o Português na ONU. Mas que Português? O “novo” ou o Antigo?

E acima de tudo… Será que quando o Presidente Moçambicano falar na ONU, os restantes Presidentes da CPLP precisarão de legendas também?

E agora Senhor Ministro?

Um recente espectáculo gratuito de violência nas escolas foi distribuído, via redes sociais para todo o Moçambique. Qual é a resposta do Ministério da Educação? 

Não é surpresa a inexistência de segurança no Ensino Público, mas um caso de esfaqueamento filmado e reenviado vezes sem conta desperta qualquer sociedade. Ou pelo menos devia.

O vídeo, que mostrava dois rapazes numa Escola Secundária a lutarem, ambos a sangrar, ganhou atenção especial por um deles ter sido esfaqueado sem que nenhum professor, guarda ou qualquer outro funcionário do recinto percebesse o que estava a acontecer no momento do incidente.

As deficiências; carências e lacunas do nosso Ensino Público já são por todos nós conhecidas: falta de infraestruturas que promovam o bem-estar do estudante; condições estéreis para o nascimento de ideias e mentes brilhantes; sobrelotação das salas de aula; falta de manuais escolares; escassez de professores; desistência por parte dos alunos; reprovações em massa; etc etc etc.

O cenário é tenebroso. Catastrófico.

13775892_1065206480193656_4824446107243950176_n
Crianças a estudar ao relento numa manhã de nevoeiro em Maputo. Fonte: Facebook

O Ministério da Educação parece não saber bem por onde pegar. Está mesmo complicado!

No início do ano lectivo, numa tentativa de resgatar a honra e valores de outrora, S. Excia. Senhor Ministro decidiu implementar a obrigatoriedade do uso das maxi-saias.

A medida tem como intuito melhorar o ambiente de ensino e repor a decência nas salas de aula. Ou, por outras palavras, vem devolver ao professor a sua inocência e impedir as meninas de serem violadas – sim, porque a culpa é delas.

Agora enfrentamos outra crise – dentro de todas as outras crises (as mencionadas e as ocultadas): violência nas escolas.

Quando meninas começaram a aparecer grávidas nas escolas encaramos isso como um problema nacional. Aquilo foi um vuku-vuku jamais visto! Primeiro começou-se por tirá-las do curso diurno. Depois veio essa das saias até aos calcanhares.

As pessoas saíram à rua. Gritaram. Manifestaram-se (ou quase isso). Escreveram contra e a favor. Por causa das saias até houve quem fosse deportado de Moçambique.

O Senhor Ministro até já estava cansado de proteger os pedófilos que andam aí disfarçados com batas brancas como se estivessem a ensinar – até porque há um problema de quadros, não podemos mandá-los embora.

Enfim o Senhor Ministro lá geriu a situação e agora vem esta!

maxi-saias.jpg
A obrigatoriedade das maxi-saias gerou polémica. Fonte: Comunidade Moçambicana

Dois rapazes foram filmados por outros colegas numa luta violenta da qual um saiu esfaqueado e apenas um dos envolvidos foi expulso e preso (supostamente). O outro certamente também irá tirar contas com a Justiça em tempo útil.

Aguardo ansiosamente a próxima medida do Senhor Ministro.

Já não se fala de um problema de dimensão nacional, embora vários alunos tenham assistido (e até divulgado) o vídeo com conteúdo extremamente violento.

Embora a escola tenha várias pessoas dotadas de poder e competências para impedir que tais episódios aconteçam.

Embora não só naquela escola, mas em todas haja episódios semelhantes diariamente.

Embora a violência seja um problema de todos nós, encaramos o ocorrido como uma manifestação isolada de um possível problema mental, familiar ou social dos envolvidos, falhando na nossa análise.

Esquecemos que a violência e a criminalidade sempre fizeram parte do nosso Ensino Público: as reguadas do professor da Primária; os roubos de canetas, livros, telemóveis e até mesmo mochilas; os abusos de bebidas alcóolicas e estupefacientes; as violações sexuais; os pagamentos para passar de classe;  etc.

Escola-Secundária-Josina-Machel.jpg
 A discussão sobre a violência nas escolas ainda é uma gota no oceano perto da dimensão do problema.

 

O Senhor Ministro tem uma batata bem quente nas mãos!

Pouco se falou ou discutiu a reabilitação destes meninos. Pouco ou nada se decidiu no que toca a medidas para garantir mais segurança aos alunos nas escolas. Ninguém se pronunciou sobre o controle de instrumentos cortantes nos recintos escolares.

E porquê? Porque vemos a violência masculina como um problema individual. É um assunto de interesse privado, que diz respeito apenas aos envolvidos e às suas famílias. Enquanto olhamos a sexualidade feminina como algo de todos. É um assunto de interesse público no qual ~devemos~ opinar.

Resultado: Obrigamos as meninas a usarem saias compridas para acabar com a gravidez na adolescência, mas expulsamos um rapaz da escola para acabar com a violência nas escolas.

O Senhor Ministro está mesmo mal!

É a cultura da violência; a cultura do estupro; a cultura do deixa-andar… A cultura de tudo menos do estudo e da dedicação. Menos da leitura e da investigação. Menos da segurança; da qualidade e do rigor.

E agora Senhor Ministro?

 

Vamos falar de cabelo outra vez?

Para além de falar das politiquices em torno da carapinha, é importante reconhecer os espaços em que esse cabelo é representado – ou não – e como essa representação é feita.

Já falamos uma vez sobre as politiquices em torno do cabelo crespo e cacheado, e como existe um padrão ideal que nós, pretos, temos de pagar com a nossa própria saúde para atingir.

Aqui em África, onde a grande maioria das pessoas tem o cabelo crespo, dificilmente vemos figuras proeminentes a usar orgulhosamente o seu cabelo natural.

Se vemos, na sua maioria, são mulheres bem mais velhas ou pessoas ligadas às artes e com um estilo excêntrico que lhes confere uma certa liberdade, interdita a nós outros, meros mortais.

dsc_0655_1100x550100kb
Cantora moçambicana Mingas canta com as suas dreads.

Porém, figuras da cultura pop, com as quais a juventude mais se identifica regem-se sobretudo pelos padrões ocidentais de beleza. E como tal, não só nas suas músicas, e nos seus vídeos, mas também na sua forma de vestir se inspiram nos artistas norte-americanos, sobretudo.

Seria ingénuo e até mesmo infantil ignorar a influência que tais artistas têm na construção de mentalidades.

Assumindo que são estes que dominam a música moçambicana que toca em rádios e discotecas, então o seu papel no crescimento e consciência dos moçambicanos, e especialmente nos jovens moçambicanos, é imensurável.

Se meninas moçambicanas idolatram artistas com cabelos lisos, sentirão, logicamente uma desconexão consigo mesmas. Com as suas raízes. E o mesmo para os meninos.

E procurarão estes grupos formas de afirmação de beleza que se aproximem dos modelos que idolatram. Daí o bilionário mercado da extensões capilares em África apenas. Daí o negócio dos branqueadores de pele (mas isso falamos num outro dia).

Contudo, não podemos deixar tudo nas mãos dos artistas.

Olhemos para outras figuras importantes no nosso país: os nossos professores; os médicos; enfermeiros; ministros; presidentes; etc.

Mesmo nos Estados Unidos da América, a Primeira-Dama Michelle Obama, que é uma mulher negra, não usa os seus cabelos com a textura natural. Para o seu marido, o Presidente Barack Obama essa questão é facilmente contornada, já que ele pode usar o cabelo curto sem causar choque.

24jacob-cnd-jumbo-2
Jacob, de 5 anos, sente o cabelo do Presidente Obama. Fonte: New York Times

E em casa, o que fazemos para que haja essa aceitação? Que trabalho temos feito para valorizar as nossas raízes?

Mesmo nos espaços mais vanguardistas, há ainda a expectativa de “arrumado” (trançado; amarrado; etc). As pessoas nem reparam que isso é fruto desse padrão de beleza europeu, que tem como base ideia errada de que o cabelo natural é sinal de desleixo ou sujidade.

Há sempre um policiamento que se disfarça de preocupação ou conselho.

Esse cabelo parece estar seco, tens de hidratar. Esse cabelo está muito despenteado, tenta organizá-lo. Tenho uma dica para dar mais vida ao teu cabelo. Usa o produto X que o teu cabelo vai ficar como o da Y.

Qualquer fórum sobre cabelos naturais está cheio de receitas e truques para domar o cabelo, como se ele fosse, de facto selvagem.

tumblr_static_ah026pvct94cow4soo8kc0kso_2048_v2
Blogueiras My Natural Sisters

Twist out. Braid out. Blow out. Length check. 4A. 4B. 4C.

Uma linguagem codificada para abordar algo tão simples: cabelo. Uns mais, outros menos encarapinhados. Uns mais, outros menos longos. Uns sempre, outros nunca no lugar.

Temos de desconstruir a ideia de que o nosso cabelo natural vem na forma errada. Ou na textura errada. Ou no comprimento errado.

E essa desconstrução leva o seu tempo e requer muito trabalho. Talvez mais do que as pessoas estejam dispostas a dar.

Porque não basta perder uma manhã inteira a lavar o cabelo e aplicar produtos caros para ter um cabelo crespo q.b., e depois perguntar a uma mana de afro:

O que se passa com o teu cabelo?

 

Poliamor africano em tempos de crise

Em Moçambique a poligamia não está legalizada e nem constitui crime. É algo mais ou menos aceite, com ou sem amor.

Quase sempre que nos referimos à poligamia para definir na verdade “poliginia”, que se caracteriza por uma relação entre um homem e várias esposas. E quase nunca se fala em “poliandria”, uma relação de uma mulher e vários esposos. Este debate foi levantado aquando da discussão da (nova) Lei da Família em 2004, na Assembleia da República.

Aquilo que é mais frequente na nossa sociedade – como em qualquer sociedade patriarcal é a poliginia. Encaramos esta realidade como algo normal, pois crescemos vendo tais situações nas nossas casas, nas casas dos nossos vizinhos, dos nossos tios, primos, etc.

Num país como Moçambique famoso pela variedade de religiões, povos e línguas é de admirar que se fale na poligamia apenas nestes termos. É quase impensável falar de uma relação entre uma mulher e vários homens como algo legítimo. Por que será? Cheira-me a machismo…

Muitos vão invocar factores ‘culturais’, mas a verdade é que a cultura não é algo estático e imutável. A cultura acompanha o tempo e o espaço. Motivo pelo qual uma família moçambicana a viver na África do Sul adopta alguns hábitos da cultura sulafricana, e uma família moçambicana há 30 anos atrás não vivia como uma família moçambicana vive hoje. Aliás, o próprio conceito de família já mudou!

13556278_pEHsS
Ngungunhana, o último monarca do Reino de Gaza, com 7 das suas centenas de mulheres em Manjacaze. Séc. XIX
Falemos então de factos:

É facto que existe uma valorização dos filhos em Moçambique, tanto é que a taxa de fertilidade é de 5,27 crianças por mulher. Numa relação poligâmica, um homem com várias mulheres consegue gerar muitos mais filhos, por isso é mais respeitado e considera-se com mais “riqueza”.

Outro facto é que em muitas relações poligâmicas, especialmente as que ocorrem à margem da lei, nas comunidades rurais, as próprias esposas concordam e participam activamente na manutenção desta ordem.

Mesmo assumindo a legitimidade e respeito pela agência pessoal destas mulheres, deve-se olhar para o sistema onde esta agência pessoal está inserida. Cada indivíduo faz as suas escolhas dentro de uma rede de opressões e privilégios que delimitam os seus sonhos.

Sabemos que aquela imagem das esposas-irmãs que há muito nos tentam vender não corresponde à vasta maioria das famílias poligâmicas. Aliás, muitas vezes as próprias práticas sócio-culturais criam condições que fomentam o ódio e ressentimento entre as mulheres.

Mesmo entre os filhos, é só perguntar a qualquer um que seja filho de uma segunda ou terceira esposa, existem distinções de tratamento, condições e oportunidades. Este clima acaba impedindo que haja uma relação saudável e de harmonia entre os irmãos.

Poucas são as mulheres que aceitam deliberadamente esse estilo de vida. Para as primeiras esposas, a poligamia é uma forma de manter relativo prestígio e ganhar algum poder sobre as decisões tomadas pelo marido ao arranjar a segunda esposa.

Já para as segundas, o estilo de vida oferece uma certa segurança para si e para os seus filhos, saindo do anonimato de uma relação em que é apenas a “amante”.

Há factores económicos e de poder que se sobrepõem à ideia de se considerar, de facto, amar.

Um elo é comum a todas: a pré-aceitação da fragilidade do sexo masculino face à ameaça de uma outra mulher por perto. A aceitação da irracionalidade do homem e da traição como uma fatalidade à qual não se pode fugir, ficando-se apenas pela salvaguarda da relação “legítima”.

Por isso, embora eu não questione a escolha a nível individual, eu sou obrigada a observar, num todo, como um determinado grupo de mulheres fez essa escolha. O que caracteriza esse grupo? Que opções estavam disponíveis no momento da escolha? De que ferramentas esse grupo dispõe para contestar a ordem em vigor?

E sobretudo: Por que é que essas mulheres que se dizem polígamas não praticam a poliandria, apenas a poliginia?

a06fig05

Não podemos ignorar a vulnerabilidade que estas relações trazem para as mulheres que nelas participam.

Se por um lado, a poligamia surge como uma forma de controlar os danos causados pelo adultério, por outro, traz consigo todas as certezas da superioridade do homem como prémio máximo para qualquer mulher: primeira, segunda ou décima.

Para além dos óbvios perigos de saúde, num país como Moçambique com uma das maiores taxas de HIV do mundo, estas mulheres estão completamente desprovidas de protecção legal.

Ao abrigo da Lei da Família, apenas a esposa que tiver o matrimónio registado no Cartório, ou conseguir provar a união de facto, que geralmente é a primeira, está protegida. Há um vazio no que toca a relações poligâmicas relativamente ao direito de sucessão, herança e transmissão de bens para as restantes viúvas.

Os filhos poderão ser dados como herdeiros, mas isso não os salvará dos olhares de desprezo e comentários desagradáveis nas suas famílias e comunidades.

É fácil falar em poligamia quando isso significa acesso livre ao corpo de várias mulheres. Quando é “poli” a disponibilidade sexual e o aparente respeito que lhe é conferido. E amor, há?

 

 

Para mais informações/ opiniões sobre o assunto:

Tendências e Factores Associados à Poligamia em Moçambique

Apanágio em Caso de União Polígama (art. 426º LF)

Notas sobre Big Brother, Sexualidade Feminina e Afins

Por que a sociedade se choca com uma mulher a explorar livremente o seu corpo e não se choca quando esse corpo é invadido sem a sua permissão?

 

Tem havido muito alarido em torno de fotos de algo que aconteceu no Big Brother Xtremo Angola/ Moçambique. Em fóruns tanto de Angola como de Moçambique as pessoas mostraram-se indignadas, chateadas e até envergonhadas por verem algumas colegas da casa com os seios à mostra; fazendo danças sensuais ou trocando carícias com outros na casa.

 
O facto é que o programa posiciona-se como M18 e está a ser transmitido via DStv, em que os usuários podem bloquear o conteúdo de um determinado canal caso achem inapropriado. Adicionalmente, todos os participantes são adultos e estão conscientes que todos os seus passos são gravados 24h diariamente em todos os cantos da casa.


Ainda assim, houve um desfile de discursos moralistas e de defesa dos valores “culturais” das nossas sociedades. As moças foram apedrejadas virtualmente, praticamente queimadas na fogueira como as “bruxas” da Idade Média perseguidas pela Inquisição.

Mas a mim não enganam: esse discurso cheira a machismo! 


Por que é que essa mesma sociedade não se choca quando surgem fotos de menores nuas ou seminuas a circular? Por que é que não nos chocamos quando alguém divulga um vídeo intimo filmado às escondidas? Por que é que até reencaminhados essas imagens?

A sexualidade feminina só choca quando é livre.

 

Quando o parceiro zanga-se e publica fotos íntimas da mulher, isso não nos choca. Quando numa novela a mulher é coagida a ter relações; quando é forçada a beijar alguém; quando usa o sexo para “prender” o homem, aí está tudo bem.


O choque não está em ver os seios das mulheres; nem em saber que elas são sexualmente activas, mas sim em ver uma mulher em plena TV a assumir a sua sexualidade e demonstrando prazer de forma autónoma.

 

Aquelas mulheres não se deixaram intimidar pelos olhos da sociedade machista que lhes assistem. Elas rejeitaram a posição de mulheres submissas, não se curvando aos padrões patriarcais em que vivemos e puseram o seu prazer em primeiro lugar.


O choque está em verem uma mulher a consentir e a assumir-se como um ser sexual em toda a plenitude sem pudor algum.