Nem todos os tesouros estão no fundo do mar

Nem todos os tesouros estão no fundo do mar

Os maiores tesouros africanos estão em Museus na Europa.  

Desde o início da exploração europeia à África, Américas e Ásia que várias relíquias, tesouros e até mesmo pessoas, foram roubadas dos seus locais de origem.

No fim deste mês alguns itens da colecção de Arte Africana de Liliane e Michel Durant – Dessert irão a leilão em Paris. São artigos provenientes sobretudo da África Oriental que datam do séc. XVI – XVIII e avaliados em milhões de dólares.

Como Liliane e Michel Durant – Dessert conseguiram acumular tais tesouros é-me desconhecido, mas podemos tirar algumas conclusões sobre como esses artigos foram chegar à Europa.

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Museu Britânico exibe acervo de arte africana. Fonte: Afro & Africa

Os primeiros exploradores europeus levaram consigo vários objectos como curiosidades, troféus ou testemunhos antropológicos de culturas exóticas: as roupas, comidas, estatuetas, etc.

Estes artigos foram recolhidos e acumulados ao longo dos séculos de ocupação europeia na África por exploradores, antropólogos, padres, etc e estão catalogados. São colecções inventariadas e protegidas, hoje em dia expostas em prestigiados museus ao redor do mundo.

Muitos dos grandes museus na Europa e das grandes coleções têm artefactos pertencentes a grandes impérios africanos hoje em dia extintos.

Do reino de Dahomey, onde fica actualmente o Benin, foram roubadas estátuas, jóias e até portas que estão actualmente em França.

No Museu Quan Branly, em Paris, estátuas roubadas no séc. XIX pelas tropas do general Alfred Amedee Dodds estão expostas como se tivessem sido oferecidas. Na verdade o general saqueou o palácio de Abomey, após ter vencido o rei Béhanzi e ter imposto o poder francês no reino, tornado-o assim numa colónia francesa.

 

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Segundo o Benin, existem na França entre 4500 a 6000 objetos pertencentes ao país. Fonte: G1

Nessa mesma época, séc. XIX, a Inglaterra invadiu a actual Etiópia e também levou vários tesouros. Entre os mais célebres está uma coroa de ouro, levada durante a campanha Maqdala 1868.

A campanha Maqdala 1868 tinha como objectivo instituir o domínio britânico na região e após a invasão, o imperador suicidou-se. Richard Holmes foi o responsável por recolher todos os objectos de valor e mantê-los em segurança para mais tarde serem expostos em Museus Britânicos, como acabou por acontecer.

A coroa tem um valor muito grande, pois é um importante símbolo para a Igreja Ortodoxa Etíope. Para além da coroa, foram levadas também outras jóias, manuscritos e até mesmo um menino, o filho órfão do imperador cujos restos mortais permanecem no Reino Unido até hoje, embora a Etiópia já tenha pedido a sua repatriação.

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A coroa está há 146 anos na Inglaterra. Fonte: Victoria & Albert Musuem

O Museu Britânico em Londres, fundado no séx. XVIII, também tem uma vasta colecção de arte africana. No total, são cerca de 200 000 itens de vários pontos do continente, a destacar uma cabeça de latão de um soberano iorubá de Ife (Nigéria) e a ourivesaria asante (Gana) entre outras.

Facto curioso é que este Museu reúne também peças pertencentes ao extinto Império Romano, que desde 1980 são disputadas pela Grécia.

Existe em Portugal o Museu Nacional de Etnologia, que tem raras e preciosas peças africanas. Adicionalmente, existe também a Sociedade de Geografia de Lisboa, as colecções privadas (tanto de particulares como de empresas) ligadas ao comércio colonial e os próprios antiquários que têm vindo a ganhar fortunas com a comercialização de arte africana.

A colecção de Liliane e Michel Durand-Dessert é apenas um exemplo precisamente disso.

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A alma africana no exílio. Fonte: Além Mar

Há décadas que têm sido feitas várias reivindicações no sentido de recuperar o património africano espalhado pelo mundo. No ano passado o presidente francês Emmanuel Macron disse no Burkina Faso que em cinco anos as obras de arte africana em França seriam devolvidas aos seus legítimos donos.

Em África existe uma vontade de recuperar o património perdido. Estima-se que mais de 90% dos artefactos que contam a História da África pré-colonial estejam foram do continente.

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Estatueta Mbembe (Nigéria) da colecção Durand-Dessert. Fonte: Blouin Art Info

Seja em Paris, Londres, Lisboa, Berlim, um pouco por toda a Europa existem milhares de artigos africanos em exposição ou leilão.

No dia 27 de Junho, em Paris, lá estará a nossa História, o nosso património, parte de quem somos, mais uma vez em hasta pública para ser comercializada.

E nós, teremos também de comprar a nossa própria Arte para retorná-la a casa?

 

As nossas colonialices

As nossas colonialices

Foi há 40 anos que Moçambique se tornou um país independente, governado tendo em conta os seus próprios interesses e para o seu próprio povo.

No entanto, a herança colonial até hoje está bastante presente.

A auto-imagem que temos é na verdade um reflexo do que nos foi ensinado sobre nós mesmos durante os anos de ocupação europeia no território Africano.

 

É comum entre nós, especialmente para as pessoas mais velhas que viveram o período colonial, reforçarem alguns mitos sobre os africanos: os africanos são preguiçosos; os africanos não têm tanta capacidade intelectual como os europeus; os africanos servem apenas para trabalho braçal; etc.

Por outro lado, também existe um discurso de saudosismo ao tempo colonial, que glorifica os horrores e opressões por que passavam todos os dias as populações africanas durante esse período.

E acima de tudo, herdamos muito da forma de estar, de ser e fazer do colono.

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A luta pela descolonização continua. Fonte: Público

Embora exista a União Africana, os blocos regionais e aqueles definidos pela língua são os que têm mais peso. Ainda nos definimos como lusófonos (os que falam Português); francófonos (os que falam Francês) e Anglófonos (os que falam inglês), e deixamos de lado as nossas restantes línguas, que representam a maioria da população e provavelmente os elos mais fortes que nos ligam.

A recente crise nos Camarões centra-se sobretudo na fricção entre camaronenses “francófocos” e camaronenses “anglófonos”, o que evidencia até que ponto essas identidades forjadas até hoje se fazem sentir.

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A crise dos Camarões prende-se com identidade. Fonte: Crisis Group

A verdade é que as próprias fronteiras não existiam e por isso, juntaram-se nações, repartiram-se outras para formar os países que hoje conhecemos.

Os poderes coloniais impuseram desta forma as suas línguas, costumes e culturas nos povos africanos. Desse processo houve mudanças sociais políticas e económicas que alteraram para sempre o destino dessas nações.

Portanto os conflitos étnicos/ tribais surgem como resultado dessas disputas: espaço legitimidade; recursos; etc.

Um outro exemplo marcante do colonialismo europeu é a réplica do funcionamento das insituições do Estado, até nas suas vestes.

Nos países outrora ocupados pela Grã-Bretanha, por exemplo, as formas de tratamento nos tribunais, o funcionamento dos mesmos e até mesmo o vestuário dos Juízes parecem ter saído do séc. XIX.

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Membros do Poder Judiciário no Malawi, Nigéria e Ghana, entre outros países africanos ainda usam o traje tradicional britânico. Fonte: The Independent UK

Uma das marcas mais fortes do colonialismo europeu em Moçambique é a institucionalização das “boas maneiras” e da “decência” especialmente na Função Pública, que é claramente herança do puritanismo católico.

As instituições públicas, na altura em que Moçambique estava ocupado pelos Portugueses, eram reservadas apenas aos europeus ou a alguns negros – os assimilados, que tinham alguns privilégios uma vez que eram “civilizados”.

Até hoje nas repartições públicas não se pode ir de calções, chinelos, blusas de alças ou saias acima do joelho. Estas medidas também são reforçadas em Escolas e até mesmo Universidades.

foto hospitalRecentemente uma imagem tornou-se viral por se tratar do aviso de um hospital. O aviso restringia o vestuário permitido aos utentes, o que é um absurdo, tendo em conta que se trata de um hospital.

Isto é novamente a reprodução do discurso do colono. O cidadão comum, pobre, camponês, tem desta forma o acesso vedado a estes serviços pois não tem roupas para entrar na Esquadra ou no Hospital, nem tão pouco para tratar o seu Bilhete de Identidade. Aliás, nem o rei da Swazi, com as suas roupas tradicionais seria admitido no Hospital!

Este falso moralismo sente-se um pouco por todo o lado. Estas noções de decência e civilização ultrapassadas são usadas até hoje nas nossas sociedades.

 

Ainda hoje nos inspiramos na legislação, educação, etc das potências europeias para edificar os nossos países “independentes”.

E como resultado, continuamos a reproduzir mecanismos de exclusão e a atrasar o nosso desenvolvimento.

Por que precisamos de falar de Leopoldo II?

Por que precisamos de falar de Leopoldo II?

Leopold_ii_garter_knightFoi a 19 de Setembro de 1903 que o rei Leopoldo II da Bélgica negou as acusações de brutalidade no Estado Livre do Congo e avisou os restantes países europeus para não interferirem no seu projecto.

Aquando da Conferência de Berlim, em 1884/85, o rei fez questão de segurar “o coração de África”. Este era um projecto pessoal e não da coroa belga, como se de um animal de estimação se tratasse.

Com 2 344 milhões de km2, a área do Estado Livre do Congo era 76 vezes maior que a Bélgica. Na altura os estimados 30 milhões de habitantes da região passaram a responder ao rei Leopoldo II, sem nunca sequer ter ouvido falar dele, como aconteceu com grandes nações africanas.

Sem uma constituição nem supervisão internacional, o rei conseguiu domínio sobre o território. Conseguiu fazê-lo por um lado através de jogos de poder, aproveitando os egos frágeis dos outros monarcas europeus. E por outro, usando o discurso paternalista e missionário, afirmando que o Congo era na verdade um Protectorado seu, que vivia sobre a ameaça de invasão árabe.

Na verdade o Congo era domínio seu, pessoal, rico em matéria prima valiosa como borracha e marfim, entre outros recursos naturais, que lhe permitiram acumular bastante riqueza e alimentar os seus vícios fartos.

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Por mais de 20 anos o rei Leopoldo causou danos anos no Congo que ecoam até hoje. Fonte: The Espresso Stalinist

Para cada região quem não cumprisse com as exigências do rei era penalizado severamente. As mãos e em algumas circunstâncias os pés dos filhos e mulheres dos homens que não conseguiam atingir as ambiciosas metas de extracção de borracha era cortados.

Este era o castigo mais comuns no Estado Livre do Congo, de tal forma que, as mãos passaram a ser usados como verdadeira moeda. Nas vilas em que a meta não era alcançada, os seus habitantes sacrificavam as mãos das famílias que menos contribuíam.

Guerras e assaltos a vilas vizinhas passaram a ser comuns, fosse para roubar a matéria prima, ou cortar os membros dos seus habitantes para pagar o prejuízo.

Sobre o domínio do rei Leopoldo II, estima-se que o Congo tenha tido a sua população reduzida à metade. Isto deveu-se sobretudo devido a guerras múltiplas; fome; redução da taxa de natalidade e epidemias.

A administração imperialista do rei belga criou mudanças drásticas na forma de viver do povo nativo, trazendo novas doenças; forçando movimentos migratórios; alterando a demografia das vilas e claro, deixando rastos de trauma.

Isto para não mencionar, claro, as situações precárias e brutais a que eram subjugadas as populações. Estas eram obrigadas a vender, a um preço fixo, aquilo que conseguiam e trabalhavam nas minas em tempo integral, como escravos, não recebendo nada por isso.

Adicionalmente eram também obrigados a fornecer comida aos seus colonos e eram proibidos de vender qualquer produto.

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O terror e violência eram usados para dominar os habitantes do Congo. Fonte: NY Times

John Harris de Baringa, um missionário em visita ao Congo ficou tão chocado pelo que viu que escreveu uma carta ao Comissário Residente:

“I have just returned from a journey inland to the village of Insongo Mboyo. The abject misery and utter abandon is positively indescribable. I was so moved, Your Excellency, by the people’s stories that I took the liberty of promising them that in future you will only kill them for crimes they commit./ Acabo de regressar de uma viagem pelo interior do país para a vila Insongo Mboyo. A miséria e o abandono total são indiscritíveis. Fiquei tão comovido pelas histórias do povo, Sua Excelência, que tomei a liberdade de promoter-lhes que no futuro haverá mortes somente por crimes que eles cometerem.”

No início do séc. XX, face à pressão externa, o rei Leopoldo II vendeu o Estado Livre do Congo à Bélgica e queimou grande parte do acervo histórico referente ao seu Protectorado.

Nem mesmo no Museu de África, construído pelo rei na Bélgica tem vestígios dos massacres e atrocidades cometidos no Estado Livre do Congo. Ainda prevalece o discurso condescendente dos tempos de glória do colonialismo europeu.

E a República Democrática do Congo, berço de Patrice Lumumba, continua assombrada pelos fantasmas daqueles que sofreram nas mãos do rei belga e tal como outros genocídios em África, este permanece ausente dos livros de História.

 

Monsieur Macron, vamos lá falar!

Monsieur Macron, vamos lá falar!

O Presidente francês fez alguns comentários recentemente sobre o estado actual de África que despontaram grandes debates.

Durante a cimeira dos G20, quando um jornalista da Costa do Marfim perguntou sobre a possibilidade da implementação de um programa em África como o Plano Marshall (Europa) , o Emmanuel Macron afirmou que os problemas enfrentados actualmente pelo continente africano são completamente diferentes, pois são civilizacionais e mais tarde ainda refere-se ao facto de as mulheres terem 7 a 8 filhos como um factor central para o sub-desenvolvimento do continente.

Bem, primeiramente, a taxa de fecundidade a nível do continente é de 4,45 filhos por mulher segundo dados da ONU de 2009. O único país Africano perto do número referido por Macron é o Níger, em que cada mulher tem em média 7,6 filhos.

Depois, vários foram os estudiosos que confirmaram que não é o sobre-povoamento que causa pobreza, mas sim a pobreza que causa sobre-povoamento. Ou seja, sociedades com níveis de literacia baixos e pouco acesso a serviços de saúde de qualidade estão mais predispostas a fazer muitos filhos. Pelo contrário, se esses “muitos filhos” conseguirem viver num ambiente mais propício ao seu desenvolvimento, provavelmente farão menos filhos.

Para além disso, a ideia em como recai na mulher todo o peso do desenvolvimento de um país inteiro é não só machista, como distrai-nos de questionar o papel de políticas imperialistas e neo-colonislistas em vigor nos países africanos.

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Macron não é diferente dos restantes líderes ocidentais. Fonte: This is Africa

Macron, ainda nessa resposta fala no combate à corrupção e em melhor governação.

Nos últimos 50 anos África assistiu a mais de 26 golpes de Estado (ou quase isso) sendo que 16 destes aconteceram em países que tinham sido colónias francesas.

Adicionalmente, até hoje 14 países africanos “francófonos” pagam €440 bilhões anualmente para a França. Estes países devem pagar 85% das suas reservas em moeda estrangeira ao Banco Central Francês.

Ou seja, a política externa da França no que toca aos países africanos mostra que ainda é baseada numa visão colonialista, em que os países “francófonos” são uma extensão do seu território na Europa.

O papel da França no genocídio de Ruanda, no assassinato de Thomas Sankara e mais recentemente na morte de Gaddafi, ainda que por esclarecer, mostra como a França tem agido tendo em conta os seus próprios interesses e não o crescimento e desenvolvimento do continente africano.

Isto evidencia o papel da França no sub-desenvolvimento de África e de África no desenvolvimento da França.

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Por que são tão importantes as ex-colónias africanas para a França? Fonte: Mail & Guardian

A instalibilidade do continente é em grande parte resultado da interferência ocidental em África.

Tudo o que foi dito por Macron – ou grande parte – é verdade, mas não é o problema, não é a doença. São apenas sintomas: Estados descredibilizados; conflitos armados constantes; fraco controle da natalidade; etc.

Estas verdades são a parte material, a parte visível. Mesmo se esses sintomas não estivessem lá teríamos outros, e precisaríamos de ajuda à mesma.

Foi o Ocidente que instalou estes regimes corruptos para melhor manipularem os povos e servirem os seus interesses e depois vêm aqui falar em corrupção e boa governação. Isto para não mencionar as medidas racistas anti-imigração que implementam na Europa para impedir-nos de fugir à Pobreza e miséria.

É muita hipocrisia – ou ignorância – Macron sentar-se no topo da montanha de dinheiro arrancada aos países africanos, com o seu vinho francês e falar de África como um fardo que ele carrega.

Macron não vê os países africanos como parceiros de negócios, mas sim como bebés ricos que precisam de ajuda a gerir os recursos.

Quando a França começar a falar em reparações pelos danos humanos e materiais que causou com a sua ocupação no continente africano; quando a França parar de deixar africanos morrerem no Mediterrâneo em busca de uma vida melhor; quando a França devolver o dinheiro de África que tem nos seus cofres, bem como arte nos seus museus, aí sim vamos falar em “civilização“.

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O problema com o “complexo de salvador branco” em África. Fonte: Ventures Africa

Contudo, a maior decepção acho que foi mesmo para quem aplaudiu e se jubilou com a sua eleição.

Afinal de contas, Emmanuel Macron criou esta imagem carismática, com os seus olhos claros e sorriso fácil. Quebrando protocolo de vez em quando, para lembrar ao público da sua humanidade e sejamos francos, com o oponentes que ele tinha, seria difícil se não tivéssemos caído no seu jogo de sedução.

Mas a verdade é que ele é apenas tão liberal como outro presidente ocidental branco qualquer. Ele provavelmente só não diz as coisas racistas e xenófobas que o Trump diz para não ferir susceptibilidades, mas ri-se das piadas no seu íntimo e agradece por haver alguém que diga essas coisas em voz alta.

Macron não é diferente dos nossos amigos estrangeiros, brancos, imigrantes (ou talvez diria expatriados)  vindos do Ocidente que adoram África e contam histórias fantásticas de todos os países africanos que visitaram e do trabalho que as ONGs para quem trabalham/ trabalharam faz e até lêem Chimamanda Adichie ou Chinua Achebe porque “literatura africana é fascinante”.

Mas esses nossos amigos vivem nos melhores bairros das nossas cidades; recebem muito acima da média e têm regalias que lhes permitem viver de forma luxuosa, mesmo no meio de tanta Pobreza e sendo a ‘voz dos desfavorecidos’.

Ao jantar com amigos falam das decepções de viver num país em que nada funciona e em que não se pode confiar sequer na polícia, e levam as empregadas fardadas aos restaurantes enquanto discutem os direitos das mulheres.

Macron se encaixaria perfeitamente nessas conversas e provavelmente falaria da crise da caça furtiva e da pena que é ir aos safaris e não ver elefantes. Falaria também do quão gosta da comida local e da hospitalidade onde quer que vá, mas jamais faria a relação entre isso e a cor da sua pele.

Enfim, Emmanuel Macron, aquele amigo europeu branco que contribuiu 1 dólar para uma ONG qualquer, daquelas com fotos de crianças mal nutridas nas assinaturas dos emails para limpar a sua alma da culpa que o seu capitalismo e condescendência lhe trazem.

 

Os Bons & Velhos Tempos

Como a História que nos ensinam deturpa a realidade dos tempos que se foram.

No nosso imaginário a “vida na quinta de escravos” ou a “vida na colónia” era cheia de alegrias e tempo livre para correr, brincar, namorar. Lá as senhoras brancas confidenciavam nas suas amas de leite, que depois de apaixonavam pelos seus patrões brancos e desse amor proibido nasciam filhos mestiços.

As crianças, tanto brancas como negras, eram livres para correr, brincar e comer. Podiam ir à praia ou comer os frutos silvestres que caíam das árvores.

Ah! Como eram bonitos, os bons e velhos tempos!

Esse saudosismo barato que glorifica as atrocidades cometidas pelos países colonizadores e sociedades esclavagistas é muito comum e começa cedo.

Durante a infância, as crianças são ensinadas a fazer uma interpretação romântica da Escravatura e do Colonialismo.

Os livros escolares trivializam as questões de violação de direitos humanos. Adicionalmente, não fazem uma leitura fidedigna da natureza das relações de poder e das violências levadas a cabo pelos países colonizadores.

Assim, as crianças crescem sem uma visão fiel da História e perpetuam os ideais imperialistas e racistas que até hoje regem o mundo.

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Os Portugueses sabem pouco do seu Passado Colonial. Fonte: Diário de Notícias

Na África do Sul recentemente a deputada Helen Zille do principal partido da oposição (Aliança Democrática) elogiou o legado do Colonialismo.

Segundo ela, foi graças ao sistema colonial que a África do Sul conseguiu ter grandes infraestruturas (hospitais; rede de transportes; etc). Mas, para quem eram tais infraestruturas? Quantas pessoas tiveram de morrer para construir tudo isso?  E até hoje, quem tem acesso a tais infraestruturas?

E sobretudo, é importante referir que tais construções tiveram um preço muito alto, demasiado alto. Apenas em 1994 a África do Sul se libertou das correntes do Apartheid, que deixaram a população negra sul-africana estruturalmente desfavorecida.

É a população negra que ocupa os cargos mais precário, que faz o trabalho mais pesado; que vive nas zonas mais vulneráveis tanto para a sua saúde como para a sua segurança e obviamente, é a população negra quem tem menos acesso a Educação Superior.

Taxativamente falando, é esse o legado do Colonialismo.

A imagem e fotografia que se dá ao Colonialismo sempre é aquela dos tempos de glória, em que as cidades andavam limpas e os restaurantes eram bem frequentados (leia-se aqui, na altura em que os pretos não podiam lá estar).

É esta mesma imagem que vemos recriada em hotéis, restaurantes, revistas, filmes, etc.

Essas imagens reforçam a ideia de “exótico” e “étnico” que se usam frequentemente para descrever as populações negras. São retratos que reflectem a saudade e vontade de reviver tempos que na verdade foram sombrios e de muita dor para quem foi oprimido durante séculos.

Essas reconfigurações da memória colonial não só a deturpam, como a validam. O mito vira facto.

Para além disso, reflectem também  como na nossa sociedade o racismo e o colonialismo é visto como algo ultrapassado. É impensável haver um café, num hotel, com nome de “Café Nazi”, como existe em Lisboa o “Café Colonial“.

No entanto, o Colonialismo foi também um sistema de domínio que definia uma determinada raça como superior à outra; um sistema que limitava as liberdades das raças tido como inferiores; um sistema que perseguia, torturava e matava aqueles que se opunham ao poder. Tal como o Nazismo, o Colonialismo foi perverso, violento, nocivo.

Embora com objectivos distintos, ambos sistemas deixaram marcas que se fazem sentir até hoje.

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Designer paquistanesa Aamma Aqeel foi criticada pela coleção “Be My Slave” (Seja meu escravo): Fonte: Clutch Magazine

Mas a nostalgia colonial está também presente nos países hoje independentes.

Por exemplo, até recentemente havia uma discoteca chamada “Sanzala” na Baixa de Maputo. Isto evidencia a insensibilidade com que se trata a escravatura no país e a falta de conhecimento do horror e violência a que as pessoas escravizadas eram submetidas.

No Brasil também são comuns as referências à escravatura. No ano passado uma quinta que fazia encenação da vida dos escravizados (incluindo torturas) foi denunciada e obrigada a encerrar o “entretenimento”.

 

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No Brasil é pertinente explorar melhor a Lei Áurea. Fonte: Brasil Escola

É importante contar a História tal ela aconteceu. Houve exploração, violação, dominação dos povos africanos. Houve desmando e abuso.

O Colonialismo e a Escravatura foram processos dolorosos que não só dizimaram pessoas, mas também culturas. As nações foram roubadas e impedidas de se desenvolverem, de usar os seus nomes e as suas línguas.

Cabe-nos a nós reconhecer e falar das atrocidades cometidas com a devida seriedade sem crises de consciência.

 

Amílcar hoje

Amílcar Cabral foi o líder da libertação de Cabo Verde e Guiné Bissau, assassinado a 20 de Janeiro de 1973 antes de ver a independência das (ex) colónias africanas de Portugal.

Agrónomo, revolucionário anti-fascista, guerrilheiro e panafricanista, Amílcar Cabral marcou a História pelo seu papel central na luta pela auto-determinação dos povos de Cabo Verde e de Guiné Bissau que viviam sobre o domínio português.

Como um dos fundadores do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné Bissau e Cabo Verde), foi um dos mais bem sucedidos líderes de uma revolução de guerrilha, tendo em algum momento dominado grande parte do território guineense (cerca de 70%) antes de Portugal concordar em ceder o poder a quem era de direito.

 

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Amílcar Cabral continua a ter impacto em movimentos contemporâneos. Fonte: Pambazuka

 

Enquanto estudante universitário em Lisboa, estabeleceu contacto com Agostinho Neto e Eduardo Mondlane que viriam a liderar movimentos de libertação em Angola e Moçambique, respectivamente.

Fez parte, em Lisboa, da Casa dos Estudantes do Império, que se tornou num centro de valorização das culturas africanas. Foi aí que se estabeleceu o contacto entre Cabral e outros intelectuais contemporâneos, tais como Marcelino dos Santos, Mário de Andrade, Noémia de Sousa e Alda Espírito Santo, entre outros.

Foi esta elite que deu origem ao Centro de Estudos Africanos e deu início ao processo de consciencialização das então colónias portuguesas, através do qual se estabeleceram movimentos de libertação.

Este pequeno grupo privilegiado de estudantes universitários oriundos de diferentes pontos do continente africano foi capaz de não só questionar a lógica colonial, mas mais do que isso, mobilizar forças para dar um fim definitivo ao colonialismo português.

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A união entre os movimentos de libertação foi uma peça central. Fonte: Via Atlântica

A ligação entre os movimentos de libertação foi de grande importância para o sucesso das lutas pela independência.
Mas Cabral destacou-se sobretudo pela sua articulação e pelo trabalho que fez como questionador do seu tempo, teorizando grande parte das suas visões para África.

O que mais marca Cabral é o papel que ele dá à valorização das culturas nativas. Segundo ele, a cultura é o fundamento da luta anti-colonial na medida em que só se libertam os povos que vêem a sua capacidade de criar e praticar cultura limitada.

Ou seja, a subjugação de uma cultura nativa face à imposição de uma cultura estrangeira é que obriga uma determinada sociedade a lutar pela sua libertação.

 

De uma forma alargada, muito daquilo que se fala hoje sobre a globalização e neo-colonialismo já tinha sido antecipado por Cabral. Só se pode dizer livre um povo que é capaz de negar influências negativas de outras culturas de modo a preservar a sua cultura e a sua identidade.

Na sua compreensão do mundo ele vai para além das ideias do Homem Novo que muitos movimentos revolucionários da época defendem, e projecta um resgate dos valores e hábitos tradicionais africanos.

Para ele é central o papel da cultura para a resistência anti- imperialista e daí a necessidade de criar espaço para a cultura, através da luta, restaurar as pessoas oprimidas e transformá-las em agentes completos da sua própria história e identidade.

 

“Nós queremos entretanto exprimir claramente o seguinte: nós não confundimos a nossa luta, na nossa terra, com a luta do povo português. Estão ligadas, mas nós, no interesse do nosso povo, combatemos contra o colonialismo português. Liquidar o fascismo em Portugal, se ele não se liquidar pela liquidação do colonialismo, isso é função dos próprios portugueses patriotas, que cada dia estão mais conscientes da necessidade de desenvolver a sua luta e de servir o melhor possível o seu povo.”

O desmoronamento do Estado Novo em Portugal, embora não fosse a finalidade do trabalho de Cabral e dos seus contemporâneos, acabou sendo um dos resultados da sua luta.

O colonizador inevitavelmente acabou sendo libertado pelo colonizado. Para Cabral, isso era previsível pois a revolução opunha mais os povos dominados aos dominadores, desafiando a própria essência da ditadura fascista, do que opunha o proletariado (colonizados) à burguesia (colonizadores).

Pode-se dizer, portanto, que não foi Portugal que libertou as colónias, mas sim foram as colónias que libertaram Portugal. Na medida em que através da defesa da sua auto-determinação e da exigência do reconhecimento da sua humanidade plena puseram em causa a própria natureza do Fascismo Português, destruindo-o.

 

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É importante perceber como, para Amílcar Cabral, a luta armada pelo fim do colonialismo, não termina na declaração da independência. Para ele, era preciso compreender dilemas persistentes como a ligação cultural entre os povos africanos e o povo português (que ele sempre separou do Estado Português), bem como as ideias de construção de Estado num contexto de pan-africanismo.

Embora panafricanista, Cabral rejeitava a ideia de se tratar da África Negra como um espaço homogéneo. O panafricanismo de Cabral defendia as especificidades de cada nação africana e o seu estudo de forma isolada.

A dimensão de libertação de Cabral ia para além da auto-determinação a nível da organização política,mas passava também sobre a auto-descoberta da cultura nativa e do seu desenvolvimento. Por isso é tão importante revisitá-lo hoje, 44 anos após o seu assassinato.

O legado político de Amílcar Cabral vai para além do seu estudo crítico dos desafios e ameaças dos movimentos de libertação africanos dos anos 50 e 60.

Ao explorar as a centralidade da cultura e da identidade, bem como ao desafiar as noções de imperialismo e colonialismo, Cabral obriga-nos a observar o panorama social actual e a reconhecer padrões idênticos àqueles que ele lutou para derrubar.

O seu pensamento é relevante e contemporâneo para falarmos de apropriação cultural, de movimentos migratórios e de novas formas de domínio dentro do próprio continente africano.

 

 

Lobolo aos olhos de hoje

O lobolo é uma cerimónia tradicional em que a família do noivo oferece um dote à família da noiva, celebrando assim a sua união.

Tenho notado já há algum tempo que hoje em dia, especialmente nos meios urbanos, há uma intepretação errada de vários elementos tradicionais da nossa cultura moçambicana.

Desde a chegada dos Europeus a África que houve uma demonização de tudo o que era estranho e bizarro quando comparado aos seus hábitos e costumes. E assim os modos das sociedades africanas foram ridicularizados e até proibidos, motivo pelo qual muitos rituais deixaram de ser praticados.

Um desses elementos mal interpretados aos olhos de hoje é o ritual matrimonial tradicional – o lobolo.

Como é que em Moçambique se dizia “casamento” antes de chegar a Igreja Cristã? Como é que se reconhecia a união entre duas pessoas antes de haver um “Estado”? O que era um “casamento”?

Temos de usar os olhos de ontem para procurarmos interpretações – e validade! – nos rituais hoje ou corremos o risco de viver acorrentados às ideias medievais que o Velho Continente nos passou.

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O lobolo é mutável, variável e adaptável. Fonte: Antropocoiso

A cerimónia do lobolo consiste numa oferta de bens em forma de gado, dinheiro, roupas e alimentos, entre outros à família (clã) da noiva. Após a aceitação e recepção destes bens por parte da sua família, a noiva passa a pertencer à família (clã) do noivo. Por esse motivo, aos olhos do colono, a mulher estaria a ser “vendida” e é essa narrativa que até hoje se mantém para rejeitar o ritual.

O dote oferecido servia de fundo comunitário para aquela família (clã). E de certa forma também de seguro, pois para anular a união seria necessário a devolução do dote, o que poderia pôr em causa toda a economia local.

Sempre ouvi o meu pai contar uma história que aconteceu há muitos anos em Homoíne (província de Inhambane) na aldeia onde ele cresceu. Um homem matou a sua própria irmã à catanada e foi enviado para S. Tomé & Príncipe, onde cumpriu a sua pena trabalhando como escravo para o regime colonial Português.

O motivo do assassinato foi o facto de a sua irmã ter manifestado a sua vontade em querer dissolver o seu matrimónio, o que obrigava a sua família a devolver o dote ao seu esposo. O seu irmão, por sua vez, já tinha usado grande parte do dote para lobolar a sua esposa, então teria ele também de se divorciar para devolver os bens.

Ou seja, o dissolução de uma união criava a dissolução de outras uniões em forma de cadeia, destruindo por completo a harmonia naquela sociedade. A situação levou o irmão à beira do desespero e terminou de forma trágica.

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Na Namíbia, Quénia e África do Sul, o lobolo chama-se lobola. Em Angola é o alambamento.

Estando inserido numa sociedade patriarcal (q.b.) o matrimónio tradicional não deixa de ser um fenómeno económico e de poder – como o matrimónio religioso cristão,- na medida em que serve de regulação social, pois o lobolo legitima a relação do casal e eleva o estatuto dos nubentes.

Para além disso, o lobolo estabelece uma família (garante descendência) e alberga também garantias que asseguram a vida e sobrevivência das famílias envolvidas no caso de morte de uma das partes.

Hoje em dia o lobolo, como qualquer outro ritual, já sofreu alterações na sua forma e no seu conteúdo, no entanto mantém o valor social que representa. É um dos elementos tradicionais que até as famílias mais modernas conseguiram manter, e por isso reforça o nosso sentido de Africanidade.

Por exemplo, no lobolo já se oferece um anel de ouro, que foi incorporado dos rituais da Igreja Cristã. A loiça feita de barro e madeira foi substituída pela porcelana (apesar de não servir para as orações e oferendas aos antepassados). Por outro lado houve símbolos africanos como o gado e as capulanas que sobreviveram a essas mutações.

Nos dias que correm é comum a realização do lobolo seguida do casamento religioso e/ou cerimónia civil, antes do copo d’água. Esta prática tem como objectivo a manutenção do nosso sentido de identidade e de compromisso com os antepassados.

Nas regiões mais rurais, o lobolo é um ritual que confere um reconhecimento social que as outras cerimónias (na Igreja, Mesquita, Conservatória, etc) não oferecem, pela dimensão de envolvimento da comunidade e ligação histórica e espiritual.

Tendo em conta estes factores, a “nova” Lei da Família já prevê o lobolo como uma cerimónia legítima, com o mesmo peso legal que o casamento civil.

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Hoje em dia é comum incorporar elementos tradicionais com os mais modernos.

O lobolo em Moçambique é uma prática que visa o reconhecimento matrimonial, isto é, garante a reprodução, estabilidade, compromisso, e estabelece os direitos e deveres entre um homem e uma mulher perante a comunidade.

Ao conotarmos o lobolo como uma simples transacção de compra e venda tiramos todo o simbolismo e importância que o ritual de facto tem. Estamos a olhar como o Europeu que aqui chegou olhou, sem ter sensibilidade para perceber as estruturas e crenças das sociedades da época.

Tal como entendemos, praticamos – e perdoamos! – o casamento religioso cristão, com todas as suas limitações, devemos também fazer o mesmo exercício ao olharmos para o lobolo.

É nosso dever descolonizar estas ideias ultrapassadas dos nossos próprios hábitos e costumes e encontrar formas de adaptar os rituais à nossa actualidade.

 

Novas Igrejas, Colonialismos Antigos

O papel das Igrejas como centros de submissão de povos, estabelecendo controle sobre o imaginário divino para facilitar então o domínio político e social.

Durante toda a História da Humanidade, vários sistemas de comunicação com o Divino foram estabelecidos. E de uma forma ou de outra, esses sistemas criavam sempre uma ordem que devia ser respeitada, sobre a ameaça de consequências catastróficas para os desviantes.

As religiões sempre estiveram ligadas ao poder. Foi com essa desculpa de evangelizar os povos de todos o mundo que as nações ocidentais invadiram continentes e colonizaram nações.

Para os países colonizados, essas feridas até hoje se fazem sentir.

A religião sempre foi utilizada para entrar na mente de uma pessoa, pois para escravizá-la ou colonizá-la é preciso primeiro que ela o permita. E isso é conseguido através do ensino de um sentido de inferioridade.

Seria necessário, para durante séculos dominar um povo inteiro, eliminar qualquer fé que esse povo teria nele próprio e nos seus Deuses. Os Deuses que os protegiam nas grandes batalhas, que os alertavam para os perigos do Futuro; os Deuses para quem esses povos eram importantes e especiais foram então eliminados.

Através da demonização das religiões de matriz africana e da perseguição dos seus praticantes, bem como o baptizado forçado de africanos escravizados ou de qualquer africano que quisesse ter mais oportunidades, aos poucos os povos colonizados esqueceram-se dos seus Deuses.

Passaram adorar um Deus branco. Anjos loiros e de olhos azuis. Profetas de cabelo liso e longo. Foi assim que os colonizadores romperam por completo a ligação que os povos africanos tinham com o Divino e conseguiram, por muito tempo, saquear as suas terras e riquezas.

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Missionários no Séc. XIV convertendo crianças para o Cristianismo.

Mais recentemente, com a febre das igrejas neopentecostais, uma nova Cruzada começou a ser feita.

Hoje em dia os soldados de Cristo já não andam a cavalo nem chegam de navio. Aparecem com os mais recentes modelos de automóveis e andam bem vestidos. Aparentam uma vida de sucesso, com uma família perfeita e um comportamento exemplar.

Segundo a doutrina neopentecostal, a prosperidade na vida de um crente é proporcional à sua entrega a Deus. Assim sendo, a marca da plenitude da fé é muita saúde e aptidão física, estabilidade emocional e prosperidade material.

Não é de admirar que estas Igrejas, a destacar a IURD, têm nos seus crentes pessoas capazes de entregar tudo o que conseguem com o suor do seu trabalho em troca de um pedaço de terra no Céu.

Em África, e mais precisamente em Moçambique, esta linha de pensamento não está muito longe das religiões tradicionais baseadas na ligação histórica aos antepassados. De acordo com a crença tradicional, doenças e azares resultam de maldições e pragas lançadas pelos antepassados insatisfeitos.

Em muitos países infestados por guerras; doenças; fomes e catástrofes naturais, a sociedade como um todo vê-se perdida. As pessoas são deslocadas e abandonam os seus locais sagrados; perdem-se das suas famílias e da sua história e nesses processos, desligam-se também das suas divindades, vivendo com pouca paz espiritual.

Os traumas, dramas e depressões dessas desgraças são presenças constantes no nosso quotidiano, criando um ambiente de desespero e incredulidade generalizados.

Quando cruzamos estes factores, torna-se evidente o sucesso das Igrejas Neopentecostais em Moçambique e em outros países cujas religiões de base se guiam por esse pensamento.

A tudo isso, acrescentam-se ainda as dificuldades económicas e financeiras da vida contemporânea: não tenho dinheiro para cobrir as minhas necessidades básicas; vivo numa casa precária; tenho um emprego que não me satisfaz; os meus filhos não têm o que vestir; etc. Essa crise material, quando se depara com a crise espiritual cria condições para o sucesso dessas Igrejas.

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Fonte: Facebook Igreja Universal do Reino de Deus

Vejamos que, por exemplo, nas religiões de matriz africana até os locais sagrados são simples e rudimentares, muitas vezes debaixo de árvores e no meio da natureza. Os líderes religiosos usam roupas feitas de materiais baratos e falam línguas ditas “primitivas”, comunicando-se com o Divino através de conchas, ossos ou mesmo a água.

Enquanto essas Igrejas têm templos grandes e robustos, onde se falam línguas célebres no microfone. Os líderes usam fatos e roupas bem vistosas. Andam de carro e vivem em verdadeiros palacetes. Até os seus rituais são mais compostos e sofisticados.

Então eu pobre; desesperada; doente; com fome; com sede; sem tecto; onde vou pedir riqueza?

Por muitos anos foi-nos negada a nossa forma de ver, sentir e falar com Deus. E nós crescemos sem uma imagem sagrada de nós mesmos, sem um sentido positivo das nossas religiões e completamente desligados das nossas raízes.

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Celebrações do Dia de VooDoo no Benin

Curiosamente, alguns países ocidentais estão a resgatar as suas ligações espirituais que ocorrem fora dos padrões da Igreja. Aquilo que chamavam de animismo começaram também a incluir nos seus cultos.

Mas nós negamos essa presença, apesar de nos usarmos de alguns rituais quando nos convém, pois continua no nosso inconsciente a sua veracidade.

A nossa História colectiva foi apagada e com ela a nossa Fé. Essa vulnerabilidade torna-nos superfícies altamente permeáveis, capazes de facilmente adoptar qualquer doutrina de pensamento sem questionar a sua validade para o nosso contexto.

No início chegaram os Árabes, passámos a chamar-nos Zeinab, Mohamed, Catija, como o Profeta e a sua família. Depois invadiram-nos os Portugueses e aos nossos filhos demos nomes como Francisco, Miguel, Maria, como se chamam os seus santos e agora vêm os Brasileiros, e já surgiram os Enzo, Caíque, Nicole… Quando é que os nossos filhos terão os nossos nomes? Nomes da nossa História? Dos heróis? Dos nossos antepassados?

 

O que diria Lumumba sobre o EURO?

Patrice Lumumba foi o primeiro político democraticamente eleito na República Democrática do Congo ao tornar-se Primeiro-Ministro. Apenas 81 dias depois de fazer História foi assassinado em circunstâncias duvidosas com o envolvimento da Bélgica.

Lumumba foi um dos fundadores do Movimento Nacional Congolês (MNC). Acreditava veemente na independência total e inalienável do Congo e na capacidade do povo congolês de gerir as suas infraestruturas, pessoas e sobretudo recursos.

Ao chegar ao poder, em 1960, Lumumba fez questão de se posicionar como um Pan-Africanista interessado em apoiar a luta pela auto-determinação de outras Nações Africanas. A sua inabalável determinação e carácter incorruptível tornaram-no num alvo a abater pelas forças ocidentais, que viram os seus interesses ameaçados.

Poucos meses depois das eleições, conflitos internos dividiram o Congo em três partes, governadas por líderes distintos (com aliados distintos) e rivais. A situação era insustentável e Patrice Lumumba pediu a intervenção da Organização das Nações Unidas, que nada fez senão olhar de longe o declínio de um Congo próspero, como prova da incompetência dos Africanos de se auto-governarem.

A 17 de Janeiro de 1961, aos 35 anos, depois de ter sido preso e sujeito a tortura, Lumumba foi morto a tiros com o conhecimento dos EUA e apoio da Bélgica. O seu corpo sem vida foi ainda esquartejado e queimado com ácido, de forma a eliminar quaisquer provas do crime.

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Hands tied behind his back, deposed Congo ex-premier Patrice Lumumba (center) leaves a plane at Leopoldville airport, Dec. 2, 1960, under guard of Congolese soldiers loyal to Col. Joseph Mobutu. (AP-Photo/File)

A sua trágica morte é considerada por muitos historiadores como o mais importante assassinato do séc. XX, tendo em conta a importância que teria para o futuro do Congo e para descolonização/ democratização de África nos anos posteriores, bem como para o desenrolar da Guerra Fria e desenvolvimento de armas nucleares.

Hoje, em 2016, assistimos a mais uma edição do Euro: a maior festa de futebol da Europa. Este ano em França como foi também em 1960, na primeira edição.

O que é que a História do revolucionário congolês tem a ver com o maior espectáculo de futebol da Europa?

Curiosamente, o Euro tem uma longa história de protestos de motivação política.

Na primeira edição do campeonato, a Inglaterra, a Itália, a Alemanha Ocidental e os Países Baixos retiraram-se da competição por se oporem à participação da União Soviética. A Espanha abandonou nos quartos de final, também por não acreditar numa festa Pan-Europeia com a URSS, que, by the way, levou a taça para casa.

Na edição seguinte, a Grécia abandonou ao ter de jogar contra a Albânia, com quem ainda estava em guerra. E mais uma vez, a Alemanha Ocidental recusou-se a participar.

Já em 1992 a Jugoslávia foi impedida de jogar pela própria UEFA por estar a passar por uma guerra civil.

Não é estranho todas estas Nações se terem calado face às atrocidades que aconteciam em África?

Ironicamente, e como era de se esperar, à medida que as ex-colónias atravessaram momentos de tensão e conflito, a Europa recebia cada vez mais emigrantes africanos.

Mesmo depois de pegarem em armas para se livrarem do domínio belga no seu território, os Congoleses viram-se obrigados a pedir socorro à Bélgica depois da morte de Lumumba.

Com o tempo, uma nova classe de Africanos emergiu, mais consciente e preparada.  Talvez até talentosa, tal como sonhava Lumumba, mas longe de África. Na Europa.

E hoje vemos no relvado do Euro a herança do (des)colonialismo em África.

A selecção da  Bélgica, destaca-se por ser das que mais descendentes africanos tem na sua equipa: um total de 6, sendo 5 do Congo e 1 do Senegal (colónia francesa).

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Irmãos Jordan e Romelu Lukaku de descendência congolesa a representar a selecção da Bélgica.

E por falar em França, a sua selecção tem 9 descendentes de imigrantes africanos. Na sua maioria de países francófonos, como Senegal e Mali.

Em Portugal também há traços desse fracasso nos processo de democratização das suas ex-colónias. E foi esse fracasso que ajudou na manutenção da dependência entre colono e colonizado.

A manutenção de uma relação doentia baseada num sentido de inferioridade reforçado vezes sem conta para sustentar o status quo. Nas palavras de Lumumba: “Nós sabemos os objectivos do Ocidente. Ontem eles dividiram-nos baseando-se na tribo, no clã e na vila. Hoje, com a África a libertar-se, eles querem dividir-nos com base em Estados (…) para perpetuar o seu domínio.”

Por isso um Congolês nunca amará mais Portugal que a Bélgica. Um Moçambicano nunca desejará ser mais do Reino Unido que de Portugal. E um Ganês nunca vai admirar mais a Bélgica que o Reino Unido. E por aí adiante.

Somos reféns do nosso opressor e da nossa opressão.