EU ESCOLHI VIVER

Deitei fora o meu batom roxo,
aquele roxo dormente do meu olho inchado
sobre a almofada encharcada de dores secretas,
na constante esperança de reconciliações incertas.

Não quero mais o sapato vermelho,
daquele sangue que manchava a minha face,
enquanto gritava por socorro
e os vizinhos se encondiam.
Não ouviam.
As minhas tias se riam.

Ninguém lhes disse que tínhamos pés
e não raízes a tocar o chão.
Ninguém lhes contou que havia diferença
entre violência e paixão.

Eu escolhi viver.

Eu escolhi viver sem a água salgada
das minhas lágrimas a embalar os meus filhos,
num barco de papel sem destino.

Eu escolhi viver sem a culpa pesada
do véu e grinalda,
do beijo e a chapada.

Desculpem-me,

#EuEscolhiViver.

Por onde andas Paulina?

Por onde andas Paulina?

Os homens de caneta na mão enchem as prateleiras empoeiradas das livrarias moribundas.
Os enviados de Deus vendem conhecidas soluções a problemas antigos.
E nada dos teus livros!

Paulina! Paulina!
Choro. Imploro. Grito.

Nas ruas, entre livros adormecidos sobre as raízes teimosas no concreto quebrado,
as páginas soltas de romances à espera de um final feliz me consolam.

Percorro a cidade numa dança frenética batendo em todas as portas à tua procura.

Alguém viu Paulina? Paulina está?

Os meus pés mexem-se ao ritmo de um batuque de esconjuro. Eu corro. Salto. Ando. Tropeço. Caio.

Silêncio.

No fim, uma voz diz-me:
Estou aqui! Estou aqui!

Andava mesmo a pensar em ti.

Poesia no Feminino

Poesia no Feminino

SÓYA (Conceição Lima)

Há-de nascer de novo o micondó —
belo, imperfeito, no centro do quintal.
À meia-noite, quando as bruxas
povoarem okás milenários
e o kukuku piar pela última vez
na junção dos caminhos.

Sobre as cinzas, contra o vento
bailarão ao amanhecer
ervas e fetos e uma flor de sangue.

Rebentos de milho hão-de nutrir
as gengivas dos velhos
e não mais sonharão as crianças
com gatos pretos e águas turvas
porque a força do marapião
terá voltado para confrontar o mal.

Lianas abraçarão na curva do rio
a insónia dos mortos
quando a primeira mulher
lavar as tranças no leito ressuscitado.

Reabitaremos a casa, nossa intacta morada.

MOÇA DAS DOCAS (Noémia de Sousa)

Somos fugitivas de todos os bairros de zinco e caniço,
Fugitivas das Munhuanas e dos Xipamanines,
viemos do outro lado da cidade
com nossos olhos espantados,
nossas almas trancadas,
nossos corpos submissos escancarados.
De mãos ávidas e vazias,
de ancas bamboleantes lâmpadas vermelhas se acendendo,
de corações amarrados de repulsa,
descemos atraídas pelas luzes da cidade,
acenando convites aliciantes
como sinais luminosos na noite,

Viemos…
Fugitivas dos telhados de zinco pingando cacimba,
do sem sabor do caril de amendoim quotidiano,
do doer de espádua todo o dia vergadas
sobre sedas que outros exibirão,
dos vestidos desbotados de chita,
da certeza terrível do dia de amanhã
retrato fiel do que passou,
sem uma pincelada verde forte
falando de esperança,

Viemos…
E para além de tudo,
por sobre Índico de desespero e revoltas,
fatalismos e repulsas,
trouxemos esperança.
Esperança de que a xituculumucumba já não virá
em noites infindáveis de pesadelo,
sugar com seus lábios de velha
nossos estômagos esfarrapados de fome,
E viemos….
Oh sim, viemos!
Sob o chicote da esperança,
nossos corpos capulanas quentes
embrulharam com carinho marítimos nómadas de outros portos,
saciaram generosamente fomes e sedes violentas…
Nossos corpos pão e água para toda a gente.

Viemos…
Ai mas nossa esperança
venda sobre nossos olhos ignorantes,
partiu desfeita no olhar enfeitiçado de mar
dos homens loiros e tatuados de portos distantes,
partiu no desprezo e no asco salivado
das mulheres de aro de oiro no dedo,
partiu na crueldade fria e tilintante das moedas de cobre
substituindo as de prata,
partiu na indiferença sombria da caderneta…

E agora, sem desespero nem esperança,
seremos em breve fugitivas das ruas marinheiras da cidade…

E regressaremos,
Sombrias, corpos floridos de feridas incuráveis,
rangendo dentes apodrecidos de tabaco e álcool,
voltaremos aos telhados de zinco pingando cacimba,
ao sem sabor do caril de amendoim
e ao doer do corpo todo, mais cruel, mais insuportável…

Mas não é a piedade que pedimos, vida!
Não queremos piedade
daqueles que nos roubaram e nos mataram
valendo-se de nossas almas ignorantes e de nossos corpos macios!
Piedade não trará de volta nossas ilusões
de felicidade e segurança,
não nos dará os filhos e o luar que ambicionávamos.
Poedade não é para nós.

Agora, vida, só queremos que nos dês esperança
para aguardar o dia luminoso que se avizinha
quando mãos molhadas de ternura vierem
erguer nossos corpos doridos submersos no pântano,
quando nossas cabeças se puderem levantar novamente
com dignidade
e formos novamente mulheres!

VIERAM MUITOS (Ana Paula Tavares)

“A massambala cresce a olhos nus”

Vieram muitos
à procura de pasto
traziam olhos rasos da poeira e da sede
e o gado perdido.

Vieram muitos
à promessa de pasto
de capim gordo
das tranqüilas águas do lago.

Vieram de mãos vazias
mas olhos de sede
e sandálias gastas
da procura de pasto.

Ficaram pouco tempo
mas todo o pasto se gastou na sede
enquanto a massambala crescia
a olhos nus.

Partiram com olhos rasos de pasto
limpos de poeira
levaram o gado gordo e as raparigas.

E ASSIM PASSAMOS A TARDE (Cecília Meireles)

E assim passamos a tarde
conversando coisas banais,
da superfície do mundo.

E estamos cheios de mistérios
que não comunicamos.
E assim morreremos, decerto.
E não dais por isso.

SONHO (Beatriz Nascimento)

Seu nome era dor
Seu sorriso dilaceração
Seus braços e pernas, asas
Seu sexo seu escudo
Sua mente libertação
Nada satisfaz seu impulso
De mergulhar em prazer
Contra todas as correntes
Em uma só correnteza
Quem faz rolar quem tu és? Mulher!…
Solitária e sólida
Envolvente e desafiante
Quem te impede de gritar
Do fundo de sua garganta
Único brado que alcança
Que te delimita
Mulher!
Marca de mito embotável
Mistério que a tudo anuncia
E que se expõe dia-a-dia
Quando deverias estar resguardada Seu ritus de alegria
Seus véus entrecruzados de velharias Da inóspita tradição irradias
Mulher!
Há corte e cortes profundos
Em sua pele em seu pelo
Há sulcos em sua face
Que são caminhos do mundo
São mapas indecifráveis
Em cartografia antiga
Precisas de um pirata
De boa pirataria
Que te arranques da selvageria
E te coloque, mais uma vez,
Diante do mundo
Mulher.

Poemas Africanos para dias de frio

Poemas Africanos para dias de frio

Nos dias que correm, em que a brisa do mar bate forte como o rajar das ondas e as árvores abanam-se ao ritmo rápido do batucar do Tempo, nada melhor que poesia para acalmar a alma.

A poesia, o jogo das palavras, a dança sensual entre o sentir e o escrever ainda consegue transcrever o bater do coração poético em palavras. Hoje deixo a arte de falar escrevendo a eles, os poetas.


1. Adeus à hora da largada – Agostinho Neto

Minha Mãe

(todas as mães negras

cujos filhos partiram)

tu me ensinaste a esperar

como esperaste nas horas difíceis

 

Mas a vida

matou em mim essa mística esperança

 

Eu já não espero

sou aquele por quem se espera

 

Sou eu minha Mãe

a esperança somos nós

os teus filhos

partidos para uma fé que alimenta a vida

 

Hoje

somos as crianças nuas das sanzalas do mato

os garotos sem escola a jogar a bola de trapos

nos areais ao meio-dia

somos nós mesmos

os contratados a queimar vidas nos cafezais

os homens negros ignorantes

que devem respeitar o homem branco

e temer o rico

somos os teus filhos

dos bairros de pretos

além aonde não chega a luz elétrica

os homens bêbedos a cair

abandonados ao ritmo dum batuque de morte

teus filhos

com fome

com sede

com vergonha de te chamarmos Mãe

com medo de atravessar as ruas

com medo dos homens

nós mesmos

 

Amanhã

entoaremos hinos à liberdade

quando comemorarmos

a data da abolição desta escravatura

 

Nós vamos em busca de luz

os teus filhos Mãe

(todas as mães negras

cujos filhos partiram)

Vão em busca de vida.

 (Sagrada esperança)

2. O Chapinhar do tempo– Noémia de Sousa
Tempo para nascer

e também tempo para viver

e morrer

 

É preciso tempo

para crescer nas coisas sérias

nas coisas mescladas de harmonia

tempo para amar a miséria

e as lágrimas derramadas

nos púcaros sagrados da esperança

 

É preciso tempo

para ser aquilo que não nos deixam ser

e também tempo para vencermos

as fadigas e indômitas teimas

vazadas em catadupas

 

É preciso tempo

para se provar à humana criatura

a nossa valia o nosso fervor

na castiça mas chata caminhada

marca vida

 

É preciso tempo

para se repudiarem

ódio e inveja

arrogância e altivez

e também tempo

para nos identificarmos

com os labirintos crassos

emergidos da dor incompreendida

 

É preciso tempo

para incondicionalmente

aliarmos os redondeis

e valermos nas tempestades

como também nas honras e lisonjas

 

Como o chapinhar do tempo

nós seremos e sempre

a filosofia garante do tempo presente.

3. Para lá da praia – Alda Espírito Santo
Baía morena da nossa terra

vem beijar os pézinhos agrestes

das nossas praias sedentas,

e canta, baía minha

os ventres inchados

da minha infância,

sonhos meus, ardentes

da minha gente pequena

lançada na areia

da Praia Gamboa morena

gemendo na areia

da Praia Gamboa.
Canta, criança minha

teu sonho gritante

na areia distante

da praia morena.
Teu teto de andala

à berma da praia.

Teu ninho deserto

em dias de feira.

Mamã tua, menino

na luta da vida

gamã pixi à cabeça

na faina do dia

maninho pequeno, no dorso ambulante

e tu, sonho meu, na areia morena

camisa rasgada,

no lote da vida,

na longa espera, duma perna inchada

Mamã caminhando p’ra venda do peixe

e tu, na canoa das águas marinhas …
— Ai peixe à tardinha

na minha baía…

Mamã minha serena

na venda do peixe.

4. Em que Língua escrever – Odete Simão

Em que língua escrever.
As declarações de amor?
Em que língua cantar
As histórias que ouvi contar?
Em que língua escrever
Contando os feitos das mulheres
E dos homens do meu chão?
Como falar dos velhos

Das passadas e cantigas?
Falarei em crioulo?
Falarei em crioulo!
Mas que sinais deixar
Aos netos deste século?
Ou terei que falar
Nesta língua lusa
E eu sem arte nem musa
Mas assim terei palavras para deixar
Aos herdeiros do nosso século
Em crioulo gritarei
A minha mensagem
Que de boca em boca
Fará a sua viagem
Deixarei o recado
Num pergaminho
Nesta língua lusa
Que mal entendo
E ao longo dos séculos
No caminho da vida
Os netos e herdeiros
Saberão quem fomos