Como água

Como água
Freshwater é o livro de estreia de Akwaeze Emezi, um@ jovem autor@ nigerian@.
Este é um livro que não se enquadra em nenhum estilo específico. Não é um livro realista, não é uma autobiografia, não é um romance, não é de fantasia… Talvez o livro mais parecido com este seja Beloved, da Toni Morrison, em que o mundo físico e o mundo espiritual coabitam.
No entanto, em Freshwater, o mundo espiritual coabita não no mundo material exactamente, mas sim na consciência do mundo material. Bem, é difícil de explicar porque o livro é algo único, fantástico.
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O livro é baseado na vida de Emezi. Fonte: Granta
Freshwater segue a protagonista, Ada, desde o seu nascimento até à idade adulta. Porém, Ada não é apenas uma pessoa, uma entidade, mas sim a forma humana através da qual várias entidades se manifestam.
À medida que a história de desenrola, são nos dadas a conhecer as diferentes entidades e viajamos com o tempo – para a frente e para trás, dentro de Ada e acompanhamos os diálogos e dilemas que vivem as entidades nela contidas (ou talvez presas?).
Sim, as entidades sentem-se limitadas pela forma humana. Estão em constante negociação entre si, mas também com a própria Ada, que afinal de contas é que enfrenta as consequências dessas acções.
A Ada lida com depressão, pensamentos suicidas, distúrbios alimentares e disforia de género, entre outras questões. Embora ela não use estas palavras – isto não passa da minha interpretação – é isso que ela nos leva a concluir tendo em conta os seus sentimentos e pensamentos e os pensamentos e sentimentos das suas entidades. Mas a Ada não encontra essas palavras pra se descrever e as entidades têm uma vida própria que não se agita por isso.
O livro divide-se em camadas, tal como a própria Ada. À superfície só vemos o corpo, depois vemos as entidades e as variadas vidas que essas entidades já viveram. Seja Asughara, outras vezes St. Vincent ou até mesmo Yshwa, as entidades têm personalidades e agendas peculiares.
Partindo da mitologia nigeriana, Akwaeze Emezi traz-nos alguns provérbios, palavras e manifestações da sua própria vivência como ogbanje.
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Em Freshawater as entidades disputam a vida de Ada. Fonte: The Guardian
Freshwater obriga-nos a olhar para a nossa própria humanidade e espiritualidade. É um livro sombrio, pois obriga-nos a repensar a nossa malícia, nos demónios que há em nós e até onde somos capazes de ir para satisfazer as nossas próprias necessidades.
Em Freshwater o mal e o bem misturam-se, existe um desconforto constante por sermos expostos a esse retrato tão real e cru da humanidade. Ninguém é totalmente ou puramente bom ou puramente mau.
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Emezi é também artista visual. Fonte: Akwaeke Emezi
Por vezes Ada tenta se recompor, mas os seus espíritos nao deixam. outras vezes, os espíritos parecem ceder, mas ela se recolhe e deixa-os voltar.
O que leva os nossos espíritos maus a despertarem e a tomarem conta de nós? Quanto trauma e violência pode a nossa forma humana aguentar até ela mesma, se tornar violenta?
E podemos, uma vez afastados da nossa essência do amor e esperança, retornar?
É nesse espaço de negociação – a consciência – que somos obrigados a enfrentar a nossa podridão.
Quantos eu’s tiveram de morrer para eu sobreviver às opressões diárias a que sou exposta? Quantos eu’s tiveram de nascer?
É menos importante a situação humana da Ada – se ela trabalha, onde ela trabalha, onde ela vive, o que ela comer – e há um maior destaque pela sua situação psicologia e emocional.
Não é assim também como falamos connosco mesmos? Aquelas vozes nas nossas cabeças não sabem as nossas profissões. A depressão não quer saber se hoje está Sol. Para a euforia é irrelevante se está a chover. Pouco importa se sou homem, se sou mulher.
Como a água, posso ser calma, posso ser implacável, posso relaxar e posso agitar. Posso afogar e posso benzer. Sou a cura e posso ser veneno. Eu sou essas contradições.

Under The Udala Trees, uma Nigéria LGBT+

Under The Udala Trees, uma Nigéria LGBT+

O livro “Under The Udala Trees”  de Chinelo Okparanta retrata uma história nigeriana LGBT+

Este é um dos melhores livros que já li e escrevi um pouco sobre ele em 2016.

Há vários motivos para gostar do livro e um deles é o facto de ser  um livro africano recente que não retrata as vidas de africanos num contexto de emigração, que tem sido uma tendência entre escritores do continente.

Okparanta começa o livro de forma tímida e contida, tornando, na minha opinião, as primeiras páginas aborrecidas, cheias de metáforas e frases bonitas para escrever num caderno de anotações, mas à medida que a história avança, a leitura torna-se mais confortável e as suas frases tornam formas mais naturais.

A autora consegue retratar as experiências de Ijeoma, a protagonista, desde a sua infância à sua idade adulta. Uma mulher numa encruzilhada difícil, obrigada a escolher entre o que ela sente que é certo e o que precisa para sobreviver.

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A autora escreveu para se manifestar contra a opressão vivida pela comunidade LGBT+ na Nigéria. Fonte: The Guardian

 

Seguindo a tradição oral da Nigéria, a narrativa é inspirada pelas histórias e fábulas sobre as diferentes tribos e religiões que coexistem no país.

A puberdade de Ijeoma chega justamente no momento em que começa a guerra civil. Após a morte do pai, a mãe envia a sua filha para uma outra vila mais segura, sobre os cuidados de uma família amiga. Lá, Ijeoma vai descobrir a sua sexualidade, as suas forças e as suas fraquezas.

Decisões complicadas que nos deixam, como leitores, numa luta permanente.

Num país devastado por uma guerra civil e tensões étnicas, o luto é um sentimento constante. As ausências sentem-se ao longo de toda a narrativa. As questões de conflito e tribalismo misturam-se com homofobia, valores tradicionais e xenofobia.

Embora estes temas não sejam o centro da história, tal como na vida real, são componentes que determinam certas crenças e comportamentos. São elementos incorporados de forma tão subtil e bonita!

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Perseguições à comunidade LGBT+ na Nigéria são frequentes. Fonte: The Independent UK

O livro é um interessante começo para termos, como africanos, conversas sinceras sobre as experiências LGBT+ no continente.

Este é um brilhante retrato de histórias queer na Nigéria entre as décadas de 70 e 80, mas não deixa de ser uma história universal: pessoas queer a serem forçadas para espaços marginalizados, tanto física como espiritualmente. Pessoas queer como alvos de violência, tanto física como emocionalmente. Pessoas queer a viverem traumas todos os dias, tanto individualmente como colectivamente.

Na Nigéria, semelhante a outros países é ilegal ser LGBT+. Na base da legislação está a crença em que a homoafetividade é um conceito importado do Ocidente, uma herança nefasta do colonialismo, mas na verdade a homofobia é que na verdade foi importada.

O livro de Okparanta, um manifesto pelo direito a amar, em toda a sua beleza e magnitude, propõe um entendimento mais profundo da questão.

 

 

A Cleópatra do Uganda

A Cleópatra do Uganda

A coragem e vida da activista LGBT ugandesa Cleópatra inspiraram o filme “The Pearl of Africa/ A Pérola de África”

Quando o sueco Johnny Van Wallström começou a procurar material para o seu novo projecto, focou-se inicialmente num casal de dois homens homossexuais do Uganda. No entanto, com o tempo, um deles desistiu por se sentir culpado sabendo da vergonha e perseguição por que passariam os seus amigos e familiares.

Foi assim que o realizador do filme “The Pearl of Africa/ A Pérola de África”, acabou fazendo um documentário sobre Cleópatra, a activista e mulher transsexual que ele acompanha durante os meses que precedem a sua operação para mudança de sexo.

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O documentário surgiu primeiro como minissérie. Fonte: Abstract Friday

O documentário mostra Cleo e o seu namorado Nelson, um homem cis também ugandês e a sua jornada pela descoberta da sua ‘transexualidade’.

Ela reconta a sua infância e como sempre foi um menino afeminado e não se revia em nenhum dos padrões binários prescritos pela sociedade. De uma família grande, 12 irmãos, ela confessa que nunca se sentiu só, apenas se sentia diferente.

Diferente por não se rever em revistas, artistas, na TV ou na rádio. Diferente por sentir uma certa desconexão com o seu corpo. Diferente por não ter com quem partilhar as suas inquietações e sobretudo diferente porque era isso que ela era, diferente.

Na faculdade é que encontrou um nome para se descrever, nome esse que ela confessa não ter certeza se a representa: transexual. E foi assim que ela começou a investigar mais e a conversar com pessoas como ela, primeiro online e depois pessoalmente.

Nelson, o seu namorado, é um adorável rapaz heterossexual que também, através de Cleo, descobriu um pouco mais sobre si, sobre sexualidade e certamente sobre o amor.

Entre brincadeiras, dedos entrelaçados e sorrisos tímidos, é evidente o carinho que ambos têm um pelo outro. No documentário ambos falam das repercussões de assumirem publicamente o seu relacionamento: os comentários dos amigos; o afastamento da família; o julgamento de toda a sociedade.

Como assim uma mulher trans é merecedora de amor? Como assim um homem cis, que poderia ter “qualquer mulher” escolhe uma “menos mulher”? Como assim um homem cis e uma mulher trans de mãos dadas na rua?

Wallström faz-nos questionar tudo isto. Ele subtilmente, aponta a câmara para nós mesmos e confronta-nos com os nossos próprios medos e preconceitos; as nossas vergonhas e os desconfortos.

Há momentos no filme desconfortáveis. Momentos em que Cleo não quer ser filmada. Momentos em que Nelson não quer estar ali. Momentos em que nós queremos sair. Mas todos eles são importantes para sabermos como é a vida da Cleo.

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A activista mantém-se optimista sobre o futuro. Fonte: Huck Magazine

Como mulher trans Cleo é constantemente questionada sobre a sua feminilidade, como se estivesse sempre em fase de teste. Ao viajar, os seus documentos mostram ainda o género masculino e o seu nome dado à nascença, e ambos dados já não correspondem à actualidade.

Apresenta-se assim um problema maior: o Estado.

No Uganda, país onde Cleo nasceu e viver grande parte da sua vida, foi recentemente aprovada uma lei que proíbe e pune severamente quem pratica, protege ou incentiva relacionamentos homoafetivos. É proibido.

O casal vive no Quênia, onde gozam de maior protecção, mas mesmo assim ainda há muita ignorância e preconceito.

Cleo é africana e quer viver em África e permanecer em África a lutar pelos direitos LGBT.

Mais do que um documentário sobre a sua vida, o documentário “Pérola de África” é uma reflexão sobre a vivência da transexualidade numa África onde o ódio está na Lei e sobre as possibilidades de amor mesmo nesse contexto.

Homossexualidade não é importação

Homossexualidade não é importação

A homossexualidade é Africana e não importada, como costumamos ouvir por aí.

No continente Africano é muito hostil com a homossexualidade. Nos anos mais recentes, vários foram os países, tais como o Malawi, Uganda e Nigéria que proativamente aprovaram ou reforçaram leis que proíbam a homossexualidade.

Os motivos para tal prendem-se sobretudo com valores sociais e religiosos.

Do lado social, há dois aspectos a considerar: o primeiro é que vivemos em sociedades em que se valoriza muito o matrimónio e a procriação, e uma vez que as relações homoafetivas não permitem que se viva (pelo menos não da forma tradicional) estes processos, são desvalorizadas e vistas como inválidas; e o segundo é que vivemos em sociedades em que o conceito de indivíduo praticamente não existe, pois todas as decisões, rituais, direitos e deveres são vividos em comunidade.

Nesse sentido, uma vez que a experiência da homossexualidade é muito íntima e pessoal, algo vivido de forma isolada e que não acontece no colectivo, ela passa a ser invisível e até mesmo desprezível.

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A homofobia não é africana. Fonte: Rede Angola

Mas acima de tudo isso, um dos maiores argumentos, senão o maior argumento utilizado para a oposição à garantia de direitos iguais aos casais homossexuais é o facto de se considerar a homossexualidade como algo novo, importado do Ocidente.

Outro argumento comum prende-se com as escrituras sagradas. Seja no Islão ou no Cristianismo, segundo os africanos que praticam estas duas religiões, o seu Deus não aprova relacionamentos homoafetivos. Isso é coisa do Diabo.

Mas se tanto o Islão como o Cristianismo como religiões, isto é, como formas organizadas de se praticar a fé, foram forçados no continente, então temos também de aceitar que não fazem parte da ‘cultura’ africana.

Se supostamente, a homossexualidade é um conceito estrangeiro a África. Então se assim for, também o é a homofobia.

A homofobia foi-se proliferando com o Colonialismo através da formalização do poder europeu na África.

Na Nigéria, tal como em outras ex-colónias britânicas, a lei vitoriana que invoca sodomia e homossexualidade, os homossexuais podem ser condenados a até 14 anos de prisão. Isto, quando aliado às mensagens proliferadas pelos líderes religiosos, cria um ambiente em que ataques violentos a homossexuais são aceitáveis.

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A tradição do casamento entre mulheres nas sociedades Igbo não pode ser negada. Fonte: Black Agenda Report

Contudo, é importante ressalvar que as relações homoafetivas tanto entre homens como entre mulheres já existiam nas sociedades pré-coloniais.

No livro “Boy-wives and Female husbands – Studies in African Homosexualities”, os autores descrevem extensivamente a pluralidade de ‘homossexualidades’ reconhecidas no continente.

Em Angola, naquilo que eram os Reinos de Matamba e do Congo, no séx XVII, eram reconhecidos os supostos homens que se sentiam e viviam como mulheres, ou seja travestis, chamadas de “quimbanda”. Às travestis era permitido vestirem-se e viverem como mulheres, recebendo homens em suas casas para terem relações sexuais.

Na Nigéria, mais precisamente nas sociedades Igbo, era comum relações entre mulheres. Nestas relações, embora uma mulher representasse a figura masculina, tendo de assumir o dote, as divisões de papéis não eram como aquelas que vemos nas relações heterossexuais. Estas relações regiam-se sobre um código próprio e completamente legitimo, reconhecido por toda a comunidade.

Ou seja, a homossexualidade como conhecemos hoje podia não existir. Designávamos por outros nomes e usávamos outros parâmetros, mas estava lá.

Quando os Europeus chegaram à Europa desenharam esta imagem das pessoas africanas como primitivas e sem cultura, filosofia ou conhecimento para dar ao mundo. Nessa linha de pensamento, como seres primitivos, a única razão para nos relacionarmos sexualmente era a procriação. Afinal de contas é assim com os animais.

E nós fomos nos (sub)desenvolvendo com esta imagem de nós mesmos, pensando que em África não existem humanos complexos, com emoções, vivências e ideias progressivas.

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Na África do Sul o casamento entre pessoas do mesmo sexo é previsto por lei. Fonte: BBC

Num continente tão grande e diverso como África, não é de admirar que haja também uma pluradidade de homossexualidades e heterossexualidade. Estes conceitos, bem como os de género nos acompanham há muito tempo e já sofreram alterações face aos processos históricos e ao desenvolvimento das nossas sociedades.

No entanto, não podemos continuar a viver como se não fosse nossa “cultura” abraçar a diversidade e complexidade de vivências que podem existir – e existem! – ao nosso redor.

Como sociedade temos de fazer melhor, precisamos de melhor.

Países como a África do Sul estão na vanguarda dos direitos LGBT+ em África, pois aproveitaram a época de libertação para garantir direitos fundamentais a todos os cidadãos, sem distinção no que toca a raça, credo, género, sexualidade, etc.

Então, mais do que perceber se a vivência da homossexualidade é ou não compatível com o conceito de Africanidade, talvez seja mais importante nos perguntarmos:

Por que é que somos tão resistentes à ideia de existirem africanos homossexuais?