Escolher o Terceiro Mundo

Por que muitos de nós voltaram e alguns nem sequer partiram?

Quando dizemos que somos de um país do Terceiro Mundo, parece que as perspectivas e expectativas que as pessoas têm para nós se fecham.

Primeiro vem a piedade. Apesar de essa denominação ter mudado para “países em desenvolvimento”, ambos os conceitos carrega consigo o mesmo estigma e miséria. Depois da piedade vem a pergunta “E como é viver aí?” ou pior “Por que é que vives aí?”

Por mais estranho que pareça, ainda que haja oportunidades para sair, há quem queira ficar. Ou quem saia e regresse – como eu.

Viver no Terceiro Mundo é diferente de viver no Primeiro Mundo. Essencialmente viver num país em desenvolvimento significa que temos as nossas opções mais limitadas.

Os elementos fundamentais para a sobrevivência de uma determinada comunidade, tais como água; comida; roupa; educação; saúde; electricidade; etc são mais escassos. Também não temos infraestruturas que facilitem a distribuição destes bens, criando um fosso entre as zonas que têm os recursos e aquelas que não têm.

Para além disso, geralmente os países do Terceiro Mundo são famosos pelos altos níveis de corrupção e falta de transparência (e competência) das lideranças.

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Fim do terceiro mundo? Fonte: World Bank
Para quem, como eu, já teve o privilégio de sair e viajar para alguns países eu posso com toda a certeza dizer: há vários Terceiros Mundos. Há países semi-industrializados com um rendimento médio perto da média mundial e há países em conflitos, em bancarrota que são do Terceiro Mundo.
Moçambique, Tailândia e Brasil são países completamente diferentes, mas todos eles estão nessa categoria. Há um espectro enorme de pobreza (e riqueza), mesmo dentro de cada um desses países. Em termos materiais há pobres com casa própria, e ricos sem casa própria. Há ricos desempregados e pobres que trabalham todos os dias.
As pessoas pensam que o sonho de qualquer pessoa de um país em desenvolvimento é fugir, mas isso não é verdade. Há quem seja muito feliz aqui.
De longe parece que nós vivemos muito mal e que não temos qualidade de vida. Parece que o estilo de vida do Primeiro Mundo é a forma correcta de se viver e que nós queremos apenas mimicar isso.
Contudo, a verdade é que o Primeiro Mundo também não é perfeito. Nós sabemos que saindo daqui para viver num país dito desenvolvido não quer necessariamente dizer que os nossos problemas serão eliminados.
O que distingue o Primeiro e o Terceiro Mundo é a proximidade e atenção que se dá à Pobreza. No seu blog, Seth Godin, explica que são esses factores que estão na base desses conceitos.
Nós sabemos que em todos os países existe pobreza, embora no Primeiro Mundo esteja mais camuflada. Para além disso, ir para o Primeiro Mundo muitas vezes significa enfrentar racismo, choque cultural e afastamento da família, para além de todos os entraves institucionais (acesso a saúde; documentação; emprego; etc).
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Criminalização de sem-abrigo avança pela Europa. Fonte: Público
As pessoas chocam-se com a alegria e felicidade de pessoas do Terceiro Mundo, daí todo o sucesso da pornografia da pobreza. Mas não devia ser tão difícil assim entender que as pessoas podem ser felizes na sua realidade, mesmo se essa realidade parecer insuportável.
Muitos de nós adoram a vida que levam e acreditam que aquilo que fazem irá fortalecer e melhorar as condições de vida. Muitos de nós adoram a forma tradicional/ convencional de fazer as coisas, e isso vai desde algo tão simples como levar a loiça (que a maioria das pessoas faz manualmente) até algo maior como celebrar um casamento, em que incorporamos a cerimónia do lobolo.
Eu alegro-me ao saber que, apesar de os nossos hospitais e do sector de saúde como um todo estar cheio de insuficiências, todos os anos milhares de estudantes se candidatam ao curso de Medicina.  
Alegro-me ao perceber que, mesmo sem salas de aula ou carteiras, os professores todos os dias acordam para ensinar  o B-A-BÁ aos seus alunos. 
Alegro-me ao pensar que, mesmo sem dinheiro para comprar uma mochila ou cadernos para as crianças, os pais inscrevem os seus filhos na escola.
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Maputo é uma cidade viva e hospitaleira. Fonte: Alma de viajante
 
Existem muitas, muitas razões para ficar aqui. O sentido de pertença e de comunidade é muito forte, talvez mais forte que o descontentamento com a falta de escolhas.
Eu não trocaria a minha manga saborosa, suculenta, comprada na rua pela manga artificial e cheia de água, cortada e embalada, do supermercado. Não trocaria isso pelas ruas limpas e organizadas do Primeiro Mundo, porque as pessoas são mais impacientes, intolerantes e materialistas.

Apesar dos problemas de acesso à saúde; da escassez de boas opções de escolas; e das péssimas condições urbanas, de habitação e saneamento, eu adoro a vantagem de poder sorrir, abraçar e conversar com virtualmente qualquer pessoa, adoro a força e perseverança das pessoas ao meu redor e do sentimento de conquista global quando um único indivíduo se sai vitorioso.