Precisamos de falar sobre a violência

Fulano espanca mulher até à morte. Sicrano é encontrado esfaqueado no seu carro. Mulher e filhos são mortos por ex-marido ciumento. Grupo de homens viola jovem vizinha.

Isto são apenas recortes de várias notícias e reportagens que já são habituais nos nossos jornais e revistas. Coisas que ocorrem com tanta frequência que de repente deixam de chocar e passam a fazer parte do nosso dia-a-dia.

É normal. Como sociedade concordamos que isto é o que temos e que pouco ou nada podemos fazer para mudar a realidade.

O que estará a acontecer connosco que está a permitir que a violência se normalize? O que estaremos a fazer para permitir que o abuso verbal, físico e/ou sexual continue a acontecer na nossa sociedade?

Vários pensadores; críticos; filósofos; sociólogos e outros investigadores sociais já se debruçaram sobre o tema. Estatisticamente falando, a violência como um todo é levada a cabo por homens. Independentemente do contexto social; económico; étnico; incluindo faixa etária e nível de escolaridade; os crimes mais violentos são na sua maioria cometidos por homens.

Porquê? Que relação existe entre violência e masculinidade?

Serão todos os homens violentos? Não. Mas todos os homens são criados na mesma sociedade patriarcal que exige deles um comportamento violento. Todos os homens são criados para acreditarem que têm acesso ilimitado à violência para reforçar o seu poder. Todos os homens são socializados para acreditar que o uso da violência está acima de qualquer direito ou dever que possam ter na sociedade.

Há um padrão de violência aí que não deve (nem pode) ser ignorado.

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O homem tende a cometer violência contra homens e mulheres para afirmar ou reforçar a sua masculinidade. Fonte: Rede HOPEM

O conceito de masculinidade está intimamente ligado à força e à violência. Temos aquela imagem do homem ideal caçador; protector da família; provedor; forte; atlético; disposto a tudo para defender os seus ideais. Esquecemos que esse homem ideal é capaz de coagir; forçar; manipular; violar; abusar; se fizer uso (ou ameaçar o uso) da violência.

Nos casos de violência doméstica acrescenta-se aqui uma série de estruturas e condutas aceitáveis que facilmente podem sair do limite do saudável.

Há uma glamourização de comportamentos abusivos como o ciúme excessivo; a possessão disfarçada de preocupação; a própria dinâmica de poder entre o casal em que da mulher espera-se submissão e do homem dominação; entre outros sinais que podem por si indicar que o relacionamento não é saudável.

Por outro lado, nós como mulheres somos socializadas para ter uma atitude de auto-sacrifício e resignação face à ‘natureza’ e manutenção dessas dinâmicas nas relações.

Acrescentamos ainda a este “conto de fadas” as pressões sociais e expectativas associadas ao casamento e todo o estigma em torno do divórcio.

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A violência doméstica é normalizada. Fonte: A Verdade

Quando falamos em criminalidade e violência geralmente vemos como cara das estatísticas mulheres pobres, de bairros suburbanos ou zonas rurais com pouca instrução escolar. Olhamos para essas mulheres como as vítimas perfeitas, já que vivem desprovidas de conhecimento sobre os seus direitos e sem apoio para saírem das relações abusivas em que se encontram.

Mas a verdade é que a violência doméstica é um fenómeno que afecta famílias de todos os backgrounds sociais; económicos; étnicos; etc.

No ano passado, a filha de Graça e Samora Machel, Josina Machel, chegou-se à frente relatando que tinha sido vítima de um relacionamento abusivo, tendo perdido a visão no olho direito como resultado de uma agressão que sofreu pelo parceiro.

Esta semana nos chocou o assassinato de Valentina Guebuza, filha do ex-Presidente da República Armando Guebuza, baleada pelo seu próprio marido.

Seria fácil apontar estes como casos isolados, mas infelizmente não é assim. Estes chamam à atenção por mostrarem mulheres emancipadas financeiramente, de famílias privilegiadas, que vivem em locais seguros e com todos os serviços à sua disposição mas que ainda assim não escaparam às teias manhosas da violência doméstica.

A violência doméstica pode acontecer com todo mundo. Acontece com mulheres de diferentes raças, de diferentes níveis educacionais, de diferentes classes sociais. Olhe para mim. Eu perdi um olho. Há tantas outras que perdem a vida. Pelo menos eu pude contar a minha história.Josina Machel

A verdade é que precisamos desses casos mediáticos e sensacionalistas para apontar o dedo à monstruosidade do mundo e esquecer que ela existe nas nossas casas, nas nossas relações e em nós mesmos. Precisamos desse sensacionalismo para validar que esses monstros são desconhecidos e não os nossos pais, primos, vizinhos, colegas.

São situações complexas e demasiado delicadas e por isso é mais fácil olhar desta forma simplificada em que as coisas são pretas e brancas. Ninguém quer olhar para si mesmo e reconhecer padrões de violência, mas eles estão lá.

Nos jornais colocam-nos os agressores como homens sui generis sem estrutura emocional para viver na nossa sociedade. Nós, como espectadores, esperamos desse criminoso toda a crueldade e frieza que possa colocá-lo numa ‘caixa’ catalogada como “monstro/ psicopata/ sociopata/ doente/ etc”.

E por sua vez, a esse criminoso atribuímos a tal vítima perfeita. Precisamos de uma vítima indefesa e frágil para nos colocarmos acima dessa posição e por isso, acima da situação como se algo idêntico apenas acontecesse longe da seguranças das nossas vidas.

Depois de todas as capas de jornais; debates online; programas de TV; reportagens e afins, voltaremos ao nosso conformismo. Voltaremos a acreditar na inocência da violência burguesa.

Quando os nossos filhos baterem nos colegas, diremos que é normal por serem rapazes. Quando as nossas filhas forem assertivas, diremos para elas serem menos intimidantes. Quando ouvirmos gritos de discussões nas portas ao lado, viremos as costas porque “entre marido e mulher não se mete a colher”. E continuaremos na nossa vida até reaparecer um caso idêntico para nos puxar à realidade.

 

 

 

 

 

E agora Senhor Ministro?

Um recente espectáculo gratuito de violência nas escolas foi distribuído, via redes sociais para todo o Moçambique. Qual é a resposta do Ministério da Educação? 

Não é surpresa a inexistência de segurança no Ensino Público, mas um caso de esfaqueamento filmado e reenviado vezes sem conta desperta qualquer sociedade. Ou pelo menos devia.

O vídeo, que mostrava dois rapazes numa Escola Secundária a lutarem, ambos a sangrar, ganhou atenção especial por um deles ter sido esfaqueado sem que nenhum professor, guarda ou qualquer outro funcionário do recinto percebesse o que estava a acontecer no momento do incidente.

As deficiências; carências e lacunas do nosso Ensino Público já são por todos nós conhecidas: falta de infraestruturas que promovam o bem-estar do estudante; condições estéreis para o nascimento de ideias e mentes brilhantes; sobrelotação das salas de aula; falta de manuais escolares; escassez de professores; desistência por parte dos alunos; reprovações em massa; etc etc etc.

O cenário é tenebroso. Catastrófico.

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Crianças a estudar ao relento numa manhã de nevoeiro em Maputo. Fonte: Facebook

O Ministério da Educação parece não saber bem por onde pegar. Está mesmo complicado!

No início do ano lectivo, numa tentativa de resgatar a honra e valores de outrora, S. Excia. Senhor Ministro decidiu implementar a obrigatoriedade do uso das maxi-saias.

A medida tem como intuito melhorar o ambiente de ensino e repor a decência nas salas de aula. Ou, por outras palavras, vem devolver ao professor a sua inocência e impedir as meninas de serem violadas – sim, porque a culpa é delas.

Agora enfrentamos outra crise – dentro de todas as outras crises (as mencionadas e as ocultadas): violência nas escolas.

Quando meninas começaram a aparecer grávidas nas escolas encaramos isso como um problema nacional. Aquilo foi um vuku-vuku jamais visto! Primeiro começou-se por tirá-las do curso diurno. Depois veio essa das saias até aos calcanhares.

As pessoas saíram à rua. Gritaram. Manifestaram-se (ou quase isso). Escreveram contra e a favor. Por causa das saias até houve quem fosse deportado de Moçambique.

O Senhor Ministro até já estava cansado de proteger os pedófilos que andam aí disfarçados com batas brancas como se estivessem a ensinar – até porque há um problema de quadros, não podemos mandá-los embora.

Enfim o Senhor Ministro lá geriu a situação e agora vem esta!

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A obrigatoriedade das maxi-saias gerou polémica. Fonte: Comunidade Moçambicana

Dois rapazes foram filmados por outros colegas numa luta violenta da qual um saiu esfaqueado e apenas um dos envolvidos foi expulso e preso (supostamente). O outro certamente também irá tirar contas com a Justiça em tempo útil.

Aguardo ansiosamente a próxima medida do Senhor Ministro.

Já não se fala de um problema de dimensão nacional, embora vários alunos tenham assistido (e até divulgado) o vídeo com conteúdo extremamente violento.

Embora a escola tenha várias pessoas dotadas de poder e competências para impedir que tais episódios aconteçam.

Embora não só naquela escola, mas em todas haja episódios semelhantes diariamente.

Embora a violência seja um problema de todos nós, encaramos o ocorrido como uma manifestação isolada de um possível problema mental, familiar ou social dos envolvidos, falhando na nossa análise.

Esquecemos que a violência e a criminalidade sempre fizeram parte do nosso Ensino Público: as reguadas do professor da Primária; os roubos de canetas, livros, telemóveis e até mesmo mochilas; os abusos de bebidas alcóolicas e estupefacientes; as violações sexuais; os pagamentos para passar de classe;  etc.

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 A discussão sobre a violência nas escolas ainda é uma gota no oceano perto da dimensão do problema.

 

O Senhor Ministro tem uma batata bem quente nas mãos!

Pouco se falou ou discutiu a reabilitação destes meninos. Pouco ou nada se decidiu no que toca a medidas para garantir mais segurança aos alunos nas escolas. Ninguém se pronunciou sobre o controle de instrumentos cortantes nos recintos escolares.

E porquê? Porque vemos a violência masculina como um problema individual. É um assunto de interesse privado, que diz respeito apenas aos envolvidos e às suas famílias. Enquanto olhamos a sexualidade feminina como algo de todos. É um assunto de interesse público no qual ~devemos~ opinar.

Resultado: Obrigamos as meninas a usarem saias compridas para acabar com a gravidez na adolescência, mas expulsamos um rapaz da escola para acabar com a violência nas escolas.

O Senhor Ministro está mesmo mal!

É a cultura da violência; a cultura do estupro; a cultura do deixa-andar… A cultura de tudo menos do estudo e da dedicação. Menos da leitura e da investigação. Menos da segurança; da qualidade e do rigor.

E agora Senhor Ministro?