Ou “A história de como descobrir a bruxa que há dentro de nós”.
O filme “Eu não sou uma bruxa“, da realizadora zambiana Rungano Nyoni, traz-nos a história de uma menina que dá por si assumindo-se como bruxa num campo de bruxas.
Shula é apenas uma tímida criança que, com provas circunstanciais é acusada de bruxaria pelos habitantes da vila por onde vagueia, sozinha. As autoridades locais são chamadas a intervir e Shula é rapidamente enviada para um campo de bruxas, onde é acolhida por mulheres bem mais velhas, que a recebem de braços abertos. No fim da festa de boas-vindas ela é confrontada com um dilema: ou aceita ser bruxa e ficar no campo ou rejeita a bruxaria e transforma-se numa cabra.
Sem ferramentas para provar a sua inocência nem para os outros e nem para si, a pequena Shula aceita.
No campo, as mulheres são obrigadas a cultivar a terra e a posar para turistas que as visitam. Shula recebe delas o amor maternal que não tem em mais nenhum local.
Por algum tempo as coisas parecem correr bem.

Num mundo em que o Cristianismo se diz dono da verdade, as formas de expressão de espiritualidade tradicionalmente africanas são demonizadas e é neste contexto em que se cria estigma e rejeição em relação a pessoas que são vistas como bruxas.
A disputa pela fé é incessante.
Numa caricata cena, Shula é colocada como juíza numa espécie de tribunal local em que um velho homem procura o ladrão do seu dinheiro. Todos os homens jovens são tidos como suspeitos e dizem-se inocentes. Shula tem de identificar o ladrão, então pede ao oficial do Governo que a acompanha que ligue a uma das mulheres no campo.
Esta mulher, uma das avós, diz-lhe para escolher o homem que for mais escuro e mais nervoso. E, curiosamente, confirma-se que esse é de facto o ladrão.
Sorte? Coincidência? Bruxaria?
Ninguém sabe.
Os poderes de Shula são requisitados por todo o lado e ela é vista como a galinha de ovos de ouro, já que a sua bruxaria é tão poderosa.

Mas antes de tudo, o que é afinal ser bruxa?
Ela será bruxa porque anda sempre sozinha? Será bruxa por não se fazer ouvir?
Que caminhos terão levado aquelas velhas para o campo de bruxas? Por que são as bruxas tão perigosas?
Shula vai descobrir tudo isto à medida que o mundo se vai revelando a si. Com a sua infantil e limitada visão do que acontece ao seu redor, as alegrias e tristezas de carregar consigo essa denominação vão mudar tudo para si.
No filme há constantes dicotomias em disputa.
A mais óbvia é a relação que a comunidade em geral tem com a bruxaria. Mesmo os mais cépticos vêem-se incomodados com a possibilidade de haver de facto esse poder.
Se por um lado não querem as bruxas por perto, por outro os habitantes recorrem às bruxas para resolver casos de roubos e outros mistérios.
Como não acreditar em bruxas num meio carregado de superstições?
E mais do que isso, como curar as bruxas do seu fatídico destino sem cometer bruxarias, lançando maldições contra elas?
Outra dicotomia é o Feminino e o Masculino.
A percepção é sempre como a mulher é a fonte de todo o mal. Ela é a causadora dos problemas da sociedade, e o homem, pelo contrário é visto como o dono incontestável da verdade.
A misoginia está em quase todo o lado, mas na sua manifestação mais gritante, vemos os bruxos a circularem livremente, inclusivamente providos de algum prestígio enquanto as mulheres bruxas são obrigadas a viver isoladas da sociedade. Um exemplo claro é o bruxo que aparece para comprovar o facto de Shula ser de facto uma bruxa.

Entre o real e o fantástico, Rungano Nyoni descreve-nos tudo o que Shula sente na sua mudez sempre presente.
Uma criança bruxa que não pode circular livremente no mundo, mas que ao mesmo tempo é chamada para resolver problemas como a seca na sua região.
Uma criança bruxa que não vai à escola, mas que ouve os professores de longe e sonha com as brincadeiras ao recreio.
Uma criança obrigada a escolher entre ser uma bruxa ou morrer como uma cabra.