O livro Choriro, de Ungulani Ba Ka Khosa descreve o espaço ao Sul do Zambeze no séc. XIX
“Choriro”, que significa choro em língua local, descreve os dramas, as intrigas e esperanças em torno da morte de Nhabezi, um rei branco, que em tempos dominou a região.
Através de uma moldura temporal, Ba Ka Khosa pinta o cenário de mudanças que se faziam sentir, tanto a nível social, como político, cultural e económico. Isto claro, aliado às tradições, mitos, vivência e religiões dos povos locais e à tentativa de construção dos Impérios Britânico e Português.
O cruzamento destes olhares sobre o mundo, infelizmente, foi pago com muita sangue e com esse sangue calaram-se as vozes que podiam manter esse legado vivo. Deste modo, o escritor, que é também historiador, tenta com a sua obra resgatar estes saberes esquecidos.

Ao morrer, Nhabezi, também conhecido por Luís António Gregódio, português de origem, tem como sonho tornar-me mpondoro – espírito guia e protector do seu povo. Ele quer transformar-se em:
“espírito de leão como outros soberanos das terras à margem sul do Zambeze se haviam transformado e governado espiritualmente os seus homens. Mas muitos duvidavam da real capacidade de o espírito de Nhabezi em coabitar com outros no selecto reino das divindades africanas.” – p.39
Como um “senhor dos prazos” Nhabezi foi fiel ao seu povo. Era muito respeitado e se acostumou rapidamente à cultura dos achicundas, de modo a que o seu tom de pele não mais representava uma ameaça ou despertava estranheza. Quando morreu, o luto dos seus veio com desorientação, tristeza, desordem.
Coloca-se a questão: Poderá Nhabezi entrar no reino dos mpondoro? Será aceite, como homem branco, no reino dos grandes e imortais reis negros?
Como pode, um chefe branco mesmo tendo assimilado todos os elementos de africanização tornar-se mpondoro?
É esta tensão entre os diferentes espaços que sentimos ao longo de todo o livro.
Os próprios filhos de Nhabezi, uns mais identificados com a cultura portuguesa e inclusivamente funcionários públicos no regime colonial e outros mais ligados à cultura achicunda, exímios caçadores de elefantes, também são exemplos desta constante negociação do sentimento de pertença.
As culturas e tradições locais das pequenas povoações dão espaço a novos costumes à medida que o reino vai-se alargando. Adicionalmente, temos os ingleses e os portugueses a disputar o comércio dos escravos. Em paralelo também há o tráfico de meninas negras virgens; a relação entre as mulheres de Nhabezi; a tensão entre a Igreja Católica e as religiões locais.
E claro, temos também a própria História de Moçambique a lutar pelo seu espaço contra a História de Portugal, e num contexto mais alargado, a História do mundo.

Em “Choriro” fica subentendido que as forças que decidem estão para além de nós, ou pelo menos para além do nosso entendimento.
Tantos os conselheiros, como as mulheres, os filhos e os oráculos de Nhabezi choram mergulhados nas suas dúvidas, pois ninguém sabe sobre que regras se organizam esses espaços.
Afinal quem define essas regras? A quem cobramos esses limites?
São essas complexidades e armadilhas dos saberes ancestrais que nos envolvem e questionam. Todos nós nascemos e vivemos e vamos ganhando consciência dos espaços que ocupamos, uns mais e outros menos centrais ou periféricos.
E esses espaços, por sua vez, permitem-nos aceder a certos privilégios ou ter um determinado reconhecimento, como se prevê no caso de Nhabezi. No entanto, as regras não são tão simples assim. Por algum acidente ou coincidência podemos questionar a nossa legitimidade em ocupar tal espaço.
Será que sou digno de estar aqui? Poderei, começando neste degrau, alcançar determinado patamar? Onde pertenço?
Embora a musa da história seja Nhabezi, por detrás desta sereia, há um mar (ou devia dizer rio?) e as suas ondas balançam, chamando discretamente pela nossa atenção.
Essa sereia seduz, é atraente e vistosa, porém os mistérios guardados pelas ondas são maiores e bem mais interessantes.
A sereia é a caricata história de Nhabezi, o rei branco, polígamo, influente no vale do Zambeze que sonha em tornar-se mpondoro como rezam as lendas locais. O mar é a sombra do colonialismo; o comércio de marfim; o tráfico de escravos; a economia de mercado; a presença cristã, enfim, a fusão que acontece entre estas influências que tragicamente destroem (ou tentam destruir) a cultura nativa.
O vale do Zambeze é, portanto, o campo de batalha onde estas disputas ocorrem.
O espaço, muito mais que o tempo, é que determina o futuro daquilo que hoje chamamos de Moçambique.