O que é que eu vou fazer com essa Liberdade? – parte II

O que é que eu vou fazer com essa Liberdade? – parte II
Reflexões em torno da Estátua da Liberdade, em Nova Iorque
Foi numa manhã fria de domingo e Nova Iorque já tinha perdido o seu encanto mas eu queria ver muito aquela mulher.
Olhava os arranha-céus, ouvia os pássaros e sentia aquele vento gelado na minha cara e pensava na Liberdade.
Como seria a Liberdade se de facto existisse? O que diria? Que histórias contaria?
Pensava na Liberdade a falar da ironia que era o tal debate sobre a escravatura nos E.U.A na altura da sua colocação em Nova Iorque enquanto, em simultâneo, nós em África continuávamos a viver sobre o violento regime do Colonialismo.
Ela dir-me-ia que não se sentia nada bem com aquilo e que a vontade dela era de sair a correr para o nosso socorro, mas que a corrente no pé a impedia.
Ela falaria de França e dos franceses, das colónias e dos massacres.
Iríamos tomar um chá, talvez. E ela me confessaria que tinha muita vontade de nos conhecer em África e não ali, e que queria sentir o ar quente do Índico. Que também queria ser deixada em paz e de viver a sua longa vida longe de visitas constantes.
Olhei para a a Liberdade, tão idolatrada e isolada, e ao mesmo tempo distante e desconhecida. As pessoas que lhe chegavam perto quase não a tocavam, não a compreendiam.
E ela ali parada, imóvel e acorrentada.
Foi numa manhã fria de domingo e Nova Iorque já tinha perdido o seu encanto mas eu queria ver muito aquela mulher.
Na verdade eu só conseguia pensar nela.
Estava mesmo obcecada, ansiosa pelo momento em que o meu olhar e o olhar dela se cruzariam.
Queria conversar com ela.
Queria levá-la comigo pela mão. Eu e a Liberdade juntas teríamos uma tribo, ou um exército, não sei, qualquer coisa. Juntas iríamos conquistar o mundo. Mas espera, como pode a Liberdade conquistar o mundo? Não é contra-intuitivo a Liberdade se impôr? Conquistar?
O que é que eu vou fazer com essa tal Liberdade?

O que é que eu vou fazer com essa tal Liberdade?

O que é que eu vou fazer com essa tal Liberdade?
Reflexões em torno da Estátua da Liberdade, em Nova Iorque
Foi numa manhã fria de domingo e Nova Iorque já tinha perdido o seu encanto mas eu queria muito ver aquela mulher.
Eu não queria saber dos Museus com as suas narrativas coloniais e imperialistas, muito menos das obras de arte roubadas. O que eu queria era ver aquela mulher: Liberdade.
Tanto dela se falava, tanto dela se imaginava, mas pouco dela se via.
Foi numa manhã fria de domingo e Nova Iorque já tinha perdido o seu encanto, mas eu só pensava naquela mulher.
Então a ela me dirigi.
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A Estátua da Liberdade não teria sido concebida ou construída se os principais defenders na França e nos EUA não fossem abolicionistas que entendiam a relação entre a Escravatura e a Guerra Civil Americana. Fonte: Black Statue of Liberty | NPS
Não é possível falar de Nova Iorque sem falar em raça – a menos que se seja insensível à cor. A cidade de Nova Iorque é um espaço altamente racializado, em que por exemplo no centro pouco se vêem negros e os que se vêem ocupam na sua maioria posições de servitude (empregados de mesa; motoristas; porteiros; etc). Mas podemos falar disto num outro dia.
Importa falarmos de raça aqui porque nessa fria manhã de domingo eu e outras meninas africanas negras fomos ver a estátua e um jovem senhor, enquanto esperávamos o transporte para lá, aproximou-se de onde estávamos e começou a conversar connosco.
Ele era negro. Nós eramos as outras únicas pessoas negras naquele local.
Depois daquelas perguntas típicas sobre a origem da nossa melanina, o senhor, um homem negro nova iorquino, partilhou tudo o que sabia sobre a estátua.
“Did you know that the Statue of Liberty is a black woman?/ Vocês sabiam que a Estátua da Liberdade é uma mulher negra?” – perguntou, e após a nossa cara de surpresa, ele começou a contar-nos como a Estátua da Liberdade tinha sido concebida pelos franceses com o intuito de alargar o debate sobre a Liberdade, especialmente num contexto em que predominava ainda o sistema escravagista nos EUA.
De facto foi um abolicionista francês, Edouard de Laboulaye que idealizou a estátua e os desenhos iniciais tinham sido inspirados nas mulheres egípcias pelo escultor Auguste Bartholdi.
Os abolicionistas norte-americanos, através das suas campanhas de advocacia e angariação de fundos para o monumento e para a libertação de outras pessoas escravizadas conseguiram por fim, que a estátua chegasse a Nova Iorque.
Nao fosse pelos abolicionistas, um dos maiores pontos turísticos de Nova Iorque sequer existiria.
Era uma manhã fria de domingo e Nova Iorque já tinha perdido o seu encanto, e enquanto ele falava de forma tão apaixonada sobre os povos negros nos EUA, eu pensava em todos os afro-americanos (ou negro- americanos)
“The chain on her feet represents the things that bring us down/ A corrente no pé representa aquilo que nos deita pra baixo”, continuava ele entusiasmado pela atenção que lhe dávamos.
E de facto, a Liberdade continua acorrentada. Quando a vi lá, sozinha e abandonada naquela ilha, rodeada de turistas que não sabiam da sua História, coberta do seu verde nada negro, pensei comigo mesma: Liberdade para quê e para quem?

Yaa Gyasi pelo Povo Negro

Yaa Gyasi pelo Povo Negro

O livro “Homegoing” de Yaa Gyasi é um manifesto gritante pela vivência, coragem e preserverança do povo negro.

Não sei exactamente se podemos falar de um “povo negro”, mas o livro de Yaa Gyasi faz um argumento bem interessante sobre essa experiência de trauma, conflito e esperança partilhada que as pessoas negras de todo o mundo têm entre si.

Há livros que terminamos de ler e olhamos para o tecto, com o coração cheio e a certeza que levará muito tempo até lermos um livro tão bom novamente. Homegoing é tudo isso e muito mais!

O livro atravessa séculos e continentes seguindo sete gerações da mesma família.

Tudo começa com duas irmãs, separadas por um grande incêndio e criadas por comunidades distintas – uma pelos Fante e outra pelos Asante – que desconhecem a existência uma da outra e seguem as suas vidas separadas.

Effia casa-se com um oficial britânico, que vive do comércio de africanos escravizados no Castelo da Costa do Cabo e, Esi que é capturada e levada para a masmorra desse mesmo castelo e eventualmente traficada para os Estados Unidos da América, onde é escravizada.

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O livro segue os sonhos e pesadelos das suas irmãs. Fonte: The New York Times

A narrativa segue por ordem cronológica os encontros e desencontros das ramificações dessa família. O fogo, uma presença constante ao longo da história, representa todos os traumas, sacrifícios, dores e alegrias que atravessam os descendentes das duas irmãs.

Em cada capítulo conhecemos um novo rosto, numa nova época, e com isso as mudanças sociais, económicas e culturais tanto no Gana como nos Estados Unidos da América: a escravatura; o colonialismo; o racismo; etc.

“The family is like the forest: if you are outside it is dense; if you are inside you see that each tree has its own position./ A família é como uma floresta: se você está do lado de fore é densa; se você está do lado de dentro, você vê cada árvore na sua própria posição”

A história força-nos a olhar para nós mesmos e para o nosso papel na teia de relações em que estamos inseridos, tanto no tempo como no espaço.

Que segredos e traumas carregamos no nosso DNA? O que teria sido de mim se fosse eu nesse lugar?

Pelo olhar dos personagens, fica evidente como o legado da escravatura e do colonialismo, ditam o decorrer da vida, tanto do lado dos que foram para as Américas, como para aqueles que ficaram em África.

Primeiro as guerras tribais no Gana pré-colonial, no séc. XVIII, os horrores da ocupação britânica e do comércio de africanos escravizados; a promiscuidade entre os líderes ganenses e os britânicos no tráfico de humanos para alimentar a escravatura até à libertação do Gana.

Depois, o sofrimento e dor desses africanos traficados nos Estados Unidos da América, longe daquilo que és é familiar e despidos de toda a dignidade. A fuga, o medo e as perseguições nos anos pré e pós Guerra Civil Americana. O racismo e todos os riscos aliados à vida nos subúrbios das grandes cidades.

Tudo isto tendo o povo negro no centro de todos estes acontecimentos.

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No Castelo da Costa do Cabo de onde partiam os africanos, no Ghana, ainda ecoam as suas vozes. Fonte: The Guardian

Não há dúvidas que a obra envolveu um trabalho árduo de investigação, mas mais do que isso, que obrigou a autora, de origem ganesa, a confrontar-se com os seus próprios fogos, a sua própria origem.

Yaa Gyasi consegue guiar-nos nessa viagem de forma confortável, com as descrições fiéis ao mínimo detalhe, levando-nos à África Ocidental do séc. XVII, ao Sul dos E.U.A. no séc XIV e ao bairro de Harlem no séc. XX, terminando novamente no Gana, mas desta vez no séc. XXI.

“Every moment has a precedent and comes from this other moment, that comes from this other moment, that comes from this other moment./ Cada momento tem um precedente que vem de um outro momento, que vem de um outro momento, que vem de um outro momento.” – Yaa Gyasi

É de aplaudir a ambição de Yaa Gyasi, em re-imaginar os processos históricos e as escolhas de cada indivíduo, de cada árvore, que por sua vez, desencadeia outras reacções e como essas escolhas influenciam toda a comunidade, toda a floresta.

Ela junta-se a Chimamanda Adichie e a outras autoras africanas contemporâneas que fazem uso da História, da tradição oral africana e das vivências reais de pessoas negras para dar protagonismo a estas figuras.

A riqueza, cor e textura das suas palavras tornam esta saga familiar numa experiência universal, de busca por auto-conhecimento, por respostas e sobretudo, por origens. Só podemos evoluir, como indivíduos e como comunidade, se soubermos de onde viemos.

Por que importam as políticas afirmativas?

Por que importam as políticas afirmativas?

Recentemente nos Estados Unidos da América tem havido um debate sobre políticas afirmativas no que toca às admissões em Universidades, que de alguma forma podem estar a prejudicar os cidadãos americanos descendentes de asiáticos.

No centro do debate está a questão da necessidade de tais políticas e dos beneficiários.

Mas afinal de contas, o que são políticas afirmativas?

As políticas afirmativas são mecanismos usados para promover a inclusão e/ou protecção de um determinado grupo social que de outra forma, seria excluído e/ou privado de exercer um determinado direito. Geralmente as políticas afirmativas são direcionadas a afrodescendentes; mulheres; homossexuais, idosos; portadores de deficiência; etc.

Estes grupos são tratados de forma desigual em diversos sectores, e por isso as políticas afirmativas visam reparar essas disparidades de modo a criar condições para, a longo prazo, não ser preciso reafirmar os seus direitos.

 

Numa sociedade desigual em que há disparidades entre os diferentes grupos não podemos ignorar que a Constituição por si só é insuficiente para proteger todos os cidadãos.

Bem sabemos que há grupos distintos que sofrem violências diárias e não são protegidos pela Lei, e por isso é preciso criar outras leis para protegê-los e colocá-los em pé de igualdade com os restantes grupos sociais.

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As acções afirmativas no mercado de trabalho. Fonte: JUS

Por exemplo, em 1984 a União Europeia incentivou a inclusão e participação das mulheres no mercado de trabalho, em todos os sectores profissionais e em todos os níveis de liderança.

Desde então todos os Estados Membros têm criado mecanismos não só para encorajar a participação das mulheres, tais como por exemplo premiar empresas, como também para aproximar os salários de homens e mulheres.

A Índia, por sua vez, na primeira metade do séc. XX, aquando da sua independência introduziu um sistema de quotas para garantir acesso a empregos públicos e vagas em universidades a castas desprivilegiadas.

Este ano foi eleito um presidente Dalit, com 65% dos votos, Ram Nath Kovind, que segundo a cultura indiana é a casta mais inferior, dos ‘intocáveis’.

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Implementar políticas afirmativas é negar o princípio de igualdade?

Não, pelo contrário, é admitirmos que existem sim desigualdades e ignorar essas diferenças na nossa sociedade seria admitirmos a nossa cumplicidade com a perpetuação dos modelos actuais.

Se não encararmos a realidade corremos o risco de assistir, tal como aconteceu em séculos passados e começa agora a reaparecer, a manifestações explícitas de intolerância e preconceito. Estas manifestações são levadas a cabo sobretudo por grupos privilegiados  que pretendem manter o status quo, deixando os grupos marginalizados aquém do seu potencial de desenvolvimento.
Por outro lado, há que reconhecer a necessidade de oferecer equidade.

Cada cidadão cresce e se desenvolve num determinado grupo, onde tem acesso a certas oportunidades. Um cidadão que é educado em escolas privadas, nas férias viaja para o exterior; tira cursos de inglês na infância; tem acesso a computadores e internet, já tem uma vantagem na Universidade quando comparado a um cidadão que sempre estudou em escolas públicas, com pouco acesso a outras realidades ou línguas.

Por isso as políticas afirmativas procuram compensar essas circunstâncias que afectam aqueles em desvantagem, criando mais equidade.

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Existe meritocracia numa sociedade desigual? Fonte: Estadão

Por exemplo, um pouco por todo o mundo há que aceitar que existem grupos sistematicamente excluídos do mercado de trabalho, como é o caso dos portadores de deficiência física.

Quando foi a última vez que você viu uma professora com deficiência física? Quantas médicas você conhece que sejam portadores de uma deficiência física?

Talvez se houvesse uma política de afirmação que garantisse a este grupo o acesso a educação superior e/ou o acesso ao emprego, poderíamos ver estas pessoas a ocupar tais postos.

Finalizando, a razão de existir das políticas afirmativas é aumentar as oportunidades para cidadãos historicamente discriminados. As políticas servem para equiparar todos os cidadãos, de forma a assegurar uma vida digna a todos.