E agora Senhor Ministro?

Um recente espectáculo gratuito de violência nas escolas foi distribuído, via redes sociais para todo o Moçambique. Qual é a resposta do Ministério da Educação? 

Não é surpresa a inexistência de segurança no Ensino Público, mas um caso de esfaqueamento filmado e reenviado vezes sem conta desperta qualquer sociedade. Ou pelo menos devia.

O vídeo, que mostrava dois rapazes numa Escola Secundária a lutarem, ambos a sangrar, ganhou atenção especial por um deles ter sido esfaqueado sem que nenhum professor, guarda ou qualquer outro funcionário do recinto percebesse o que estava a acontecer no momento do incidente.

As deficiências; carências e lacunas do nosso Ensino Público já são por todos nós conhecidas: falta de infraestruturas que promovam o bem-estar do estudante; condições estéreis para o nascimento de ideias e mentes brilhantes; sobrelotação das salas de aula; falta de manuais escolares; escassez de professores; desistência por parte dos alunos; reprovações em massa; etc etc etc.

O cenário é tenebroso. Catastrófico.

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Crianças a estudar ao relento numa manhã de nevoeiro em Maputo. Fonte: Facebook

O Ministério da Educação parece não saber bem por onde pegar. Está mesmo complicado!

No início do ano lectivo, numa tentativa de resgatar a honra e valores de outrora, S. Excia. Senhor Ministro decidiu implementar a obrigatoriedade do uso das maxi-saias.

A medida tem como intuito melhorar o ambiente de ensino e repor a decência nas salas de aula. Ou, por outras palavras, vem devolver ao professor a sua inocência e impedir as meninas de serem violadas – sim, porque a culpa é delas.

Agora enfrentamos outra crise – dentro de todas as outras crises (as mencionadas e as ocultadas): violência nas escolas.

Quando meninas começaram a aparecer grávidas nas escolas encaramos isso como um problema nacional. Aquilo foi um vuku-vuku jamais visto! Primeiro começou-se por tirá-las do curso diurno. Depois veio essa das saias até aos calcanhares.

As pessoas saíram à rua. Gritaram. Manifestaram-se (ou quase isso). Escreveram contra e a favor. Por causa das saias até houve quem fosse deportado de Moçambique.

O Senhor Ministro até já estava cansado de proteger os pedófilos que andam aí disfarçados com batas brancas como se estivessem a ensinar – até porque há um problema de quadros, não podemos mandá-los embora.

Enfim o Senhor Ministro lá geriu a situação e agora vem esta!

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A obrigatoriedade das maxi-saias gerou polémica. Fonte: Comunidade Moçambicana

Dois rapazes foram filmados por outros colegas numa luta violenta da qual um saiu esfaqueado e apenas um dos envolvidos foi expulso e preso (supostamente). O outro certamente também irá tirar contas com a Justiça em tempo útil.

Aguardo ansiosamente a próxima medida do Senhor Ministro.

Já não se fala de um problema de dimensão nacional, embora vários alunos tenham assistido (e até divulgado) o vídeo com conteúdo extremamente violento.

Embora a escola tenha várias pessoas dotadas de poder e competências para impedir que tais episódios aconteçam.

Embora não só naquela escola, mas em todas haja episódios semelhantes diariamente.

Embora a violência seja um problema de todos nós, encaramos o ocorrido como uma manifestação isolada de um possível problema mental, familiar ou social dos envolvidos, falhando na nossa análise.

Esquecemos que a violência e a criminalidade sempre fizeram parte do nosso Ensino Público: as reguadas do professor da Primária; os roubos de canetas, livros, telemóveis e até mesmo mochilas; os abusos de bebidas alcóolicas e estupefacientes; as violações sexuais; os pagamentos para passar de classe;  etc.

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 A discussão sobre a violência nas escolas ainda é uma gota no oceano perto da dimensão do problema.

 

O Senhor Ministro tem uma batata bem quente nas mãos!

Pouco se falou ou discutiu a reabilitação destes meninos. Pouco ou nada se decidiu no que toca a medidas para garantir mais segurança aos alunos nas escolas. Ninguém se pronunciou sobre o controle de instrumentos cortantes nos recintos escolares.

E porquê? Porque vemos a violência masculina como um problema individual. É um assunto de interesse privado, que diz respeito apenas aos envolvidos e às suas famílias. Enquanto olhamos a sexualidade feminina como algo de todos. É um assunto de interesse público no qual ~devemos~ opinar.

Resultado: Obrigamos as meninas a usarem saias compridas para acabar com a gravidez na adolescência, mas expulsamos um rapaz da escola para acabar com a violência nas escolas.

O Senhor Ministro está mesmo mal!

É a cultura da violência; a cultura do estupro; a cultura do deixa-andar… A cultura de tudo menos do estudo e da dedicação. Menos da leitura e da investigação. Menos da segurança; da qualidade e do rigor.

E agora Senhor Ministro?

 

Em defesa da(s) Winnie(s)

 

Winnie Madikizela-Mandela é uma figura que divide opiniões. Há quem a ama e quem a odeie, mas uma coisa é indelével: a marca que esta mulher deixou na luta contra o Apartheid.

Como mulher jovem quase-viúva, Winnie posicionou-se sempre como alguém disposto a arriscar tudo para ver a África do Sul livre do regime do Apartheid.

Sempre foi vilanizada pelo regime, pois era uma mulher que afrontava as autoridades, nunca se tendo vergado perante as suas exigências. Aliás, o próprio Congresso Nacional Africano (ANC) também se serviu dessa imagem de vilã para afastá-la, tirando-lhe os louros da sua luta.

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Winnie é considerada Mãe da Nação na África do Sul

Winnie está longe de ser perfeita. Cometeu os seus erros e admitiu tais erros.
A abordagem de Winnie era mais radical, apelando à violência para pôr um fim definitivo ao Apartheid.

Podemos discordar desta abordagem, mas não há como negar que o uso ou a ameaça de violência é vital para o sucesso de qualquer movimento de libertação. Nenhum regime opressor caiu por se apelar à sua boa vontade e/ou bom senso.

E na África do Sul foi muito pela pressão feita por grupos radicais – muitos aliados ao ANC – e perante o prenúncio de uma guerra civil que o Apartheid terminou. E terminou sobre a condição de fazer de Mandela presidente pois sabiam que nenhum outro líder do ANC seria capaz de assumir uma posição tão pacífica.

Nomes como o de Winnie não aparecem nos livros de História como deve ser.

Na África do Sul: Albertina Sisulu. Fatima Meer. Ruth First. E tantas outras!

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Mulheres sul-africanas protestam durante o Apartheid.

No seu livro 491 Days: Prisoner Number 1363/69, Winnie relata como a sua saúde se deteriorou na cadeia, tanto a nível físico como mental. Ela chega a ficar meses com o ciclo menstrual interrompido e com ataques de pânico constantes, sem assistência médica alguma.

Passa por tortura. Fica em confinamento solitário por mais de 12 meses. Não tem contacto com as suas filhas ou com o marido. Por vezes é privada de falar com o seu advogado. Pouco ou nada come. Enfim!

Winnie foi levada ao limite. E sobreviveu para ver uma África do Sul livre.

Tal como Winnie Madikizela-Mandela, foi também “Mãe da Nação” Josina Machel .

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Josina Machel foi uma das fundadoras do Destacamento Feminino

Josina Machel foi uma combatente na luta de libertação de Moçambique.

Entre os seus 18 e 20 anos foi presa e perseguida por seguir o sonho de combater as forças Portuguesas. Percorreu cerca de 2000km para chegar à Tanzânia, onde passou por treino militar e se juntou à Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO).

Foi ela que, em finais da década de 60, fez questão de posicionar as mulheres como parte integrante da luta pela independência e não meras espectadoras.

Ao morrer aos 25 anos, antes da independência, deixou um grande vazio não só no coração de Samora Machel, seu esposo e futuro Presidente da República, mas também na FRELIMO onde liderava antes de adoecer, o Departamento de Assuntos Sociais.

Embora no dia da sua morte, 7 de Abril, se comemore o Dia da Mulher Moçambicana, pouco se fala e se discute o papel de Josina e os seus ideais.

Antes pelo contrário, pode-se até dizer que usa-se a data para reforçar a posição da Mulher como costela de Samora – Ups! – Adão.

As mulheres que optavam pela carreira política, à semelhança do que acontece hoje, eram recebidas de braços abertos para fazer o trabalho sujo, mas não para ocupar cargos de liderança.

Como presas políticas sofreram vários tipos de violência física característicos apenas de mulheres, para além da esperada tortura, maus-tratos, perseguição e outras formas de intimidação por parte dos regimes que elas ousaram desafiar.

E ainda assim, mesmo no seio dos movimentos que integraram era esperado um comportamento passivo. Esperamos dessas mulheres a manutenção da sua “feminilidade”, baseada na ideia de fragilidade e doçura. Perdão incondicional e amor eterno.

Mesmo casando homens na política, não lhes foi permitida uma saída ao esperado papel da mulher no matrimónio: submissão; maternidade; sociabilidade.

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Hoje está aí Dilma Rousseff, no Brasil sendo destituída num processo misógino e elitista, quase despótico. E ao mesmo tempo assistimos a ascensão de Hillary Clinton – de um background diferente, mais privilegiado -, de quem também se espera uma cara sorridente e maternal.

Às mulheres está interdito o acesso à raiva ou ódio. Muito menos ao rancor. Não podemos guardar mágoa nem podemos ficar zangadas. Senão somos ingratas. Somos loucas. Somos doentes.

Winnie foi privada de circular livremente. Não podia receber visitas. Não podia visitar o marido. Não tinha como trabalhar. Era cidadã de segunda classe no seu próprio país.

Foi lá e gritou. Lutou. Sofreu.

Winnie não é maluca.

 

 

Genocídios para além do Holocausto

O Holocausto é provavelmente o genocídio mais famoso da História, que decorreu durante a Segunda Guerra Mundial, em que cerca de 6 milhões de judeus foram assassinatos pelo regime Nazi. Mas e em África, não há Genocídio?

Considera-se Genocídio como o assassinato em massa de um grupo de pessoas com base na sua etnia, religião ou cultura. Num sentido mais amplo, fazem parte de um Genocídio não só o assassinato, de facto, mas também todas as acções de perseguição que violem a integridade física e/ou destruam as bases de sobrevivência desse grupo.

Embora o termo Genocídio só tenha sido institucionalizado em 1951, com a Convenção Para a Prevenção e Repressão do Crime do Genocídio pela ONU, muito antes do Holocausto (e depois) estes crimes foram praticados.

Há quem considere a Escravatura como o maior Genocídio da História da Humanidade, atendendo ao facto de mais de 10 milhões de africanos terem sido traficados para a Europa e as Américas; as suas terras foram roubadas (Colonialismo) e apagou-se a suas Histórias e Culturas, impedindo-os de manter a sua identidade.

Genocídios em África – ou contra africanos – até hoje aparecem como pequenas sombras, sem nunca serem lembrados como foram, com a devida solenidade ou sequer reconhecimento.

Quando em 1904, africanos da tribo Herero se revoltaram contra o roubo das suas terras, gado e mulheres por parte dos alemães, os africanos da tribo Nama juntaram-se. A revolta culminou na Batalha de Waterberg, de onde os africanos saíram derrotados.

Como castigo, a Alemanha massacrou entre 70,000 a 100,000 pessoas das tribos Herero e Nama, de onde hoje nós chamamos de Namíbia. Estas pessoas foram levadas para campos no deserto do Namíbe, onde a sua maioria morreu de complicações ligadas à subnutrição e condições de temperaturas extremas. Os seus cadáveres foram depois levados a Berlim para “experiências científicas”.

Apenas recentemente a Alemanha admitiu o crime, devolvendo parte desses esqueletos e prometendo um pedido de desculpas formal (mas sem reparações monetárias para a Namíbia).

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Sobreviventes do Genocídio na Namíbia

Na mesma altura houve também o Massacre de Maji Maji, no qual a Alemanha – sempre a Alemanha! – matou cerca de 75,000 africanos da região daquilo que hoje é a Tanzânia, depois de vários grupos se revoltarem contra a sua presença nos seus territórios. Neste caso, para além dos ataques físicos, os africanos foram também sujeitos a medidas repressivas como a limitação de fornecimento alimentar, através da destruição das suas plantações.

Mas não há Museus ou sequer provas físicas – para além  dos esqueletos recuperados e algum arquivo fotográfico- desses acontecimentos.

Durante o processo de descolonização do Quénia, o Reino Unido promoveu uma forte campanha contra a tribo Kikuyu, pois eram estes os maiores oponentes ao regime imperialista.

Movidos pelo desejo de controlarem os seus próprios destinos e a realidade de uma independência próxima, em 1952 os Kikuyu mobilizaram forças contra a ocupação britânica naquilo que ficou conhecida como a Revolta Mau Mau.

Em resposta, a Grã-Bretanha declarou estado de emergência e começou uma operação forte de ataque a todos aqueles que se presumia fazerem parte da equipa de “rebeldes”.

Campos de detenção foram instaurados e assim, instalou-se uma ordem na qual era legal usar a violência extrema como meio de dominação. Até 1960, data em que os campos foram encerrados, cerca de 90,000 quenianos foram executados, mutilados ou torturados pelas forças britânicas.

Só em 2003 a Grã-Bretanha concordou em pagar reparações a alguns sobreviventes. Depois de anos de dor, trauma e luto por tudo o que aconteceu, muitos deles já idosos serão lembrados apenas pelos seus depoimentos em tribunal.

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Cerca de 150 campos de detenção foram instalados no Quénia.

Mas europeus à parte, genocídios intra-africanos também ocorreram.

O mais gritante é talvez o Genocídio do Ruanda, em que em apenas 100 dias, militantes radicais da tribo Hutu, liderados pelo grupo nacionalista Parmehutu perseguiram, torturaram e assassinaram entre 500,000 a 1,000,000 de Tsutis. Sendo que, mais de 200,000 refugiaram-se em países vizinhos nesse período.

Embora divergências tribais sempre tivessem havido entre os dois grupos, foi sobretudo depois da descolonização e durante a luta pelo poder político que estas diferenças ganharam forma institucionalizada.

Ao contrário dos restantes casos, no Ruanda o genocídio foi documentado via rádio, televisão e telefone. A comunidade internacional, no entanto, fechou os olhos e viu perto de 20% da população ruandesa a ser assassinada, ao vivo e a cores.

O massacre terminou apenas quando a Frente Patriótica do Ruanda, partido com apoio dos Tsutsis conseguiu derrubar o regime do Parmehutu. Nesse período mais de 2 milhões de Hutus fugiram do país, temendo retaliação. Até hoje decorrem julgamentos relacionados ao crime.

Na República Centro-Africana decorre neste momento algo que pode muito em breve aparecer nos nossos livros de História como um dos piores genocídios em África. Não pela dimensão do país, tão pouco pelo número de mortos, mas pelas implicações que tem.

Quando o grupo militar Seleka, muçulmano, foi derrubado em 2014 pelo grupo rebelde Anti-Balaka, cristão, através de um golpe de Estado (o 5o. em 56 anos de independência), uma forte perseguição à minoria islâmica começou.

Desde então, mais de 800,000 pessoas já foram deslocadas e mais de 400,000 refugiaram-se em outros países fugindo da fúria das armas cristãs sobre o Alcorão. A crise na República Centro-Africana é das desgraças mais ignoradas da História recente.

No centro destas questões misturam-se questões religiosas, culturais, étnicas e sobretudo de recursos. É o caso do Darfur, onde mais de 500,000 pessoas já morreram. Da Somália considerada como o pior desastre humanitário do séc. XXI. Do Congo, onde em 2006 apenas, mais de 25,000 violações foram reportadas.

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Mais de 5 milhões já morreram no Congo, um recorde desde a Segunda Guerra Mundial

Mas há um factor comum a todos estes casos: a História repete-se (quase) de forma cíclica. Por não haver um registo, um reconhecimento e por tabela, responsabilização, vive-se um eterno Presente.

Rebeldes contra rebeldes contra civis contra mulheres contra homens contra crianças contra igrejas contra diamantes contra terras contra todos. Todos eles sem memória. Sem Passado.

Precisamos também de construir Museus para os nossos genocídios. Conversar com os nossos pesadelos. Dar cara às nossas desgraças. Chorar os nossos horrores. E nesses processos quem sabe, construir um Passado que sirva para pacificar o Futuro.

Novas Igrejas, Colonialismos Antigos

O papel das Igrejas como centros de submissão de povos, estabelecendo controle sobre o imaginário divino para facilitar então o domínio político e social.

Durante toda a História da Humanidade, vários sistemas de comunicação com o Divino foram estabelecidos. E de uma forma ou de outra, esses sistemas criavam sempre uma ordem que devia ser respeitada, sobre a ameaça de consequências catastróficas para os desviantes.

As religiões sempre estiveram ligadas ao poder. Foi com essa desculpa de evangelizar os povos de todos o mundo que as nações ocidentais invadiram continentes e colonizaram nações.

Para os países colonizados, essas feridas até hoje se fazem sentir.

A religião sempre foi utilizada para entrar na mente de uma pessoa, pois para escravizá-la ou colonizá-la é preciso primeiro que ela o permita. E isso é conseguido através do ensino de um sentido de inferioridade.

Seria necessário, para durante séculos dominar um povo inteiro, eliminar qualquer fé que esse povo teria nele próprio e nos seus Deuses. Os Deuses que os protegiam nas grandes batalhas, que os alertavam para os perigos do Futuro; os Deuses para quem esses povos eram importantes e especiais foram então eliminados.

Através da demonização das religiões de matriz africana e da perseguição dos seus praticantes, bem como o baptizado forçado de africanos escravizados ou de qualquer africano que quisesse ter mais oportunidades, aos poucos os povos colonizados esqueceram-se dos seus Deuses.

Passaram adorar um Deus branco. Anjos loiros e de olhos azuis. Profetas de cabelo liso e longo. Foi assim que os colonizadores romperam por completo a ligação que os povos africanos tinham com o Divino e conseguiram, por muito tempo, saquear as suas terras e riquezas.

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Missionários no Séc. XIV convertendo crianças para o Cristianismo.

Mais recentemente, com a febre das igrejas neopentecostais, uma nova Cruzada começou a ser feita.

Hoje em dia os soldados de Cristo já não andam a cavalo nem chegam de navio. Aparecem com os mais recentes modelos de automóveis e andam bem vestidos. Aparentam uma vida de sucesso, com uma família perfeita e um comportamento exemplar.

Segundo a doutrina neopentecostal, a prosperidade na vida de um crente é proporcional à sua entrega a Deus. Assim sendo, a marca da plenitude da fé é muita saúde e aptidão física, estabilidade emocional e prosperidade material.

Não é de admirar que estas Igrejas, a destacar a IURD, têm nos seus crentes pessoas capazes de entregar tudo o que conseguem com o suor do seu trabalho em troca de um pedaço de terra no Céu.

Em África, e mais precisamente em Moçambique, esta linha de pensamento não está muito longe das religiões tradicionais baseadas na ligação histórica aos antepassados. De acordo com a crença tradicional, doenças e azares resultam de maldições e pragas lançadas pelos antepassados insatisfeitos.

Em muitos países infestados por guerras; doenças; fomes e catástrofes naturais, a sociedade como um todo vê-se perdida. As pessoas são deslocadas e abandonam os seus locais sagrados; perdem-se das suas famílias e da sua história e nesses processos, desligam-se também das suas divindades, vivendo com pouca paz espiritual.

Os traumas, dramas e depressões dessas desgraças são presenças constantes no nosso quotidiano, criando um ambiente de desespero e incredulidade generalizados.

Quando cruzamos estes factores, torna-se evidente o sucesso das Igrejas Neopentecostais em Moçambique e em outros países cujas religiões de base se guiam por esse pensamento.

A tudo isso, acrescentam-se ainda as dificuldades económicas e financeiras da vida contemporânea: não tenho dinheiro para cobrir as minhas necessidades básicas; vivo numa casa precária; tenho um emprego que não me satisfaz; os meus filhos não têm o que vestir; etc. Essa crise material, quando se depara com a crise espiritual cria condições para o sucesso dessas Igrejas.

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Fonte: Facebook Igreja Universal do Reino de Deus

Vejamos que, por exemplo, nas religiões de matriz africana até os locais sagrados são simples e rudimentares, muitas vezes debaixo de árvores e no meio da natureza. Os líderes religiosos usam roupas feitas de materiais baratos e falam línguas ditas “primitivas”, comunicando-se com o Divino através de conchas, ossos ou mesmo a água.

Enquanto essas Igrejas têm templos grandes e robustos, onde se falam línguas célebres no microfone. Os líderes usam fatos e roupas bem vistosas. Andam de carro e vivem em verdadeiros palacetes. Até os seus rituais são mais compostos e sofisticados.

Então eu pobre; desesperada; doente; com fome; com sede; sem tecto; onde vou pedir riqueza?

Por muitos anos foi-nos negada a nossa forma de ver, sentir e falar com Deus. E nós crescemos sem uma imagem sagrada de nós mesmos, sem um sentido positivo das nossas religiões e completamente desligados das nossas raízes.

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Celebrações do Dia de VooDoo no Benin

Curiosamente, alguns países ocidentais estão a resgatar as suas ligações espirituais que ocorrem fora dos padrões da Igreja. Aquilo que chamavam de animismo começaram também a incluir nos seus cultos.

Mas nós negamos essa presença, apesar de nos usarmos de alguns rituais quando nos convém, pois continua no nosso inconsciente a sua veracidade.

A nossa História colectiva foi apagada e com ela a nossa Fé. Essa vulnerabilidade torna-nos superfícies altamente permeáveis, capazes de facilmente adoptar qualquer doutrina de pensamento sem questionar a sua validade para o nosso contexto.

No início chegaram os Árabes, passámos a chamar-nos Zeinab, Mohamed, Catija, como o Profeta e a sua família. Depois invadiram-nos os Portugueses e aos nossos filhos demos nomes como Francisco, Miguel, Maria, como se chamam os seus santos e agora vêm os Brasileiros, e já surgiram os Enzo, Caíque, Nicole… Quando é que os nossos filhos terão os nossos nomes? Nomes da nossa História? Dos heróis? Dos nossos antepassados?

 

Poliamor africano em tempos de crise

Em Moçambique a poligamia não está legalizada e nem constitui crime. É algo mais ou menos aceite, com ou sem amor.

Quase sempre que nos referimos à poligamia para definir na verdade “poliginia”, que se caracteriza por uma relação entre um homem e várias esposas. E quase nunca se fala em “poliandria”, uma relação de uma mulher e vários esposos. Este debate foi levantado aquando da discussão da (nova) Lei da Família em 2004, na Assembleia da República.

Aquilo que é mais frequente na nossa sociedade – como em qualquer sociedade patriarcal é a poliginia. Encaramos esta realidade como algo normal, pois crescemos vendo tais situações nas nossas casas, nas casas dos nossos vizinhos, dos nossos tios, primos, etc.

Num país como Moçambique famoso pela variedade de religiões, povos e línguas é de admirar que se fale na poligamia apenas nestes termos. É quase impensável falar de uma relação entre uma mulher e vários homens como algo legítimo. Por que será? Cheira-me a machismo…

Muitos vão invocar factores ‘culturais’, mas a verdade é que a cultura não é algo estático e imutável. A cultura acompanha o tempo e o espaço. Motivo pelo qual uma família moçambicana a viver na África do Sul adopta alguns hábitos da cultura sulafricana, e uma família moçambicana há 30 anos atrás não vivia como uma família moçambicana vive hoje. Aliás, o próprio conceito de família já mudou!

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Ngungunhana, o último monarca do Reino de Gaza, com 7 das suas centenas de mulheres em Manjacaze. Séc. XIX
Falemos então de factos:

É facto que existe uma valorização dos filhos em Moçambique, tanto é que a taxa de fertilidade é de 5,27 crianças por mulher. Numa relação poligâmica, um homem com várias mulheres consegue gerar muitos mais filhos, por isso é mais respeitado e considera-se com mais “riqueza”.

Outro facto é que em muitas relações poligâmicas, especialmente as que ocorrem à margem da lei, nas comunidades rurais, as próprias esposas concordam e participam activamente na manutenção desta ordem.

Mesmo assumindo a legitimidade e respeito pela agência pessoal destas mulheres, deve-se olhar para o sistema onde esta agência pessoal está inserida. Cada indivíduo faz as suas escolhas dentro de uma rede de opressões e privilégios que delimitam os seus sonhos.

Sabemos que aquela imagem das esposas-irmãs que há muito nos tentam vender não corresponde à vasta maioria das famílias poligâmicas. Aliás, muitas vezes as próprias práticas sócio-culturais criam condições que fomentam o ódio e ressentimento entre as mulheres.

Mesmo entre os filhos, é só perguntar a qualquer um que seja filho de uma segunda ou terceira esposa, existem distinções de tratamento, condições e oportunidades. Este clima acaba impedindo que haja uma relação saudável e de harmonia entre os irmãos.

Poucas são as mulheres que aceitam deliberadamente esse estilo de vida. Para as primeiras esposas, a poligamia é uma forma de manter relativo prestígio e ganhar algum poder sobre as decisões tomadas pelo marido ao arranjar a segunda esposa.

Já para as segundas, o estilo de vida oferece uma certa segurança para si e para os seus filhos, saindo do anonimato de uma relação em que é apenas a “amante”.

Há factores económicos e de poder que se sobrepõem à ideia de se considerar, de facto, amar.

Um elo é comum a todas: a pré-aceitação da fragilidade do sexo masculino face à ameaça de uma outra mulher por perto. A aceitação da irracionalidade do homem e da traição como uma fatalidade à qual não se pode fugir, ficando-se apenas pela salvaguarda da relação “legítima”.

Por isso, embora eu não questione a escolha a nível individual, eu sou obrigada a observar, num todo, como um determinado grupo de mulheres fez essa escolha. O que caracteriza esse grupo? Que opções estavam disponíveis no momento da escolha? De que ferramentas esse grupo dispõe para contestar a ordem em vigor?

E sobretudo: Por que é que essas mulheres que se dizem polígamas não praticam a poliandria, apenas a poliginia?

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Não podemos ignorar a vulnerabilidade que estas relações trazem para as mulheres que nelas participam.

Se por um lado, a poligamia surge como uma forma de controlar os danos causados pelo adultério, por outro, traz consigo todas as certezas da superioridade do homem como prémio máximo para qualquer mulher: primeira, segunda ou décima.

Para além dos óbvios perigos de saúde, num país como Moçambique com uma das maiores taxas de HIV do mundo, estas mulheres estão completamente desprovidas de protecção legal.

Ao abrigo da Lei da Família, apenas a esposa que tiver o matrimónio registado no Cartório, ou conseguir provar a união de facto, que geralmente é a primeira, está protegida. Há um vazio no que toca a relações poligâmicas relativamente ao direito de sucessão, herança e transmissão de bens para as restantes viúvas.

Os filhos poderão ser dados como herdeiros, mas isso não os salvará dos olhares de desprezo e comentários desagradáveis nas suas famílias e comunidades.

É fácil falar em poligamia quando isso significa acesso livre ao corpo de várias mulheres. Quando é “poli” a disponibilidade sexual e o aparente respeito que lhe é conferido. E amor, há?

 

 

Para mais informações/ opiniões sobre o assunto:

Tendências e Factores Associados à Poligamia em Moçambique

Apanágio em Caso de União Polígama (art. 426º LF)

O que diria Lumumba sobre o EURO?

Patrice Lumumba foi o primeiro político democraticamente eleito na República Democrática do Congo ao tornar-se Primeiro-Ministro. Apenas 81 dias depois de fazer História foi assassinado em circunstâncias duvidosas com o envolvimento da Bélgica.

Lumumba foi um dos fundadores do Movimento Nacional Congolês (MNC). Acreditava veemente na independência total e inalienável do Congo e na capacidade do povo congolês de gerir as suas infraestruturas, pessoas e sobretudo recursos.

Ao chegar ao poder, em 1960, Lumumba fez questão de se posicionar como um Pan-Africanista interessado em apoiar a luta pela auto-determinação de outras Nações Africanas. A sua inabalável determinação e carácter incorruptível tornaram-no num alvo a abater pelas forças ocidentais, que viram os seus interesses ameaçados.

Poucos meses depois das eleições, conflitos internos dividiram o Congo em três partes, governadas por líderes distintos (com aliados distintos) e rivais. A situação era insustentável e Patrice Lumumba pediu a intervenção da Organização das Nações Unidas, que nada fez senão olhar de longe o declínio de um Congo próspero, como prova da incompetência dos Africanos de se auto-governarem.

A 17 de Janeiro de 1961, aos 35 anos, depois de ter sido preso e sujeito a tortura, Lumumba foi morto a tiros com o conhecimento dos EUA e apoio da Bélgica. O seu corpo sem vida foi ainda esquartejado e queimado com ácido, de forma a eliminar quaisquer provas do crime.

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Hands tied behind his back, deposed Congo ex-premier Patrice Lumumba (center) leaves a plane at Leopoldville airport, Dec. 2, 1960, under guard of Congolese soldiers loyal to Col. Joseph Mobutu. (AP-Photo/File)

A sua trágica morte é considerada por muitos historiadores como o mais importante assassinato do séc. XX, tendo em conta a importância que teria para o futuro do Congo e para descolonização/ democratização de África nos anos posteriores, bem como para o desenrolar da Guerra Fria e desenvolvimento de armas nucleares.

Hoje, em 2016, assistimos a mais uma edição do Euro: a maior festa de futebol da Europa. Este ano em França como foi também em 1960, na primeira edição.

O que é que a História do revolucionário congolês tem a ver com o maior espectáculo de futebol da Europa?

Curiosamente, o Euro tem uma longa história de protestos de motivação política.

Na primeira edição do campeonato, a Inglaterra, a Itália, a Alemanha Ocidental e os Países Baixos retiraram-se da competição por se oporem à participação da União Soviética. A Espanha abandonou nos quartos de final, também por não acreditar numa festa Pan-Europeia com a URSS, que, by the way, levou a taça para casa.

Na edição seguinte, a Grécia abandonou ao ter de jogar contra a Albânia, com quem ainda estava em guerra. E mais uma vez, a Alemanha Ocidental recusou-se a participar.

Já em 1992 a Jugoslávia foi impedida de jogar pela própria UEFA por estar a passar por uma guerra civil.

Não é estranho todas estas Nações se terem calado face às atrocidades que aconteciam em África?

Ironicamente, e como era de se esperar, à medida que as ex-colónias atravessaram momentos de tensão e conflito, a Europa recebia cada vez mais emigrantes africanos.

Mesmo depois de pegarem em armas para se livrarem do domínio belga no seu território, os Congoleses viram-se obrigados a pedir socorro à Bélgica depois da morte de Lumumba.

Com o tempo, uma nova classe de Africanos emergiu, mais consciente e preparada.  Talvez até talentosa, tal como sonhava Lumumba, mas longe de África. Na Europa.

E hoje vemos no relvado do Euro a herança do (des)colonialismo em África.

A selecção da  Bélgica, destaca-se por ser das que mais descendentes africanos tem na sua equipa: um total de 6, sendo 5 do Congo e 1 do Senegal (colónia francesa).

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Irmãos Jordan e Romelu Lukaku de descendência congolesa a representar a selecção da Bélgica.

E por falar em França, a sua selecção tem 9 descendentes de imigrantes africanos. Na sua maioria de países francófonos, como Senegal e Mali.

Em Portugal também há traços desse fracasso nos processo de democratização das suas ex-colónias. E foi esse fracasso que ajudou na manutenção da dependência entre colono e colonizado.

A manutenção de uma relação doentia baseada num sentido de inferioridade reforçado vezes sem conta para sustentar o status quo. Nas palavras de Lumumba: “Nós sabemos os objectivos do Ocidente. Ontem eles dividiram-nos baseando-se na tribo, no clã e na vila. Hoje, com a África a libertar-se, eles querem dividir-nos com base em Estados (…) para perpetuar o seu domínio.”

Por isso um Congolês nunca amará mais Portugal que a Bélgica. Um Moçambicano nunca desejará ser mais do Reino Unido que de Portugal. E um Ganês nunca vai admirar mais a Bélgica que o Reino Unido. E por aí adiante.

Somos reféns do nosso opressor e da nossa opressão.