Para entender o Feminismo em África

Há um distanciamento ideológico dos africanos face ao Feminismo devido a uma falsa ideia de tradição e um desconhecimento da nossa História pré-colonial.

Sempre fico um pouco triste quando converso com pessoas e percebo o seu desconforto em falar de feminismo ou assumirem-se feministas, porque nós já tínhamos na nossa vivência formas de estar fora do padrão patriarcal.

A arrogância das feministas ocidentais ao debaterem África, assumindo as suas realidades como “certas” ou como “modelos” não dá espaço para o estudo dos nossos feminismos, da nossa filosofia africana tradicional.

As feministas ocidentais sempre falaram em nome de todas as mulheres, como se conhecessem as experiências de todas as mulheres, ou pior, como se as suas experiências fossem universais.

Na verdade as relações de género diferem bastante, daí a necessidade de interseccionalidade. Não existe uma única experiência de mulher, mas sim várias.

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Temos de descolonizar o feminismo.
Embora de forma generalizada possamos todas assumir que vivemos numa sociedade que privilegia o masculino, há que reconhecer as nossas diferenças. Uma das grandes diferenças é a exploração da sexualidade como meio para alcançar o domínio e o poder.

Por exemplo, nas mulheres Makhua os ritos de iniciação e técnicas corporais como o alongamento dos lábios vaginais e o pompoarismo, têm como fins eróticos e estéticos que visavam a maximização do prazer da mulher. Através dos ritos de iniciação era possível passar este papel da sedução e do desejo como ferramentas para fazer política, tanto a nível intra-género, em que as mulheres mais velhas mostravam a sua autoridade pelas mais novas e também a nível inter-género, ao usar a arte do sexo para dominar o masculino.

No feminismo ocidental, pelo papel da Igreja e os conceitos puritanos de moral e de finalidade do sexo, houve uma demonização do sexo e por isso os poderes sexuais são um ponto até hoje de muito debate e polémica. A sexualidade da mulher deve ser reprimida para ser aceite, assim, uma mulher que reconhece, assume e faz uso do seu poder sexual é vista como devassa e é símbolo da degradação moral da sociedade.

Neste caso, o feminismo ocidental ofusca o sexo e o erótico numa nuvem de culpa, medo, vergonha e desprezo que impede uma visão saudável do sexo como ferramenta para fazer política. Daí o falso moralismo e cinismo em torno do trabalho sexual (pornografia; prostituição; etc), visto que é um tema tabu cujas opiniões continuam polarizadas no que diz respeito ao reconhecimento da sua existência e da sua legitimidade.

Outro elemento diferenciador é a existência de sociedades matrilineares. No Norte de Moçambique, especialmente no período pré-colonial, era comum a linhagem/ descendência ser contada pelo lado materno. Eram os homens que abandonavam as suas zonas de origem e passavam a viver com a família da esposa após o matrimónio. Os filhos do casal também levavam o apelido do tio materno e a mulher assumia a liderança na sua comunidade.

Adicionalmente, nas culturas matrinineares, nomeadamente Yao e Makhua, eram (e ainda são) praticados os ritos de iniciação tanto para os meninos como para as meninas, como ritual de passagem da infância à fase adulta. E nestes ritos era onde os conceitos de masculinidade e feminilidade eram passados.

Para as meninas, era um espaço de autonomia onde podiam partilhar as suas dúvidas e inquietações e ouvir das mulheres mais velhas conselhos e informações sobre o seu corpo, gestão do lar, cuidados de saúde; educação dos filhos, etc.

Esses momentos de partilha e sororidade entre mulheres, em privado, longe dos olhares dos homens, eram inexistentes no contexto ocidental. Os ritos de iniciação permitiam incutir na menina um sentido forte de pertença e poder, desde cedo, domando-lhe de ferramentas para liderar a sua família e a sua aldeia.

Havia portanto um poder feminino. Nós tínhamos sociedades lideradas por mulheres em que cada um – homem e mulher – tinha os papéis bem definidos, sem necessariamente haver submissão por parte da mulher (ou sequer do homem).

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Mulheres macuas dançando Tufo. Fonte: Daniel Camacho
É importante enquadrar os paradigmas africanos dentro de um Feminismo que englobe questões específicas das realidades locais. Fará sentido um debate em torno da liberdade da mulher realizar trabalho remunerado, por exemplo? Poderemos encarar isso uma parte central do feminismo em África?

A mulher negra sempre pertenceu à força de trabalho. Aliás, é esta a grande tese de Sojourner Truth no seu discurso “E não sou uma mulher?” (Ain’t I a woman, originalmente), em 1851 na Convenção dos Direitos das Mulheres nos EUA, quando ainda existia a escravatura e as mulheres brancas lutavam para serem vistas como seres humanos capazes de trabalhar e assumir responsabilidades.

Em África, e mais especificamente em Moçambique, o trabalho no campo sempre foi feminino por excelência. Encarava-se a mulher como criadora da vida, e por isso, reprodutora por natureza. Nesse sentido, o seu domínio se estendia também à fertilidade da terra. Por isso a sua participação na produção agrícola era central, não só por uma questão económica, mas também pelo sentido espiritual.

Com a instauração do colonialismo e de um sistema económico monetarizado houve uma desorganização dos modelos tradicionais de autoridade, de género e de organização política. É importante lembrar também que a abertura do mercado de trabalho transnacional nas minas da África do Sul levou à saída de muitos homens jovens, deixando as mulheres sozinhas nas aldeias onde tiveram de assumir papéis tradicionalmente masculinos – mesmo nas sociedades patrilineares.

Os processos de descolonização, por sua vez, pela influência das teorias ocidentais também não permitiram o resgate dos valores tradicionais ou sequer o seu entendimento, pelo contrário, em muitos casos, como em Moçambique o sistema socialista gritou bem alto “abaixo o lobolo! abaixo ao feudalismo! abaixo aos ritos de iniciação!”, esquecendo o papel estruturante destes elementos como a base de identidades moçambicanas.

Numa tentativa de unificação e consolidação de uma Nação, paradoxalmente, ignoraram-se estilos de vida tradicionalmente moçambicanos. Para os arquitectos da nação, o poder masculino representava a modernidade e o progresso, enquanto formas não ocidentais e e/ou não patrilineares representavam o atraso.

Deste modo, em benefício do projecto nacional estabeleceu-se uma ordem patriarcal na qual o homem seria inquestionavelmente o chefe da família, provedor e autoridade máxima, apagando por completo formas alternativas de estrutura social, em prejuízo das mulheres.

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Rainha Nzinga é considerada líder da resistência africana. Fonte: Geledes
Podemos concluir que os processos de modernização podem provocar tanta ou maior exclusão que os padrões tradicionais. Encaram-se as estruturas sociais pré-modernas como fonte de todo atraso e opressão e a modernização como intrinsecamente libertadora, o que não é verdade. Repito: a modernização, ou, por outras palavras, a “ocidentalização” não é necessariamente libertadora.

As dissemetrias de género e as próprias categorias de género e de sexualidade são fruto dessa ocidentalização e em muitos casos não se adequam às tradições africanas, como no caso da cultura Igbo (Nigéria).

 

Já existiam feministas aqui, antes de chamarmos o Feminismo por esse nome. Perguntem só à Rainha Nzinga do reino de Ndongo; à Huda Shaarawi do Egipto; à Funmilayo Anikulapo-Kuti da Nigéria; e a tantas, tantas outras.

E nós ainda estamos aqui.

Deixem a Kizomba em paz!

Já chega de deixarmos a nossa cultura ser apropriada, extraviada e abusada por estrangeiros.

Nos anos recentes tem havido um boom dentro da “Lusofonia” no que toca à Kizomba. Parece que de repente todos acordaram para o ritmo angolano: de Angola a Portugal, Espanha, África do Sul e até mesmo Brasil. O mundo despertou ao som de África.

Até já se diz que Lisboa é a capital da Kizomba. Sim, isso mesmo! Um ritmo angolano, cantado e ensinado por africanos tem a sua capital na Europa. Parece piada, mas há pessoas que acreditam que isso seja verdade.

A kizomba é uma dança de Angola que surgiu nos anos 80, no entanto se popularizou nos últimos cinco anos com grandes nomes tais como Anselmo Ralph (Angola) e Nelson Freitas (Cabo Verde).

As comunidades imigrantes de origem africana em Portugal (e não só) sempre tiveram os seus espaços próprios para dançar as suas músicas e viver a sua cultura. E em Lisboa esses espaços eram o Mussulo e o Sarabanda, entre outros, que essencialmente eram frequentados por africanos de classe média-baixa e alguns brancos atrevidos que lá se iam “desvalorizar”.

Essa vida à margem da sociedade é típica das sociedades imigrantes. Para os lisboetas, esses locais sempre foram antros de perdição já que no seu imaginário os africanos são todos promíscuos, festeiros e dados a grandes bebedeiras, nada aptos para trabalhar e que só se querem divertir. Porquê então o súbito interesse pela kizomba?

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As “noites africanas” estão na moda.

Há muitos elementos mainstream hoje que sempre fizeram parte das culturas africanas e sempre foram considerados de valor e belos, mas que ganharam novos rumos quando outros povos começaram a valorizar.

Os mesmos símbolos e hábitos considerados primitivos ou selvagens, como tatuagens, piercings, rastas, etc, aos poucos criaram espaço na cultura pop. Um cidadão branco de rastas é hippie, alternativo, interessante e tal enquanto as mesmas rastas num cidadão negro causam desconfiança, são marcas de desleixo e pouca higiene.

A verdade é que existe um viés quando um determinado elemento é usado num contexto “tribal” e quando é usado no meio “urbano”. Quando é visto com um plano de fundo africano e quando é visto com um plano de fundo europeu. Parece que tudo precisa de passar por aprovação ocidental para ser considerado bonito e infelizmente nesse movimento de ascensão perde o seu significado.

A este processo de adopção de elementos de uma determinada cultura por um grupo diferente chama-se apropriação cultural. A apropriação cultural só pode acontecer quando um grupo privilegiado rouba elementos tais como arte; estética; língua; religião; música; etc, de  uma cultura de um grupo oprimido.

Quando removemos os elementos culturais do seu contexto original, para além da perda de importância e legado que carregam, muitas vezes reforçamos estereótipos.

No caso da Kizomba a sua valorização deveu-se sobretudo ao facto de haver uma classe africana média-alta que aos poucos conquistou espaços centrais na Europa e ganhou mais poder de compra, criando condições para artistas do seu agrado poderem encher casas de espectáculos além fronteiras.

Assim da marginalidade para a centralidade, a Kizomba manteve o seu ritmo original e compassado, mas ficou hipersexualizada e muito ligada à vida luxuosa, de grandes farras, corpos sensuais e altos carros, correspondendo à expectativa portuguesa daquilo que são as aspirações dos africanos.

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Está na moda ser preto, desde que você não seja preto

À semelhança da Kizomba, a capulana, tecido africano típico de Moçambique também sofreu um ataque de apropriação cultural. Este processo também aconteceu recentemente com a nova vaga de emigração portuguesa, que se deslumbrou com as cores e o brilho da capulana.

O pano que usávamos para amarrar o bebé às costas, para amarrar à nossa cintura, agora ganhou designs europeus, tanto é que hoje ainda é considerado algo negativo, ultrapassado e até certo ponto ‘primitivo’ usar a capulana na sua forma mais tradicional, mas por outro lado, é elegante e chique fazer um vestido de noiva misturando o cetim e a renda branca com a capulana.

A apropriação cultural descontextualiza o elemento em si, distanciando-o das suas origens e da sua simbologia/ valor. De tal forma que pode-se de facto acreditar que Lisboa é a capital da Kizomba, embora a Kizomba seja de Angola, mas porque olhamos para a Kizomba como algo isolado, sem raízes nem ramificações, posicionamos onde melhor nos convém.

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Imigrantes protestam em Lisboa contra regras do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras

Para mais, nos aproveitamos de uma certa cultura sem reconhecer as ruínas que ficam por reconstruir. Ou seja, ouvimos a música; dançamos ao seu ritmo; usamos as suas roupas; mas não nos unimos para apoiar as suas dores e as suas causas.

Quantos lisboetas interagem e se identificam com a Kizomba? Onde estão os portugueses a lutar por uma maior e melhor integração dos imigrantes africanos? O que têm feito essas centenas (talvez até milhares) de instrutores de kizomba europeus pelos dançarinos amadores que criam novos passos e tendências?

Deles ouvimos apenas o silêncio que confirma a sua conivência e satisfação com o status quo. Pode-se falar então em globalização? Podemos encarar estes processos como trocas de experiências, conhecimentos e percepções?

Talvez… Quando houver um equilíbrio na distribuição de poder e quando pudermos reconhecer a humanidade de todos nós sem excepções e não considerarmos umas culturas melhores, mais desenvolvidas e mais apuradas que outras, aí sim, será uma troca sem perdas nem prejuízos.

(Des)Virginando Margarida

No filme de Licínio de Azevedo, Virgem Margarida, somos confrontados com a dura realidade do processo revolucionário pós-independência em Moçambique.

Em Junho de 1975, com toda a euforia e esperança do nascimento de uma nova nação dotada de auto-determinação, ideias próprias e controle total sobre o seu domínio Margarida, uma jovem camponesa vai à cidade comprar enxoval e vê-se enrolada numa teia de coincidências infelizes.

Por falta de documentos é levada pela polícia durante uma rusga que resulta também no aprisionamento de várias mulheres da noite, entre prostitutas e dançarinas.

Embora algumas destas aceitem a sua condição de “mulheres da vida”, que trocam sexo por dinheiro, muitas resistem essa denominação, entre elas Margarida, que nega ter estado alguma vez com um homem.

Baseado em factos reais, o filme retrata os contrastes vividos na época.

Para muitos militares, eles mesmos também camponeses, as mulheres da cidade com as suas roupas vistosas eram consideradas prostitutas, embora nem sempre o fossem. Enganos eram comuns.

O ideal de mulher passava por servitude, modéstia e submissão à família. Assim, estas mulheres que saíam para trabalhar à noite, vestidas com roupas brilhantes e com maquilhagem exuberante, eram encaradas como uma ameaça ao futuro virtuoso do país.

No novo Moçambique, as mulheres deviam servir a nação. Eram elas a base para o desenvolvimento da família e para a prosperidade da força de trabalho, já que tinham o papel de fazer e criar os filhos.

Aquelas que fugiam a esse ideal eram levadas forçosamente a campos de reeducação, de onde era suposto sairem mulheres novas, dotadas das qualidades e ambições desejadas numa Mulher Africana no pós-independência para um regime socialista.

Em 1975, num país que precisava de consolidar a sua identidade, era essencial a transformação de mentalidades e o abandono da retórica colonial. Para tal era preciso criar esta ideia do “homem novo” e materializá-la.

Encarava-se a exploração sexual da mulher moçambicana como resultado do colono, que olhava para a mulher negra apenas para satisfazer os seus apetites, sem de facto dignificá-la.

No entanto, essa exploração sente-se em todas as esferas da vida da mulher, tanto no pré e no pós-independência, pois mesmo no seio dos militares havia homens com a mesma mentalidade machista que os colonos.

As intenções revolucionárias, por mais puras e ingénuas que fossem, eram pouco dado o tamanho da missão a que se destinavam cumprir. Como é que se levam centenas, quiçá até milhares, de mulheres urbanas para o campo? Como é que se transformam essas mulheres em novas pessoas? Será possível?

É importante contextualizar os campos de reeducação no contexto revolucionário, e o contexto revolucionário por sua vez no universo de emoções, traumas e idealismos de um povo que foi à guerra para ser livre.

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O filme “A Virgem Margarida” foi premiado internacionalmente.

Por outro lado, no filme o realizador explora também a necessidade da união entre as mulheres para a sua libertação.

A sororidade e o companheirismo entre as reeducandas, movidas pela experiência comum de opressão acaba por vencer as diferenças que as separam.

De uma forma quase literal, o autor mostra que a libertação da mulher moçambicana só será possível quando os grupos abandonarem a sua fidelidade às outras estruturas em que estão inseridas.

Em Virgem Margarida, para as combatentes é necessário abandonarem a estrutura militar e denunciar o abuso de poder e machismo dos seus colegas. Para as reeducandas, é preciso deixarem as alianças tribais e de classe de lado.

É somente neste campo de negociação que se pode falar, depois de uma Mulher Nova, pois essa mulher será livre de escolher o seu próprio destino.

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Segundo Licínio de Azevedo o filme não tem qualquer intenção política. Pelo contrário, interessa aqui o lado humano, o drama da vivência diária nos campos.

As condições reais dos campos e a forma como aos comandantes geriam os recursos de forma despótica, aliadas ao escasso acesso a alternativas, criavam um ambiente em que as ideias nem sempre chegavam.

A visão idealista da época arrastou não só mulheres, mas também homens para os campos de reeducação, destruindo e separando famílias para sempre. Entre prostitutas;  improdutivos; traidores; dançarinas… E virgens, também artistas, certamente outros mal entendidos aí na mistura.

As atrocidades, violência e consequências dos processos revolucionários são temas recorrentes nos filmes de Licínio de Azevedo.

Muito mais que saber o Passado, cabe-nos agora questionar o Presente. Quem seriam as Margaridas de hoje? O que temos feito por elas? E pelas outras? Que correntes nos impedem de alcançar a tal almejada libertação?

Cidadão do mundo, imigrante ou expatriado?

Desde o início da Humanidade que temos uma necessidade de nos movermos. Seja para caçar; para pescar; para fugir de secas ou de cheias, estamos sempre em busca de contextos melhores para o nosso desenvolvimento e para o desenvolvimento das gerações vindouras.

Até hoje existem sociedades nómadas, intimamente ligadas às condições ambientais e actividades pastorais, um pouco por toda a parte do globo.

No que toca ao movimento humano entre fronteiras, há todo um léxico que distingue quem vai de quem vem; de onde vem e para onde vai; porquê e como. Turista e Exilado. Migrante e Refugiado. Imigrante e Expatriado.

Estes dois tipos de viajantes – imigrante e expatriado -, especificamente, sempre me fizeram alguma confusão. Na verdade, nunca percebi muito bem a diferença, porque usam-se as designações de forma mais ou menos arbitrária para distinguir duas coisas na verdade iguais.

Mas essa distinção serve para criar uma hierarquia que legitima uns movimentos e repudia outros. Neste caso, é mau ser imigrante, mas é bom ser expatriado.

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O que distingue um imigrante de um expatriado?

Segundo os dicionários, expatriado é alguém que abandona o seu país de origem, de forma voluntária ou não, geralmente por tempo determinado e para trabalhar. E imigrante é alguém que abandona o seu país de origem e se estabelece num outro, geralmente por tempo indeterminado e para trabalhar.

Ou seja, em linhas gerais, o que distingue um do outro é o período em que esse alguém reside no seu local de destino. Mas no nosso dia-a-dia, o que distingue os dois é o local de origem.

Falamos de expatriados somente para nos referirmos a cidadãos brancos de países ocidentais e falamos de imigrantes para designar cidadãos de todos os outros países.

Trocando em miúdos, um empresário moçambicano a trabalhar em França é imigrante. Mas um empresário francês a trabalhar em Moçambique é expatriado.

O imigrante é visto como alguém pouco instruído que só quer viver dos benefícios do país de destino e trabalha em empregos precários. Enquanto o expatriado é visto como uma pessoa com Ensino Superior feito, que abre oportunidades de emprego no local de destino e que melhora as condições dos locais.

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Imigrantes do Ghana em Harlem, na cidade de Nova Iorque (EUA). Fonte: Damon Winter/ New Tork Times

Vivemos numa era em que se fala de “Globalização” e vende-se a ilusão do “Cidadão do Mundo”, e que supostamente podemos trabalhar e viver em qualquer parte do mundo; e ao mesmo tempo, vemos os países a fecharem-se para si, sozinhos ou em bloco, criando barreiras a estes movimentos.

Essas barreiras, umas vezes mais e outras menos visíveis, têm como objetivo manter o status quo e garantir que os países privilegiados não são infestados pela pobreza dos cidadãos dos países pouco desenvolvidos.

Através de impedimentos aos vistos de entrada; superfaturamento das passagens aéreas e entraves aos pedidos de residência, entre outras medidas, muitos “cidadãos do mundo” ficam retidos nos seus locais de origem ou arriscam a vida nos locais de destino, vivendo de forma precária e aceitando condições desumanas.

As barreiras evidenciam a hipocrisia dos cidadãos do Ocidente que, ao saírem das suas fronteiras esperam viver tão bem ou melhor que nos seus países de origem.

Os “expatriados” fecham-se nas suas comunidades, criando um universo paralelo daquele em que vive o resto da população nos seus locais de destino. Constroem escolas para os seus filhos, onde falam as suas línguas maternas e aprendem a sua História, ignorando a cultura e contexto de onde vivem e relacionam-se apenas com outros expatriados.

No entanto, os “imigrantes” em países ocidentais têm de se assimilar, a eles não lhes é permitido expressar livremente as suas opiniões ou a sua cultura. Os imigrantes são forçados a deixar de falar as suas línguas maternas;  a rejeitar os seus trajes típicos e a frequentar escolas onde não aprendem nada sobre a sua História.

Para além disso, os “imigrantes” ainda trabalham como cidadãos de segunda classe, geralmente fazendo o serviço que mais ninguém quer, por muito pouco dinheiro, sem perspectivas de crescimento nem garantias e ainda são chamados de preguiçosos.

E os “expatriados” geralmente ocupam cargos de liderança onde trabalham e ganham salários muito acima da média, com direito a benefícios como seguro de saúde, educação de qualidade para os filhos (nas tais escolas privadas que eles mesmos constroem) e têm habitação garantida.

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Embora Chinatown esteja ligada ao exoticismo das culturas orientais, representa um santuário para chineses fora da China.

É impossível ficar indiferente ao jogo de poder que acontece nos movimentos entre fronteiras.

As comunidades imigrantes são muitas vezes afastadas para a margem da sociedade, sem muitas chances para alcançarem o sucesso. As suas histórias são muitas vezes contadas como tragédias e as políticas para a sua integração não envolvem as suas contribuições. Enquanto, pelo contrário, os expatriados são colocados no centro da tomada de decisões – pelo menos quando são assuntos que lhes dizem respeito.

Um exemplo claro desta marginalidade das populações imigrantes é o surgimento de zonas nicho, como o caso das Chinatown, locais onde a comunidade chinesa se instala e se expressa.

Cria-se desta forma uma fronteira dentro de tantas outras fronteiras que impede que haja tolerância e compreensão entre os dois grupos, como dois vizinhos que não se entendem mesmo antes de se conhecerem.

As comunidades de imigrantes, ou as comunidades de expatriados, dependendo de como as queiramos chamar, devem poder viver a sua cultura e os seus costumes sem censura alguma. Devem poder se afirmar fora dos seus países de origem sem recear rejeição ou troça.

Afinal de contas, não queremos todos ser cidadãos do mundo?

Que Nobel é esse?

Mais um ano. Mais um Nobel. Mais uma decepção.

Este ano o Nobel não atribuiu nenhum prémio a mulheres. Nem a pessoas negras. Nem tão pouco a pessoas Africanas.

Os poucos prémios que vão tradicionalmente a estes grupos, Nobel da Literatura e Nobel da Paz – já que aparentemente não temos capacidade intelectual e/ou material para produzir inovações técnicas – este ano foram para homens.

A falta de diversidade nas grandes Academias não é novidade.

No início do ano, durante os Óscares houve um boicote pela falta de representatividade de filmes e actores negros nas nomeações. A campanha #OscarsSoWhite desencadeou um debate sobre a falta de diversidade da Academia e das histórias premiadas.

O que acontece é que a premiação de um determinado grupo valida a produção feita por esse grupo e o seu prestígio, possibilitando mais produção. Isto gera um ciclo vicioso em que o mesmo grupo tem sempre oportunidades de crescimento e financiamento para levar à frente aos seus projectos – sejam no cinema; na literatura; na medicina ou em qualquer outra área de intervenção.

Aumenta-se assim o desnível entre esse grupo privilegiado e os restantes que não conseguem ter os prémios como reconhecimento da sua excelência.

Este ano, numa decisão arrojada, o Prémio Nobel da Literatura foi para Bob Dylan, músico e liricista conhecido pela natureza poética das suas canções. Este foi provavelmente o prémio mais comentado de 2016.

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Bob Dylan foi o escolhido para o Nobel da Literatura 2016. Fonte: Nobel Prize

Bob Dylan, ao contrário do que se tem vindo a dizer,  não é o primeiro liricista a ser galardoado com o Prémio Nobel da Literatura. Em 1913, Rabindranath Tagore, poeta, escritor e liricista indiano levou o Nobel da Literatura.

À semelhança de Dylan, Tagore aprendeu muito do seu ofício sozinho. A sua obra influenciou e foi influenciada pelo movimento pacifista na Índia e a sua independência. Embora o Nobel tenha vindo como reconhecimento pelo seu trabalho como poeta, escritor, dramaturgo e romancista, ele escreveu mais de 2000 músicas. Três dessas canções foram usadas para os hinos nacionais da Índia, Bangladesh e Sri Lanka.

Mas Bob Dylan foi premiado justamente pela sua contribuição a nível musical.

Ainda que discorde da atribuição do Nobel a Bob Dylan, tenho de admitir que premiação de alguém que foge à norma daquilo que é um Nobel da Literatura, de certa forma alarga os horizontes para outros artistas que contam as suas histórias de outras maneiras.

Artistas como Youssou N’Dour (Senegal) ou Miriam Makeba (África do Sul) são dois exemplos de músicos com uma forte componente literária e cujas carreiras foram para além da música, marcadas também pela intervenção social que poderiam facilmente ter um Nobel da Literatura para si.

São artistas que conseguiram, tal como Bob Dylan, incorporar um estilo literário nas suas canções, sobretudo devido à longa tradição oral que há em África.

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Miriam Makeba ficou conhecida internacionalmente como “Mama Africa”

Os nossos melhores contadores de histórias nunca publicaram livros, mas deixaram um vasto legado de lendas e epopeias fantásticas, muitas vezes cantadas que foram passadas de geração a geração.

Arrisco-me a dizer que as nossas melhores obras de Literatura jamais serão escritas. Ou talvez, as versões escritas dessas obras jamais serão tão boas como aquelas ditas.

As palavras ditas têm uma dimensão maior, de preservação de sabedoria e de ligação com os antepassados ao mesmo tempo que se interage com a plateia, no Presente. As palavras ganham mais poder com voz.

Foram os contadores de histórias anónimos na História, porém conhecidos entre nós – os nossos avós; mães; tios; médicos tradicionais; líderes comunitários; professores – que sedimentaram as bases para artistas como Wole Soyinka (Nobel da Literatura em 1986) e Chinua Achebe (autor de Things Fall Apart) desenvolverem o seu talento, passando para o papel toda a herança de provérbios, fábulas e lendas milenares.

Achebe, considerado por muitos como o Pai da Literatura Africana, nunca ganhou o Nobel. Até à sua morte, os africanos esperavam ver o prémio nas suas mãos, no entanto ele sabia que o Nobel tinha tanto a ver com talento, como tinha com geopolítica:

“My position is that the Nobel Prize is important. But it is a European prize. It’s not an African prize … Literature is not a heavyweight championship. Nigerians may think, you know, this man has been knocked out. It’s nothing to do with that.”

A minha posição é que o Prémio Nobel é importante. Mas é um prémio Europeu. Não é um prémio Africano… Literatura não é um campeonato de boxe. Os nigerianos podem pensar, sabe, este homem foi derrotado. Não tem nada a ver com isso.

De facto, o Nobel é um Prémio Europeu. Este ano, dos 11 vencedores, apenas três são de fora da Europa: Bob Dylan, Nobel da Literatura, é dos Estados Unidos da América; Yoshinori Ohsumi Nobel da Medicina, é do Japão e o Nobel da Paz, Juan Manuel Santos é colombiano.

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Ngugi wa Thiong’o escreve desde 1962. Fonte: Website Ngugi wa Thiong’o

O queniano Ngugi wa Thiong’o era a aposta africana para o Nobel da Literatura 2016. O autor de 78 anos é um ícone literário, cujo trabalho está intimamente ligado à sociedade queniana pós-colonial e aos conflitos entre as tradições africanas e os costumes ocidentais.

Devido às fortes reacções ao seu trabalho, já foi preso político e viveu exilado por mais de 20 anos. Foi nesse período que mais se debateu com questões de identidade e de resistência ao Imperialismo, o que o levou a decidir, no fim dos anos 70 a parar de usar o Inglês e passar a usar Kikuyu, a sua língua materna, para escrever.

Pela relação difícil no seu país de origem, Thiong’o nunca foi premiado no Quénia. Mesmo na região da África Oriental não existem prémios literários e no geral, pouco foi o reconhecimento dado pelos africanos. Dos dez Doutoramentos Honorários que tem, apenas dois são de Universidades africanas: Universidade de Dar Es Salaam (Tanzania) e Universidade Walter Sisulu (África do Sul).

Seja como dramaturgo ou romancista, Thiong’o incorpora os elementos da tradição oral africana e demonstra qualidades de um exímio contador de histórias: provocante; actual; envolvente; original e expressivo.

Se tivesse ganho o Nobel este ano Thiong’o seria, depois de Naguib Mahfouz que escrevia em Árabe, o segundo autor a ganhar um Nobel da Literatura com obras escritas primeiramente numa língua africana e o primeiro na categoria “dialectos” africanos.

Mas talvez África precise de ser a primeira a reconhecer e premiar Thiong’o pelo seu talento, pela sua sua visão e pelo contributo para o desenvolvimento de uma consciência cultural e moral africana. Só depois disso podemos exigir mais dos outros.

Não nos podemos isentar da luta pela resistência à hegemonia das línguas europeias. Que sejamos nós os promotores de produções nas nossas línguas e sobre as nossas histórias.

 

 

 

Diários do Rio

Ou breve história de encontros e desencontros entre Moçambique e Brasil

Dia #1

Aterrei. Finalmente!

o primeiro chão brasileiro é São Paulo. Chego com uma saudade de quem na verdade nunca esteve aqui, mas já ouviu falar, já ouviu dizer e agora vai saber na primeira pessoa. O aeroporto é enorme. Mas não me posso perder, nem perder o vôo. Check-in. Boa noite. Boa noite, tudo bem? Ela analisa tudo, imprime o bilhete e no fim pergunta: V-O-C-Ê-F-A-L-A-P-O-R-T-U-G-U-Ê-S?

Dia #2

Passeio logo pela manhã.

Hello. Good morning. I’m Eliana.Conheço o Jonathan, do The Hollywood Reporter e Travolta Cooper, um cineasta dos Bahamas. Trav nasceu para fazer filmes. O seu nome é uma homenagem ao actor John Travolta. É sempre um conforto não ser a única pessoa preta no grupo. So, you’re from Mozambique. I’ve been to South Africa, Tanzania, Namibia, all around but haven’t been to Mozambique yet. I know about Samora Machel. Samora, sempre ele. Que encontro feliz.

Dia #3

Luzes. Câmara. Acção.

Vejo um turbante de longe, de costas. Olá, o meu nome é Eliana. Adorei o seu turbante. Eu também faço. Que linda. Muito obrigada. Me add no facebook. Você é de onde? Moçambique. Nossa! Que turbantes lindos. Na 2a feira vai passar o filme moçambicano, vocês querem vir ver? Vamos sim! É às 20h no Museu da República. Eu tenho de ir. Está! Combinado, então. Falamos melhor no Facebook. Nos encontramos.

Dia #4

Na Praça Mauá, enquanto espero a exibição do filme “As Marias” (Joana Mariani), visito as feiras do recinto. Vejo uma senhora preta a vender artesanato africano. Que brincos lindos! Obrigada. Quanto é? Quatro reais. Você é de onde? Senegal, e você? Moçambique. Vive aqui no Brasil? Sim, há cinco anos. Você conhece Senegal? Não, nunca fui. Mas quero muito! Tem de ir. Eu vou, um dia eu vou. Da próxima nos encontramos lá.

Dia #5

A nossa vida é como essa viagem perigosa e imprevisível do filme “Comboio de Sal & Açúcar” (Licínio Azevedo). Viver mata. Morrer dói. A guerra nada mais é senão o homem a forçar comando sobre o tempo. Todos nós teremos a nossa hora. No percurso em busca do açúcar, muitos acabam se amargando. Às vezes esquecemos a nossa estação. Perdemo-nos no batucar dos carris. No entrelaçar das linhas.

Dia #6

Tiroteio em Ipanema ontem à tarde.

Na fila da frente da carrinha a caminho do Festival conversamos sobre isso. Sim, é perigoso. Não, não é nada de mais. O mundo continua a girar na mesma direcção e essa violência vai para além das balas. Sente-se também nas conversas. Nos bares. Em shoppings. E até mesmo no cinema.

Na fila de trás os colegas reagem aos acontecimentos com menos leveza e menos relativismo. É brutal. É violento. É sangrento. É o fim do Rio de Janeiro.

Estou perdida.

Arcos da Lapa, na cidade do Rio de Janeiro
Dia #7 
Fui à Lapa, zona baixa da cidade. Longe do glamour e paisagismo de Copa Cabana.
Descobri Lisboas escondidas por lá: nos prédios; nas calçadas; nas ruas estreitas e também na mendigagem e nas rugas dos edifícios que viram a cidade a mudar.
Um dia serei assim como este espaço, com as minhas cores encardidas e sem brilho, as minhas portas e janelas fora de moda e espero conseguir manter a graça e essência que a Lapa tem.
Dia #8
Depois de meses de conversas e trocas online, finalmente abraço a Maria Chantal, irmã angolana que vive no Rio há 16 anos. Sentamos à beira-mar e partilhamos, para além do calor da areia nos pés, uma vontade incessante de falar de África. De Negritude. De representação. De cabelo. De tudo. Molho os meus pés naquele lado do Atlântico e pergunto: Quantas mulheres como eu não estarão enterradas nessa imensidão?
Sinto naquele mar o salgado das suas lágrimas. Gratidão, como diz a Maria. Estar aqui e não estar. Me perder e me encontrar.

O mundo se despedaça

Ou Things Fall Apart, geralmente em África. Quase sempre em África.
Neste clássico da literatura africana, Chinua Achebe nos traz a história de Okonkwo, um famoso guerreiro Igbo e como a sua vida muda com a chegada dos primeiros missionários britânicos à Nigéria, no  início do séc. XIX.
No livro, o autor consegue resumir as complexidades das sociedades Igbo da época, incluindo provérbios e fábulas, bem como rituais e deuses locais no seu discurso. Ao mesmo tempo, sente-se que essas sociedades transpiram um certo cansaço e vontade de questionar os seus costumes.
Somos constantemente forçados a escolher um lado: o tradicional ou o moderno; o colonialismo ou o tribalismo; o animismo ou o Cristianismo; o masculino ou o feminino; a ignorância ou a consciência. Várias tensões nascem destes contrastes.
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Okonkwo ganhou fama ao ganhar uma aldeia rival em Luta Livre.
Okonkow, o personagem principal é nesse sentido a maior antítese da história.
Ele é um homem misógino, extremamente violento, esposo e pai abusivo, impaciente e intolerante, ambicioso e acima de tudo, tradicionalista.
Um homem que conquistou os seus títulos e respeito com brutalidade. Sem herança do seu pai para ajudá-lo. Colecionador das cabeças das suas vítimas. Ele representa tudo aquilo que a sociedade Igbo exigia do homem da altura.
Ironicamente, ele também sofre bastante sendo um homem Igbo: primeiro, é obrigado a matar o seu filho adoptivo. Mais tarde, é enviado para o exílio durante 7 anos para pagar por um crime que cometeu involuntariamente. E com a chegada dos britânicos, vê-se obrigado a desonrar o seu filho mais velho quando ele se converte.
E porque ele teve de se auto-mutilar emocionalmente, de lutar para ser essa pessoa, ele queria preservar a estrutura que lhe dava poder. Ele não queria mudar as suas visões conservadoras e ser obrigado a confrontar-se com todas as suas imperfeições.
Okonkwo queria garantir a preservação e manutenção da sua masculinidade e da sua posição na sociedade em que estava inserido.
Contudo, apesar das suas falhas – e não são poucas! – Okonkwo é apenas um homem que quer o melhor para a aldeia Umuofia e vê esse futuro ameaçado com a crescente comunidade cristã na região. Numa passagem, ele diz aos outros homens poderosos da aldeia:
“The white man is very clever. He came quietly and peaceably with his religion. We were amused at his foolishness and allowed him to stay. Now he has won our brothers, and our clan can no longer act like one. He has put a knife on the things that held us together and we have fallen apart.” 
 
O homem branco é muito espero. Ele veio calma e pacificamente com a sua religião. Nós nos divertimos com as suas palhaçadas e permitimos que ele ficasse. Agora ele convenceu os nossos irmãos e o nosso clã já não é unido. Ele pôs uma faca nas coisas que nos uniam e nós nos dividimos.
Ao chegar às aldeias, o Cristianismo ofereceu refúgio e amparo àqueles que na sua comunidade viam-se marginalizados ou eram isolados, como eram os gémeos (que se acreditava serem uma maldição); as mulheres incapazes de ter filhos e os homens sem terra nem títulos, entre outros.
Por outro lado, ao desmascarar todos estes mitos e a impôr a Bíblia como base para se aplicar a Justiça, o Cristianismo criou conflitos, separando famílias e tirando a dignidade de muitas pessoas respeitadas na comunidade.
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Praticantes de luta livre na Nigéria. Foto: Jack Picone

Achebe é dos mais premiados e célebres autores africanos.

Através dele, somos obrigados a confrontar a inevitabilidade de mudança das sociedades Igbo da época. No entanto, a violência com essas mudanças foram traçadas e as soluções impostas são igualmente colocadas em perspectiva.
Para o autor, o que se perdeu foi dignidade e isso é o que se deve reconquistar.
“The worst thing that can happen to any people is the loss of their dignity and self-respect. The writer’s duty is to help them regain it by showing in human terms what happened to them.”
 
A pior coisa que pode acontecer a qualquer povo é a perda da sua dignidade e respeito próprio. O dever do escritor é ajudar a reconquistá-los mostrando de uma forma humana o que aconteceu.
E o que foi que aconteceu?
África como uma força com vontade própria e modelos políticos e religiosos sólidos, deixou de existir. Acabou. Finito.
As regras, espíritos, deuses, nomes, datas, lendas e tudo o que faz parte do imaginário de qualquer sociedade foi gradualmente apagado.
No fim, não importa se os colonos eram gentis ou brutos; se eram tolerantes ou vingativos; se chegaram com armas ou com a bíblia. Importa o facto da sua presença ter colocado em causa a ética, filosofia e governação das sociedades Africanas.
Importa o facto dos colonos terem sido intransigentes e austeros na sua presença. Mataram. Roubaram. Bateram. Expulsaram.
A voz de África se silenciou.
O fim trágico com que se fecha a última página do livro deixa claro como a assimilação, total ou parcial, da cultura, hábitos e filosofia dos invasores britânicos mudou para sempre o destino dos Africanos, mesmo daqueles que mais se opuseram ao colonialismo como foi Okonkwo.

Vamos falar de cabelo outra vez?

Para além de falar das politiquices em torno da carapinha, é importante reconhecer os espaços em que esse cabelo é representado – ou não – e como essa representação é feita.

Já falamos uma vez sobre as politiquices em torno do cabelo crespo e cacheado, e como existe um padrão ideal que nós, pretos, temos de pagar com a nossa própria saúde para atingir.

Aqui em África, onde a grande maioria das pessoas tem o cabelo crespo, dificilmente vemos figuras proeminentes a usar orgulhosamente o seu cabelo natural.

Se vemos, na sua maioria, são mulheres bem mais velhas ou pessoas ligadas às artes e com um estilo excêntrico que lhes confere uma certa liberdade, interdita a nós outros, meros mortais.

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Cantora moçambicana Mingas canta com as suas dreads.

Porém, figuras da cultura pop, com as quais a juventude mais se identifica regem-se sobretudo pelos padrões ocidentais de beleza. E como tal, não só nas suas músicas, e nos seus vídeos, mas também na sua forma de vestir se inspiram nos artistas norte-americanos, sobretudo.

Seria ingénuo e até mesmo infantil ignorar a influência que tais artistas têm na construção de mentalidades.

Assumindo que são estes que dominam a música moçambicana que toca em rádios e discotecas, então o seu papel no crescimento e consciência dos moçambicanos, e especialmente nos jovens moçambicanos, é imensurável.

Se meninas moçambicanas idolatram artistas com cabelos lisos, sentirão, logicamente uma desconexão consigo mesmas. Com as suas raízes. E o mesmo para os meninos.

E procurarão estes grupos formas de afirmação de beleza que se aproximem dos modelos que idolatram. Daí o bilionário mercado da extensões capilares em África apenas. Daí o negócio dos branqueadores de pele (mas isso falamos num outro dia).

Contudo, não podemos deixar tudo nas mãos dos artistas.

Olhemos para outras figuras importantes no nosso país: os nossos professores; os médicos; enfermeiros; ministros; presidentes; etc.

Mesmo nos Estados Unidos da América, a Primeira-Dama Michelle Obama, que é uma mulher negra, não usa os seus cabelos com a textura natural. Para o seu marido, o Presidente Barack Obama essa questão é facilmente contornada, já que ele pode usar o cabelo curto sem causar choque.

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Jacob, de 5 anos, sente o cabelo do Presidente Obama. Fonte: New York Times

E em casa, o que fazemos para que haja essa aceitação? Que trabalho temos feito para valorizar as nossas raízes?

Mesmo nos espaços mais vanguardistas, há ainda a expectativa de “arrumado” (trançado; amarrado; etc). As pessoas nem reparam que isso é fruto desse padrão de beleza europeu, que tem como base ideia errada de que o cabelo natural é sinal de desleixo ou sujidade.

Há sempre um policiamento que se disfarça de preocupação ou conselho.

Esse cabelo parece estar seco, tens de hidratar. Esse cabelo está muito despenteado, tenta organizá-lo. Tenho uma dica para dar mais vida ao teu cabelo. Usa o produto X que o teu cabelo vai ficar como o da Y.

Qualquer fórum sobre cabelos naturais está cheio de receitas e truques para domar o cabelo, como se ele fosse, de facto selvagem.

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Blogueiras My Natural Sisters

Twist out. Braid out. Blow out. Length check. 4A. 4B. 4C.

Uma linguagem codificada para abordar algo tão simples: cabelo. Uns mais, outros menos encarapinhados. Uns mais, outros menos longos. Uns sempre, outros nunca no lugar.

Temos de desconstruir a ideia de que o nosso cabelo natural vem na forma errada. Ou na textura errada. Ou no comprimento errado.

E essa desconstrução leva o seu tempo e requer muito trabalho. Talvez mais do que as pessoas estejam dispostas a dar.

Porque não basta perder uma manhã inteira a lavar o cabelo e aplicar produtos caros para ter um cabelo crespo q.b., e depois perguntar a uma mana de afro:

O que se passa com o teu cabelo?

 

Em defesa da(s) Winnie(s)

 

Winnie Madikizela-Mandela é uma figura que divide opiniões. Há quem a ama e quem a odeie, mas uma coisa é indelével: a marca que esta mulher deixou na luta contra o Apartheid.

Como mulher jovem quase-viúva, Winnie posicionou-se sempre como alguém disposto a arriscar tudo para ver a África do Sul livre do regime do Apartheid.

Sempre foi vilanizada pelo regime, pois era uma mulher que afrontava as autoridades, nunca se tendo vergado perante as suas exigências. Aliás, o próprio Congresso Nacional Africano (ANC) também se serviu dessa imagem de vilã para afastá-la, tirando-lhe os louros da sua luta.

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Winnie é considerada Mãe da Nação na África do Sul

Winnie está longe de ser perfeita. Cometeu os seus erros e admitiu tais erros.
A abordagem de Winnie era mais radical, apelando à violência para pôr um fim definitivo ao Apartheid.

Podemos discordar desta abordagem, mas não há como negar que o uso ou a ameaça de violência é vital para o sucesso de qualquer movimento de libertação. Nenhum regime opressor caiu por se apelar à sua boa vontade e/ou bom senso.

E na África do Sul foi muito pela pressão feita por grupos radicais – muitos aliados ao ANC – e perante o prenúncio de uma guerra civil que o Apartheid terminou. E terminou sobre a condição de fazer de Mandela presidente pois sabiam que nenhum outro líder do ANC seria capaz de assumir uma posição tão pacífica.

Nomes como o de Winnie não aparecem nos livros de História como deve ser.

Na África do Sul: Albertina Sisulu. Fatima Meer. Ruth First. E tantas outras!

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Mulheres sul-africanas protestam durante o Apartheid.

No seu livro 491 Days: Prisoner Number 1363/69, Winnie relata como a sua saúde se deteriorou na cadeia, tanto a nível físico como mental. Ela chega a ficar meses com o ciclo menstrual interrompido e com ataques de pânico constantes, sem assistência médica alguma.

Passa por tortura. Fica em confinamento solitário por mais de 12 meses. Não tem contacto com as suas filhas ou com o marido. Por vezes é privada de falar com o seu advogado. Pouco ou nada come. Enfim!

Winnie foi levada ao limite. E sobreviveu para ver uma África do Sul livre.

Tal como Winnie Madikizela-Mandela, foi também “Mãe da Nação” Josina Machel .

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Josina Machel foi uma das fundadoras do Destacamento Feminino

Josina Machel foi uma combatente na luta de libertação de Moçambique.

Entre os seus 18 e 20 anos foi presa e perseguida por seguir o sonho de combater as forças Portuguesas. Percorreu cerca de 2000km para chegar à Tanzânia, onde passou por treino militar e se juntou à Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO).

Foi ela que, em finais da década de 60, fez questão de posicionar as mulheres como parte integrante da luta pela independência e não meras espectadoras.

Ao morrer aos 25 anos, antes da independência, deixou um grande vazio não só no coração de Samora Machel, seu esposo e futuro Presidente da República, mas também na FRELIMO onde liderava antes de adoecer, o Departamento de Assuntos Sociais.

Embora no dia da sua morte, 7 de Abril, se comemore o Dia da Mulher Moçambicana, pouco se fala e se discute o papel de Josina e os seus ideais.

Antes pelo contrário, pode-se até dizer que usa-se a data para reforçar a posição da Mulher como costela de Samora – Ups! – Adão.

As mulheres que optavam pela carreira política, à semelhança do que acontece hoje, eram recebidas de braços abertos para fazer o trabalho sujo, mas não para ocupar cargos de liderança.

Como presas políticas sofreram vários tipos de violência física característicos apenas de mulheres, para além da esperada tortura, maus-tratos, perseguição e outras formas de intimidação por parte dos regimes que elas ousaram desafiar.

E ainda assim, mesmo no seio dos movimentos que integraram era esperado um comportamento passivo. Esperamos dessas mulheres a manutenção da sua “feminilidade”, baseada na ideia de fragilidade e doçura. Perdão incondicional e amor eterno.

Mesmo casando homens na política, não lhes foi permitida uma saída ao esperado papel da mulher no matrimónio: submissão; maternidade; sociabilidade.

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Hoje está aí Dilma Rousseff, no Brasil sendo destituída num processo misógino e elitista, quase despótico. E ao mesmo tempo assistimos a ascensão de Hillary Clinton – de um background diferente, mais privilegiado -, de quem também se espera uma cara sorridente e maternal.

Às mulheres está interdito o acesso à raiva ou ódio. Muito menos ao rancor. Não podemos guardar mágoa nem podemos ficar zangadas. Senão somos ingratas. Somos loucas. Somos doentes.

Winnie foi privada de circular livremente. Não podia receber visitas. Não podia visitar o marido. Não tinha como trabalhar. Era cidadã de segunda classe no seu próprio país.

Foi lá e gritou. Lutou. Sofreu.

Winnie não é maluca.

 

 

Vamos falar de cabelo?

Para a maioria das pessoas não negras cabelo é algo trivial.

É algo tão comum e ao mesmo tempo significante como unhas: Há pessoas que gostam de unhas curtas; outras de unhas compridas. Há quem pinte as unhas e há que as deixe desnudas. Há também as opções de extensões e tratamentos para as unhas, mas de modo geral, não há um padrão forçado no que toca a unhas. E para essas pessoas o mesmo acontece com o cabelo.

Contudo para as pessoas negras o cabelo é algo muito maior que isso.

Muitas pessoas negras, em especial as mulheres, vêem-se acorrentadas ao cabelo. Se chove ela não pode andar a pé. Se tem um evento, tem necessariamente de perder horas no salão de cabeleireiro. Se tem uma entrevista de emprego, é obrigada a avaliar minuciosamente como irá apresentar o seu cabelo aos potenciais patrões. Se vai conhecer alguém novo; vai a um local diferente; tem de participar de um evento desportivo; ir à piscina; viajar; tudo isso envolve algum tipo de decisão quanto ao cabelo. Esse cuidado vai para além de vaidade. É uma necessidade.

O cabelo torna-se uma espécie de prisão.

O cabelo dos negros, seja ele crespo ou cacheado está carregado de conotações negativas. Entre as mais comuns, há o mito da falta de higiene, este recaindo sobretudo em estilos como as tranças e dreadlocks, e o mito da desorganização e desleixo, mais associado ao afro.

Existe uma pressão para as pessoas negras terem o cabelo liso, que é exactamente o inverso daquilo que cresce naturalmente nas nossas raízes. Para além do processo de alisamento de cabelo ser feito com recurso a químicos prejudiciais à saúde, é muitas vezes doloroso e dispendioso (sobretudo quando associado a extensões capilares).

Recentemente adolescentes sul-africanas ganharam fama com os seus protestos contra a discriminação dos seus cabelos naturais na escola que frequentam.

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Protesto na Escola Secundária de Pretória, na África do Sul

As meninas sofriam pressão diariamente por parte dos professores para a alisarem os seus cabelos sobre a pena de serem privadas de assistirem às aulas por causa dos seus naturais e crespos Afros.

Em Moçambique também vivemos uma ditadura dos padrões ocidentais.

No início do ano lectivo uma mãe publicou no Facebook que teve de cortar as dreads da filha que de outra forma, seria impedida de entrar na escola.

Num outro relato, um cidadão reportou que apesar de ter qualificações para tal e ter sido aceite através de um concurso público, foi impedido de dar aulas na província de Nampula por ter rastas.

Os nossos cabelos na sua forma mais natural são, vezes sem conta, alvo de ataques que nos empurram para um abismo de ódio próprio e auto-destruição.

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Mãe teve de cortar as dreads da filha sobre a ameaça de suspensão.

Estes casos evidenciam como o padrão de beleza ocidental nos é forçado desde cedo e em várias esferas sociais. Também deixa claro que o policiamento dos nossos corpos é mais importante que a nossa educação.

Isto é apenas uma amostra do racismo institucional espalhado um pouco por toda a parte. Os padrões instituídos pelo Imperialismo Ocidental continuam a influenciar aquilo que é esperado nos centros escolares e empresariais, ainda que de forma implícita.

As politiquices em torno do cabelo dos negros não são nada de novo. O cabelo afro, por exemplo, foi usado nos anos 60 pelos Panteras Negras nos E.U.A. como afirmação de identidade. Aquilo que hoje chamados de rastas e o Movimento Rastafari surgiu na Jamaica como manifestação de adoração do Imperador Ras Tafari (Haile Selassie) da Etiópia (anos 30).

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Crente Rastafari

Vivemos sobre códigos de conduta que buscam a uniformidade. A estandardização do ser humano. E o modelo padrão é o modelo ocidental (branco). Assim sendo, para que nos aproximemos desse modelo tem de haver um processo de subjugação. Temos de nos afastar da nossa Negritude.

Quando elementos da nossa Negritude – tal como o cabelo – têm acesso vedado a espaços públicos somos obrigados a abdicar de uma parte da nossa identidade.

E quando este acesso nos é vedado não pelas autoridades coloniais, mas por mentes africanas colonizadas, vemos quão longe foi o projecto imperialista ocidental.

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Vários penteados tradicionais africanos.

Não é só cabelo.

É muito mais que isso. É sobretudo o valor colocado numa ideia. A ideia de que aspectos culturais e estéticos devem se guiar por um padrão do outro lado do espectro onde me encontro. A ideia de que a validade da minha existência mede-se mediante a aproximação a um determinado padrão.

A ideia em como a minha negritude, a minha identidade tem menos valor.