Diários do Rio

Ou breve história de encontros e desencontros entre Moçambique e Brasil

Dia #1

Aterrei. Finalmente!

o primeiro chão brasileiro é São Paulo. Chego com uma saudade de quem na verdade nunca esteve aqui, mas já ouviu falar, já ouviu dizer e agora vai saber na primeira pessoa. O aeroporto é enorme. Mas não me posso perder, nem perder o vôo. Check-in. Boa noite. Boa noite, tudo bem? Ela analisa tudo, imprime o bilhete e no fim pergunta: V-O-C-Ê-F-A-L-A-P-O-R-T-U-G-U-Ê-S?

Dia #2

Passeio logo pela manhã.

Hello. Good morning. I’m Eliana.Conheço o Jonathan, do The Hollywood Reporter e Travolta Cooper, um cineasta dos Bahamas. Trav nasceu para fazer filmes. O seu nome é uma homenagem ao actor John Travolta. É sempre um conforto não ser a única pessoa preta no grupo. So, you’re from Mozambique. I’ve been to South Africa, Tanzania, Namibia, all around but haven’t been to Mozambique yet. I know about Samora Machel. Samora, sempre ele. Que encontro feliz.

Dia #3

Luzes. Câmara. Acção.

Vejo um turbante de longe, de costas. Olá, o meu nome é Eliana. Adorei o seu turbante. Eu também faço. Que linda. Muito obrigada. Me add no facebook. Você é de onde? Moçambique. Nossa! Que turbantes lindos. Na 2a feira vai passar o filme moçambicano, vocês querem vir ver? Vamos sim! É às 20h no Museu da República. Eu tenho de ir. Está! Combinado, então. Falamos melhor no Facebook. Nos encontramos.

Dia #4

Na Praça Mauá, enquanto espero a exibição do filme “As Marias” (Joana Mariani), visito as feiras do recinto. Vejo uma senhora preta a vender artesanato africano. Que brincos lindos! Obrigada. Quanto é? Quatro reais. Você é de onde? Senegal, e você? Moçambique. Vive aqui no Brasil? Sim, há cinco anos. Você conhece Senegal? Não, nunca fui. Mas quero muito! Tem de ir. Eu vou, um dia eu vou. Da próxima nos encontramos lá.

Dia #5

A nossa vida é como essa viagem perigosa e imprevisível do filme “Comboio de Sal & Açúcar” (Licínio Azevedo). Viver mata. Morrer dói. A guerra nada mais é senão o homem a forçar comando sobre o tempo. Todos nós teremos a nossa hora. No percurso em busca do açúcar, muitos acabam se amargando. Às vezes esquecemos a nossa estação. Perdemo-nos no batucar dos carris. No entrelaçar das linhas.

Dia #6

Tiroteio em Ipanema ontem à tarde.

Na fila da frente da carrinha a caminho do Festival conversamos sobre isso. Sim, é perigoso. Não, não é nada de mais. O mundo continua a girar na mesma direcção e essa violência vai para além das balas. Sente-se também nas conversas. Nos bares. Em shoppings. E até mesmo no cinema.

Na fila de trás os colegas reagem aos acontecimentos com menos leveza e menos relativismo. É brutal. É violento. É sangrento. É o fim do Rio de Janeiro.

Estou perdida.

Arcos da Lapa, na cidade do Rio de Janeiro
Dia #7 
Fui à Lapa, zona baixa da cidade. Longe do glamour e paisagismo de Copa Cabana.
Descobri Lisboas escondidas por lá: nos prédios; nas calçadas; nas ruas estreitas e também na mendigagem e nas rugas dos edifícios que viram a cidade a mudar.
Um dia serei assim como este espaço, com as minhas cores encardidas e sem brilho, as minhas portas e janelas fora de moda e espero conseguir manter a graça e essência que a Lapa tem.
Dia #8
Depois de meses de conversas e trocas online, finalmente abraço a Maria Chantal, irmã angolana que vive no Rio há 16 anos. Sentamos à beira-mar e partilhamos, para além do calor da areia nos pés, uma vontade incessante de falar de África. De Negritude. De representação. De cabelo. De tudo. Molho os meus pés naquele lado do Atlântico e pergunto: Quantas mulheres como eu não estarão enterradas nessa imensidão?
Sinto naquele mar o salgado das suas lágrimas. Gratidão, como diz a Maria. Estar aqui e não estar. Me perder e me encontrar.