Nem todos os tesouros estão no fundo do mar

Nem todos os tesouros estão no fundo do mar

Os maiores tesouros africanos estão em Museus na Europa.  

Desde o início da exploração europeia à África, Américas e Ásia que várias relíquias, tesouros e até mesmo pessoas, foram roubadas dos seus locais de origem.

No fim deste mês alguns itens da colecção de Arte Africana de Liliane e Michel Durant – Dessert irão a leilão em Paris. São artigos provenientes sobretudo da África Oriental que datam do séc. XVI – XVIII e avaliados em milhões de dólares.

Como Liliane e Michel Durant – Dessert conseguiram acumular tais tesouros é-me desconhecido, mas podemos tirar algumas conclusões sobre como esses artigos foram chegar à Europa.

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Museu Britânico exibe acervo de arte africana. Fonte: Afro & Africa

Os primeiros exploradores europeus levaram consigo vários objectos como curiosidades, troféus ou testemunhos antropológicos de culturas exóticas: as roupas, comidas, estatuetas, etc.

Estes artigos foram recolhidos e acumulados ao longo dos séculos de ocupação europeia na África por exploradores, antropólogos, padres, etc e estão catalogados. São colecções inventariadas e protegidas, hoje em dia expostas em prestigiados museus ao redor do mundo.

Muitos dos grandes museus na Europa e das grandes coleções têm artefactos pertencentes a grandes impérios africanos hoje em dia extintos.

Do reino de Dahomey, onde fica actualmente o Benin, foram roubadas estátuas, jóias e até portas que estão actualmente em França.

No Museu Quan Branly, em Paris, estátuas roubadas no séc. XIX pelas tropas do general Alfred Amedee Dodds estão expostas como se tivessem sido oferecidas. Na verdade o general saqueou o palácio de Abomey, após ter vencido o rei Béhanzi e ter imposto o poder francês no reino, tornado-o assim numa colónia francesa.

 

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Segundo o Benin, existem na França entre 4500 a 6000 objetos pertencentes ao país. Fonte: G1

Nessa mesma época, séc. XIX, a Inglaterra invadiu a actual Etiópia e também levou vários tesouros. Entre os mais célebres está uma coroa de ouro, levada durante a campanha Maqdala 1868.

A campanha Maqdala 1868 tinha como objectivo instituir o domínio britânico na região e após a invasão, o imperador suicidou-se. Richard Holmes foi o responsável por recolher todos os objectos de valor e mantê-los em segurança para mais tarde serem expostos em Museus Britânicos, como acabou por acontecer.

A coroa tem um valor muito grande, pois é um importante símbolo para a Igreja Ortodoxa Etíope. Para além da coroa, foram levadas também outras jóias, manuscritos e até mesmo um menino, o filho órfão do imperador cujos restos mortais permanecem no Reino Unido até hoje, embora a Etiópia já tenha pedido a sua repatriação.

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A coroa está há 146 anos na Inglaterra. Fonte: Victoria & Albert Musuem

O Museu Britânico em Londres, fundado no séx. XVIII, também tem uma vasta colecção de arte africana. No total, são cerca de 200 000 itens de vários pontos do continente, a destacar uma cabeça de latão de um soberano iorubá de Ife (Nigéria) e a ourivesaria asante (Gana) entre outras.

Facto curioso é que este Museu reúne também peças pertencentes ao extinto Império Romano, que desde 1980 são disputadas pela Grécia.

Existe em Portugal o Museu Nacional de Etnologia, que tem raras e preciosas peças africanas. Adicionalmente, existe também a Sociedade de Geografia de Lisboa, as colecções privadas (tanto de particulares como de empresas) ligadas ao comércio colonial e os próprios antiquários que têm vindo a ganhar fortunas com a comercialização de arte africana.

A colecção de Liliane e Michel Durand-Dessert é apenas um exemplo precisamente disso.

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A alma africana no exílio. Fonte: Além Mar

Há décadas que têm sido feitas várias reivindicações no sentido de recuperar o património africano espalhado pelo mundo. No ano passado o presidente francês Emmanuel Macron disse no Burkina Faso que em cinco anos as obras de arte africana em França seriam devolvidas aos seus legítimos donos.

Em África existe uma vontade de recuperar o património perdido. Estima-se que mais de 90% dos artefactos que contam a História da África pré-colonial estejam foram do continente.

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Estatueta Mbembe (Nigéria) da colecção Durand-Dessert. Fonte: Blouin Art Info

Seja em Paris, Londres, Lisboa, Berlim, um pouco por toda a Europa existem milhares de artigos africanos em exposição ou leilão.

No dia 27 de Junho, em Paris, lá estará a nossa História, o nosso património, parte de quem somos, mais uma vez em hasta pública para ser comercializada.

E nós, teremos também de comprar a nossa própria Arte para retorná-la a casa?

 

Carta para Mamoudou

Carta para Mamoudou

Querido Mamadou,

Espero que esta carta te encontre bem.

Diz aos teus colegas que nós, imigrantes, levamos na mala apenas amor. É o amor à vida, à esperança, às possibilidades que nos leva a abandonar tudo e a enfrentar muros, grades e cancelas para entrar em outros países.

É o amor que nos faz limpar o chão e carregar blocos, pondo em risco a nossa própria saúde. E é o amor também que te move e que te levou até Paris.

Imagino o teu desespero ao deparares-te com o cenário: uma criança de apenas quatro ano pendurada de uma varanda e uma multidão de espectadores. Certamente alguém terá ligado aos Bombeiros, à Polícia, enfim, a alguém! É assim nos países onde as coisas funcionam: não precisamos de nos mexer muito, porque sempre vem alguém!

E afinal esse alguém foste tu! Quem diria!

Saíste do Mali ainda adolescente e de lá, ao teu passo, numa saga perigosa, quatro anos depois chegaste a França.

Gosto de pensar que, ao veres aquela criança pensaste “Eu não passei por tudo para ver uma criança a morrer assim!” e graças a ti, ela sobreviveu.

Mamoudou, a tua coragem e altruísmo são inspiradores. Mas temo por aquilo que possam fazer de ti.

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Imigrantes não deviam ter de ser Super-Heróis para merecerem respeito. Fonte: Afropunk

Embora reconheça e aplauda o teu acto heróico, não posso deixar de reconhecer também as teias de poder que te levaram até França, e fizeram de ti um cidadão de segunda-categoria.

O teu anonimato anterior ao episódio viral só evidencia o racismo estrutural em que há na França, onde um jovem imigrante não consegue um emprego digno até demonstrar qualidades super-humanas. Onde a cidadania é reservada apenas aos imigrantes que provarem de forma extraordinária que a merecem. Onde um imigrante africano apenas é digno de aplausos e respeito quando arrisca a sua própria vida para salvar um bebê, mas não quando arrisca a sua própria vida para salvar-se a si mesmo.

A narrativa actual que limita os imigrantes a ladrões, preguiçosos, bandidos é tóxica e racista. A narrativa actual que legitima a xenofobia… É só olharmos para o Brexit, para as políticas de migração na era Trump e para todos os muros que se fazem para impedir-nos de chegar ao Ocidente.

A narrativa que nos divide entre os bons e os maus imigrantes. E como tu Mamoudou, passaste para o lado dos bons. Tu agora já nem sequer és imigrante, és um cidadão francês. Tu agora falas com Presidentes.

Mas cuidado, não deixes que te usem como ferramenta para justificar os seus preconceitos, a sua afrofobia, porque nenhum ser humano, nenhum africano precisa de ser herói para ser bem tratado e ter o seu valor reconhecido.

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Governo Francês negligencia campos de imigrantes em Paris. Fonte: The Washington Post

Tu atravessaste perigos e oceanos, traficantes e ladrões e finalmente chegaste a França. Sem documentos e contando apenas com a generosidade daqueles que, como tu, se alimentavam apenas dos seus sonhos, vivias nos apertados arredores de Paris e aceitavas os poucos (e precários) trabalhos a que tinhas acesso.

Por isso não aceites a hipocrisia e cinismo de quem hoje te acolhe de braços abertos, contudo, aprova políticas repressivas contra imigrantes e especialmente contra imigrantes sem documentos.

Quando vemos um jovem imigrante como tu, muitas vezes é a matar ou a morrer, nunca a salvar ou a nascer.

Quando vemos um jovem imigrante como tu, muitas vezes vemos essa força física exibida de forma selvagem, como um defeito e tu mostraste que essa força física é na verdade um sinal de excelência e fonte de bravura.

Quantas vezes a força física dos corpos negros não foi usada para justificar a nossa exploração? Para deslegitimar as nossas conquistas?

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Mamoudou Gassama ganhou um estágio no Corpo dos Bombeiros de Paris. Fonte: The Guardian

Poucos de nós teríamos conseguido fazer o que fizeste. Poucos, mesmo que conseguíssem, talvez nem o tentassem. Por isso, parabéns!

Tu nos representaste na nossa forma mais nobre, delicada e ao mesmo tempo veloz e forte. Obrigada!

Espero que, na plataforma que agora tens, encontres um espaço para que a tua voz seja ouvida e para que outras vozes, que durante muito tempo foram silenciadas, possam também usá-la para que a sua humanidade seja reconhecida.

Com os melhores cumprimentos e um forte abraço,

Eliana N’Zualo

Monsieur Macron, vamos lá falar!

Monsieur Macron, vamos lá falar!

O Presidente francês fez alguns comentários recentemente sobre o estado actual de África que despontaram grandes debates.

Durante a cimeira dos G20, quando um jornalista da Costa do Marfim perguntou sobre a possibilidade da implementação de um programa em África como o Plano Marshall (Europa) , o Emmanuel Macron afirmou que os problemas enfrentados actualmente pelo continente africano são completamente diferentes, pois são civilizacionais e mais tarde ainda refere-se ao facto de as mulheres terem 7 a 8 filhos como um factor central para o sub-desenvolvimento do continente.

Bem, primeiramente, a taxa de fecundidade a nível do continente é de 4,45 filhos por mulher segundo dados da ONU de 2009. O único país Africano perto do número referido por Macron é o Níger, em que cada mulher tem em média 7,6 filhos.

Depois, vários foram os estudiosos que confirmaram que não é o sobre-povoamento que causa pobreza, mas sim a pobreza que causa sobre-povoamento. Ou seja, sociedades com níveis de literacia baixos e pouco acesso a serviços de saúde de qualidade estão mais predispostas a fazer muitos filhos. Pelo contrário, se esses “muitos filhos” conseguirem viver num ambiente mais propício ao seu desenvolvimento, provavelmente farão menos filhos.

Para além disso, a ideia em como recai na mulher todo o peso do desenvolvimento de um país inteiro é não só machista, como distrai-nos de questionar o papel de políticas imperialistas e neo-colonislistas em vigor nos países africanos.

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Macron não é diferente dos restantes líderes ocidentais. Fonte: This is Africa

Macron, ainda nessa resposta fala no combate à corrupção e em melhor governação.

Nos últimos 50 anos África assistiu a mais de 26 golpes de Estado (ou quase isso) sendo que 16 destes aconteceram em países que tinham sido colónias francesas.

Adicionalmente, até hoje 14 países africanos “francófonos” pagam €440 bilhões anualmente para a França. Estes países devem pagar 85% das suas reservas em moeda estrangeira ao Banco Central Francês.

Ou seja, a política externa da França no que toca aos países africanos mostra que ainda é baseada numa visão colonialista, em que os países “francófonos” são uma extensão do seu território na Europa.

O papel da França no genocídio de Ruanda, no assassinato de Thomas Sankara e mais recentemente na morte de Gaddafi, ainda que por esclarecer, mostra como a França tem agido tendo em conta os seus próprios interesses e não o crescimento e desenvolvimento do continente africano.

Isto evidencia o papel da França no sub-desenvolvimento de África e de África no desenvolvimento da França.

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Por que são tão importantes as ex-colónias africanas para a França? Fonte: Mail & Guardian

A instalibilidade do continente é em grande parte resultado da interferência ocidental em África.

Tudo o que foi dito por Macron – ou grande parte – é verdade, mas não é o problema, não é a doença. São apenas sintomas: Estados descredibilizados; conflitos armados constantes; fraco controle da natalidade; etc.

Estas verdades são a parte material, a parte visível. Mesmo se esses sintomas não estivessem lá teríamos outros, e precisaríamos de ajuda à mesma.

Foi o Ocidente que instalou estes regimes corruptos para melhor manipularem os povos e servirem os seus interesses e depois vêm aqui falar em corrupção e boa governação. Isto para não mencionar as medidas racistas anti-imigração que implementam na Europa para impedir-nos de fugir à Pobreza e miséria.

É muita hipocrisia – ou ignorância – Macron sentar-se no topo da montanha de dinheiro arrancada aos países africanos, com o seu vinho francês e falar de África como um fardo que ele carrega.

Macron não vê os países africanos como parceiros de negócios, mas sim como bebés ricos que precisam de ajuda a gerir os recursos.

Quando a França começar a falar em reparações pelos danos humanos e materiais que causou com a sua ocupação no continente africano; quando a França parar de deixar africanos morrerem no Mediterrâneo em busca de uma vida melhor; quando a França devolver o dinheiro de África que tem nos seus cofres, bem como arte nos seus museus, aí sim vamos falar em “civilização“.

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O problema com o “complexo de salvador branco” em África. Fonte: Ventures Africa

Contudo, a maior decepção acho que foi mesmo para quem aplaudiu e se jubilou com a sua eleição.

Afinal de contas, Emmanuel Macron criou esta imagem carismática, com os seus olhos claros e sorriso fácil. Quebrando protocolo de vez em quando, para lembrar ao público da sua humanidade e sejamos francos, com o oponentes que ele tinha, seria difícil se não tivéssemos caído no seu jogo de sedução.

Mas a verdade é que ele é apenas tão liberal como outro presidente ocidental branco qualquer. Ele provavelmente só não diz as coisas racistas e xenófobas que o Trump diz para não ferir susceptibilidades, mas ri-se das piadas no seu íntimo e agradece por haver alguém que diga essas coisas em voz alta.

Macron não é diferente dos nossos amigos estrangeiros, brancos, imigrantes (ou talvez diria expatriados)  vindos do Ocidente que adoram África e contam histórias fantásticas de todos os países africanos que visitaram e do trabalho que as ONGs para quem trabalham/ trabalharam faz e até lêem Chimamanda Adichie ou Chinua Achebe porque “literatura africana é fascinante”.

Mas esses nossos amigos vivem nos melhores bairros das nossas cidades; recebem muito acima da média e têm regalias que lhes permitem viver de forma luxuosa, mesmo no meio de tanta Pobreza e sendo a ‘voz dos desfavorecidos’.

Ao jantar com amigos falam das decepções de viver num país em que nada funciona e em que não se pode confiar sequer na polícia, e levam as empregadas fardadas aos restaurantes enquanto discutem os direitos das mulheres.

Macron se encaixaria perfeitamente nessas conversas e provavelmente falaria da crise da caça furtiva e da pena que é ir aos safaris e não ver elefantes. Falaria também do quão gosta da comida local e da hospitalidade onde quer que vá, mas jamais faria a relação entre isso e a cor da sua pele.

Enfim, Emmanuel Macron, aquele amigo europeu branco que contribuiu 1 dólar para uma ONG qualquer, daquelas com fotos de crianças mal nutridas nas assinaturas dos emails para limpar a sua alma da culpa que o seu capitalismo e condescendência lhe trazem.