Eliana, da próxima, beija-me

 

Quero um beijo teu na minha boca como o primeiro.

Eu mandei fazer um beijo teu na minha boca. Como aquele beijo pedido, entregue, partilhado. Um beijo sem pressa nem atraso.

Quero guardar para sempre a memória daquele beijo bonito que me deste. E dormir embalada no som dos nossos lábios a dancarem em sintonia. Eu acompanho o teu ritmo e tu segues a minha pegada.

Tu és a música e o pé. O chão e o compasso.

Todas as cartas de amor são 
Ridículas. 
Não seriam cartas de amor se não fossem 
Ridículas. 

Também escrevi em meu tempo cartas de amor, 
Como as outras, 
Ridículas. 

Quero dar-te os meus lábios como um navio para as tuas palavras mais silenciosas navegarem, e e nesse mar sereno mergulharem.

Darei também as ondas calmas da maré baixa para sossegar os teus medos. E de ti levarei o Sol para secar todas as lágrimas desse mar salgado da minha boca.

Nesse beijo vamos guardar todos os nossos segredos.

As cartas de amor, se há amor, 
Têm de ser 
Ridículas. 

Mas, afinal, 
Só as criaturas que nunca escreveram 
Cartas de amor 
É que são 
Ridículas. 

 

Antes que a memória daquele beijo me escape, quero-o outra vez. E outra vez. E todas as vezes até perder a conta.

Quero o teu beijo como uma brisa leve logo de manhã para me acordar. Como a sombra de uma árvore a tarde, para me acalmar. Como a sinfonia dos animais a noite, para me embalar.

Quero o teu beijo sempre. Mesmo quando estás ao meu lado e eu me esqueco que os teus lábios não são meus.

Quem me dera no tempo em que escrevia 
Sem dar por isso 
Cartas de amor 
Ridículas. 

A verdade é que hoje 
As minhas memórias 
Dessas cartas de amor 
É que são 
Ridículas. 

Seremos o nascer e o por do nosso próprio Sol.

Quero me perder nas horas quentes dos dias a amar, em amor.

Nos beijos húmidos esquecer o ritmo do vento, o som das folhas no chão, os passarinhos a comerem fruta, os peixinhos na corrente dos rios, os apressados urgentes nas suas saudades; esquecer os dias frios da tua ausência e toda a vontade que eu tinha de te beijar.

Quero um beijo teu na minha boca como o primeiro.

(Todas as palavras esdrúxulas, 
Como os sentimentos esdrúxulos, 
São naturalmente 
Ridículas.) 

OS AA (Abandonados Anónimos)

OS AA (Abandonados Anónimos)

Clotilde era uma moça no auge dos seus 22 anos, carente e bonita, jovem de coxas grossas e vistosas que não mediam esforços para se fazerem vistas.

Tinha as pernas fortes e zangadas, que não se deixavam passar despercebidas, chamando a atenção de quem quer que fosse. E ela sabia.

Cló, como se apresentava, tinha ouvido falar do grupo. Deram-lhe uma morada, num local secreto, lá para as zonas do Palácio dos Casamentos, numa dependência discreta que não lembrava nada a ninguém.

A entrada para a dependência era antiga. O portão preto, evidenciava as marcas do tempo pela tinta descascada que deixava exposto o metal enferrujado de cor avermelhado. Um longo corredor seguia-se, por onde um dia entraram os carros, pois tina dois corredores de cimento de cada lado para cada roda caminhar sozinha, ainda que acompanhada.

Ela seguiu pelo corredor da roda esquerda, onde algumas plantas sobreviviam, mesmo com a evidente falta de água.

No fundo do corredor havia uma garagem também com ar abandonado. As paredes brancas, ja escurecidas pela chuva e pela poeira, tinham tons de castanho, preto e creme. A porta era de madeira, e ja inchava tamanho era o segredo que guardava.

Entrou, sentou-se e pôs-se a ouvir aquelas vozes.

Uns falavam calmamente, outros choravam enquanto havia quem travasse as lágrimas.

Vozes graves e agudas ali dentro mudavam. Homens e mulheres adultos voltavam a ser crianças, soluçando dores antigas.

Era a sua vez de falar, tinha medo, pois nunca tinha estado numa reunião destas. Não sabia exatamente como a coisa funcionava… Ganhou coragem e lá falou:

– O meu nome é Cló, Clotilde, e tenho 22 anos. Fui abandonada ainda na barriga da minha mãe pelo meu pai verdadeiro. Sou escura, mas tenho pai branco, aquele que me criou. Mas esse também me abandonou… Fugiu deste mundo há 5 anos. O meu primeiro namorado também me abandonou, foi estudar na Índia e aqui fiquei eu. Obrigada por me ouvirem.

No fim todos, em uníssono responderam:

– Bem-vinda Clotilde.

Era a primeira vez que ela falava dos seus abandonos.

Na verdade, é normal em Maputo conhecer pessoas com Síndrome de Abandono, pois afinal de contas, todos deste país foram abandonados.

Durante as várias guerras, com os outros e connosco, fomos abandonados: primeiro pelo colono, que era um pai abusivo mas pelo menos lhe conhecíamos a cara; ao mesmo tempo nos abandonaram os nossos pais, que foram à guerra, de onde nunca mais voltaram, embora alguns caminhem por aqui entre nós normalmente com jeito de quem não viu a morte de perto, mas ainda com o seu cheiro na pele; mais tarde, também as nossas mães nos abandonaram, arrastadas pelas incertezas da vida urbana… Mais recentemente abandonaram-nos os ideais e é precisamente por isso que andamos sem rumo nesta cidade.

Você conhece abandono quando ver?

Cló olhou à sua volta e não se chocou em ver aquelas caras ali; aqueles corpos moribundos; os pés descalços e as roupas sem cor. Não lhe chocaram as origens, nem tão pouco as tragédias daquelas pessoas.

Chocou-lhe perceber o quanto os abandonados também tinham abandonado.

Deu por si a reflectir sobre as coisas que tinha deixado para trás: os estudos; a Anabela, sua melhor amiga de infância; o Rogério, seu primeiro amor; os conselhos da sua mãe; a casa onde cresceu; a campa do seu pai; enfim…

Quem dos que vive em Maputo é de Maputo? Maputo é o ponto de encontro de todos os que ousaram pegar nas suas trouxas e fugir. Do quê e para quê poucos sabem! Abandonámos as nossas terras-natal, as nossas avós, as nossas línguas maternas, os nossos nomes, os nossos defuntos… e para aqui viemos! 

Onde rezam as pessoas que abandonam as suas árvores sagradas?

No fim do evento, Cló ficou a ajudar a tia Fátima a arrumar as cadeiras.

Foi pegando naqueles pedaços de plástico verde e encavalitou-os. Juntou as cadeiras em conjuntos de sete a dez e depois encostou-os a um canto.

Reparou que por baixo das cadeiras havia muito pó e as suas mãos rapidamente mudaram de cor. As paredes daquele compartimento também pareciam empoeiradas, com teias de aranha nos cantos, daquelas grossas, acumuladas durante anos.

Numa prateleira via-se vários electrodomésticos aparentemente avariados ou ultrapassados: um velho aparelho de rádio; uma torradeira; um walkman; e mesmo ao lado um conjunto de cabos e fios entrelaçados, impossíveis de distinguir.

Lá atrás, meio escondida, uma peneira com conchas e búzios que dizia “Recordação da Praia do Wimbi” e ao seu lado uma figura de Nossa Senhora de Fátima, meio fluorescente, parecia ser daquelas que brilham no escuro.

-Vamos? – Perguntou a tia Fátima, parada ao lado da porta já com a chave na mão.

Todos nós temos um canto, ou melhor dois cantos: um dentro e um fora de nós onde guardamos todos os nossos abandonos.

Em nós, o pó se acumula em pessoas, lugares, despedidas e desencontros que ainda esperamos resolver.

As nossas garagens acumulam velharias na esperança de serem um dia restauradas, utensílios sem uso e sem apreço, cartas queridas e guardadas, somos verdadeiros museus de coisas abandonadas.

 

 

Mondlane ao fim de tarde

Mondlane ao fim de tarde

Viu de longe a sua figura plantada no meio do nada e foi ficando, ficando, criando raízes até hoje.

Aquela é a sua avenida: uma encruzilhada de pretos, brancos, mulatos, monhés, um encontro de todos e de ninguém.

De um lado, o fim e o princípio de uma coisa nova já envelhecida. Projectos, sonhos, ideias que nunca avançaram. Obras e infraestruturas que morreram no papel.

Lá ao fundo um novo horizonte se ergue, ao passo galopante de quem anda atrasado numa corrida já perdida ainda no ponto de partida. Como costumamos dizer “É trabalho de Marracuene!”.

Queria ser mais do que um espantalho no meio da praça.

O meu braço erguido às vezes dói.

Um dia ainda me mexo.

Atrás de si, um cobrador de chapa aperta os seus passageiros para além da lotação do seu carro. Senhoras, meninas, crianças, homens e velhos de todos os tamanhos se diminuem para chegar rapidamente ao seu destino.

O motorista abre a porta do co-piloto para uma jovem menina entrar.

A menina aceita o convite e senta-se à frente, puxando uma colega para ficar ao seu lado no privilegiado lugar de acompanhante do condutor.

Ambas estão de uniforme escolar de uma escola secundária qualquer da cidade. Pelas suas camisas dá para notar os pequenos seios que já se acomodam no soutien e os lábios pintados com gloss brilhante aumentam os sorrisos malandros que escondem segredos adolescentes.

A música está a tocar bem alto e não dá para ouvir metade das coisas que o condutor está a dizer. Não faz mal. Elas sorriem em concordância.

Daqui de cima não consigo mudar nada.

Não há revoluções do topo.

Nem povo sem sonhos.

À frente, vendedores ambulantes deambulam pela melhor sombra, à procura dos mais distraídos na esperança de os convencerem a adquirir algum produto.

Uma mamana consegue a atenção de um rapaz que espera alguém de uma das lojas de roupas dos nigerianos.

Os cinco meticais do amendoim servem de entretenimento enquanto a sua namorada não sai do job. Hoje é sexta-feira, vão sentar num sítio para tomar um refresco, quem sabe até matar outras sedes.

Talvez eu é que sonhei demasiado alto.

Ninguém me tira fotos.

Essas pessoas sabem quem eu sou?

Ninguém olha a estátua de frente.

Enfrentar aquela figura é olhar para História, para o Passado, para a origem de nós mesmos.

Alguns atrevidos usam os degraus como abrigo, às vezes o Passado é o único sitio seguro para dormir.

O capim apaga o rasto dos seus passos. O lixo enfeita a campa dos mortos enterrados sem despedidas.

Os pombos, indiferentes, voam e cagam na direção que o sopro Presente permitir. E assim vivemos, como quem não sabe, nem quer saber.

Estátuas só servem para mijar

E os heróis não vão para os livros de História.

Amanhã vou-me embora.

 

Lições de Outono

Lições de Outono

Coisas que aprendemos ao observar as folhas cair.

Nas manhãs frias e nubladas de Berlim, em que as folhas caíam sobre o ritmo frenético do vento, acordar era um sacrifício. E que sacrifício!

Mas deliciava-me ficar, aquecida na minha cama, a olhar para a janela de onde era possível ver o abanar das folhas e das árvores consoante a vontade do vento.

Da janela dava para ver as folhas nas suas danças constantes. Umas, de tão embaladas pelo sopro, deixavam-se cair e beijavam lentamente o chão húmido. As mais resistentes agarravam-se à árvore com toda a esperança de ali permanecer, embora soubessem que a altura delas caírem também chegaria em breve.

Essa é a primeira lição: saber esperar. Mesmo vendo a folha vizinha a cair, as outras folhas não corriam para o precipício. Pelo contrário, algumas até pareciam ficar mais atentas para ver o destino daquela que se deixava levar de forma a fazerem a escolha mais consciente.

Já no chão, as folhas caídas formavam tapetes ora laranja, ora castanho, interrompidos por algumas poças de água, que em conjunto davam outra cara aos passeios. Mesmo deitadas, no chão, sem vida, as folhas continuavam a dar o melhor de si, acarinhando-se umas às outras e aos pés que as iam pisando.

Lição dois: Mesmo no chão, nunca perder a essência de quem somos. Aproveitar a queda para aprender sobre humildade e amar quem está connosco.

Depois, reparei também que algumas árvores já se viam nuas, mas as outras não se deixavam despir. Cada uma se revelava consoante a sua vontade, no entanto a força aplicada sobre elas pelo vento era igual. E os galhos mais teimosos, ainda exibiam folhas verdes, poucas, mas persistentes enquanto outros, já quase só tinham folhas amarelas, castanhas ou mesmo folha nenhuma.

Terceira lição: Devemos tirar as partes de nós consoante o que nos deixa mais confortáveis, independentemente daquilo que é a pressão externa.

Tanto podemos aprender com o Outono. O Outono é a primeira linha na testa; o primeiro fio de cabelo branco; o primeiro sinal da idade. Mas é também o início da renovação, é aquela etapa dolorosa, mas necessária para o crescimento.

Drummond de Andrade disse “Repare que o Outono é mais estação da Alma que da Natureza”.

Não há ser que resista ao ar reconfortante do Outono. Ele diz-nos:

 

“Não há problema nenhum em deixar parte de nós morrer”

“Não há problema em deixar parte de nós cair”