Tituba, a sobrevivente

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Foi em 1692, na vila de Salem (Massachuttes, EUA) que uma onda de histeria levou perto de 300 pessoas, na sua maioria mulheres, a serem condenadas à morte por enforcamento, em decorrimento de acusações de bruxaria. Este episódio ficou conhecimento como o julgamento das “Bruxas de Salem”.

A primeira bruxa a ser acusada – e chamo-lhe assim porque ela assim o quer/ quis – foi Tituba, uma mulher negra escravizada de origem caribenha que era propriedade de um pastor da vila.

Tituba foi obrigada a confessar o seu crime. Excertos dessa confissão, retirados dos Arquivos do Condado de Essex estão no livro perfeitamente contextualizados.

É através desse testemunho que Condé devolve a Tituba a sua voz e o seu lugar na História. Esse é o único registo da existência de Tituba que vezes sem conta ouve dos seus antepassados: Tu serás a única a sobreviver.

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A escrita de Maryse Condé poderosa. Fonte: Afroliteraria

No livro “Eu, Tituba: Bruxa Negra de Salem”, Maryse Condé oferece-nos uma espécie de auto-biografia ficcional (e não serão todas as auto-biografias ficcionais?) em que Tituba, na primeira pessoa, descreve-nos os acontecimentos desde o seu nascimento até aos seus últimos dias, passando, obviamente pelas acusações de bruxaria em Salem.

Tituba não nega ser bruxa, pelo contrário, assume e se vangloria disso. É através da sua arte, da bruxaria, que se conecta com a sua ancestralidade (as suas mães e o seu pai), é também através da bruxaria que ela se conecta com o corpo, usando-se da natureza para fazer remédios.

Mas rapidamente percebe que essa palavra – bruxa – assume definições variadas e deturpadas.

O que é uma bruxa?

Percebi que em sua boca a palavra estava manchada de degradação. Como é isso? Como? A faculdade de se comunicar com os invisíveis, de manter um laço constante com os finados, de cuidar, de curar, não era uma graça superior da natureza a inspirar respeito, admiração e gratidão? Por consequência, a bruxa, se desejam assim nomear aquela que possui essa graça, não deveria ser adilada e reverenciada em vez de temida?

O entendimento da Tituba quanto a religião é como o de uma criança já que, tendo sido criada por uma velha bruxa, Mamã Yaya, ela cresceu longe das noções cristãs do mundo. Foi só ao casar-se que se deparou, pela primeira vez, com o Cristianismo.

Esse olhar virgem sobre o Cristianismo, expõe a sua ridicularidade. Se por um lado, é uma religião que adora um Deus misericordioso e justo, por outro, é também a religião que rouba, captura e tortura territórios e corpos negros.

A própria Tituba, fruto da violação que a sua mãe sofreu por um marinheiro branco quando foi raptada do Reino Ashanti e levada para Barbados, representa essa hipocrisia característica do cristianismo quando lhe é negada a própria humanidade. O seu próprio valor enquanto ser humano é questionado na sua posição de mulher negra escravizada.

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Tituba era uma mulher escravizada e foi uma das primeiras acusadas. Fonte: Aventuras na História

Ao longo do livro somos levados a encarar essa dicotomia típica do cristianismo: o sagrado vs. o profano. o branco vs. o preto. o deus vs. o diabo. o mestre vs. o escravo. o homem vs. a mulher

A palavra bruxa, usada para ofender mulheres que desafiam as normas daquela sociedade, não assusta Tituba.

Num contexto em que as mulheres eram proibidas de sair, de pescar, de caçar, aquelas que desafiavam sair do confinamento do espaço doméstico, eram vistas como endemoniadas.

E porque esse comportamento influenciava outras mulheres, estas eram mesmo bruxas e estavam a enfeitiçar as demais mulheres, desvirtuando as sociedades, semeando discórdia e desordem nas famílias.

E não é assim hoje? Tal como foi em 1692…

Tituba se orgulha em ser uma mulher conectada com o mundo físico e espiritual e capaz de usar dessa conexão para curar-se a si e àqueles à sua volta. Ela atrevia-se a contar as histórias dos seus, as fábulas e mistérios. Tituba recusa-se a abandonar a sua identidade ou a envergonhar-se ela, como era suposto acontecer durante a Escravidão.

Para além disso, era uma mulher que ‘amava o amor’, se entregando ao prazer livremente seguindo as suas vontades,  sem qualquer pudor e até contrariando os conselhos das duas mães.

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Através do relato ficcionado de Tituba tiramos da invisibilidade racista muitas personagens históricas. Fonte: Letras Pretas

As mães de Tituba representam essa energia feminina ancestral que reside em cada uma de nós. Essa energia que por vezes nos isola (mãe Abena) e por outras nos acolhe (Mamã Yaya).

A energia da qual herdamos os maiores traumas e as maiores lições: de sobrevivência, de solidariedade, de vida, de cura.

Ao longo do livro vemos essa conexão de Tituba a outras mulheres, de todas as idades, raças e classes sociais.

Condé ao conectar-se com Tituba está também a conectar-se à sua linhagem, às mulheres que abriram o caminho para que ela existisse hoje. Ou seja, é também bruxa mantendo viva a arte ancestral de contar histórias, partindo da tradição oral para a escrita, da memória para a ficção, usando a bruxaria como meio de sobrevivência.

 

 

 

 

 

 

Será que eu sou uma bruxa?

Será que eu sou uma bruxa?

Ou “A história de como descobrir a bruxa que há dentro de nós”.

O filme “Eu não sou uma bruxa“, da realizadora zambiana Rungano Nyoni, traz-nos a história de uma menina que dá por si assumindo-se como bruxa num campo de bruxas.

Shula é apenas uma tímida criança que, com provas circunstanciais é acusada de bruxaria pelos habitantes da vila por onde vagueia, sozinha. As autoridades locais são chamadas a intervir e Shula é rapidamente enviada para um campo de bruxas, onde é acolhida por mulheres bem mais velhas, que a recebem de braços abertos. No fim da festa de boas-vindas ela é confrontada com um dilema: ou aceita ser bruxa e ficar no campo ou rejeita a bruxaria e transforma-se numa cabra.

Sem ferramentas para provar a sua inocência nem para os outros e nem para si, a pequena Shula aceita.

No campo, as mulheres são obrigadas a cultivar a terra e a posar para turistas que as visitam. Shula recebe delas o amor maternal que não tem em mais nenhum local.

Por algum tempo as coisas parecem correr bem.

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O filme é inspirado nos campos de bruxas da Zâmbia e Gana. Fonte: Independent

Num mundo em que o Cristianismo se diz dono da verdade, as formas de expressão de espiritualidade tradicionalmente africanas são demonizadas e é neste contexto em que se cria estigma e rejeição em relação a pessoas que são vistas como bruxas.

A disputa pela fé é incessante.

Numa caricata cena, Shula é colocada como juíza numa espécie de tribunal local em que um velho homem procura o ladrão do seu dinheiro. Todos os homens jovens são tidos como suspeitos e dizem-se inocentes. Shula tem de identificar o ladrão, então pede ao oficial do Governo que a acompanha que ligue a uma das mulheres no campo.

Esta mulher, uma das avós, diz-lhe para escolher o homem que for mais escuro e mais nervoso. E, curiosamente, confirma-se que esse é de facto o ladrão.

Sorte? Coincidência? Bruxaria?

Ninguém sabe.

Os poderes de Shula são requisitados por todo o lado e ela é vista como a galinha de ovos de ouro, já que a sua bruxaria é tão poderosa.

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Shula, de apenas nove anos tem um dilema para enfrentar. Fonte: Berlin Feminist Film Week

Mas antes de tudo, o que é afinal ser bruxa?

Ela será bruxa porque anda sempre sozinha? Será bruxa por não se fazer ouvir?

Que caminhos terão levado aquelas velhas para o campo de bruxas? Por que são as bruxas tão perigosas?

Shula vai descobrir tudo isto à medida que o mundo se vai revelando a si. Com a sua infantil e limitada visão do que acontece ao seu redor, as alegrias e tristezas de carregar consigo essa denominação vão mudar tudo para si.

No filme há constantes dicotomias em disputa.

A mais óbvia é a relação que a comunidade em geral tem com a bruxaria. Mesmo os mais cépticos vêem-se incomodados com a possibilidade de haver de facto esse poder.

Se por um lado não querem as bruxas por perto, por outro os habitantes recorrem às bruxas para resolver casos de roubos e outros mistérios.

Como não acreditar em bruxas num meio carregado de superstições?

E mais do que isso, como curar as bruxas do seu fatídico destino sem cometer bruxarias, lançando maldições contra elas?

Outra dicotomia é o Feminino e o Masculino.

A percepção é sempre como a mulher é a fonte de todo o mal. Ela é a causadora dos problemas da sociedade, e o homem, pelo contrário é visto como o dono incontestável da verdade.

A misoginia está em quase todo o lado, mas na sua manifestação mais gritante, vemos os bruxos a circularem livremente, inclusivamente providos de algum prestígio enquanto as mulheres bruxas são obrigadas a viver isoladas da sociedade. Um exemplo claro é o bruxo que aparece para comprovar o facto de Shula ser de facto uma bruxa.

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Através do humor e sarcasmo, somos confrontados com vários tipos de opressão. Fonte: BFI

Entre o real e o fantástico, Rungano Nyoni descreve-nos tudo o que Shula sente na sua mudez sempre presente.

Uma criança bruxa que não pode circular livremente no mundo, mas que ao mesmo tempo é chamada para resolver problemas como a seca na sua região.

Uma criança bruxa que não vai à escola, mas que ouve os professores de longe e sonha com as brincadeiras ao recreio.

Uma criança obrigada a escolher entre ser uma bruxa ou morrer como uma cabra.