No filme de Licínio de Azevedo, Virgem Margarida, somos confrontados com a dura realidade do processo revolucionário pós-independência em Moçambique.
Em Junho de 1975, com toda a euforia e esperança do nascimento de uma nova nação dotada de auto-determinação, ideias próprias e controle total sobre o seu domínio Margarida, uma jovem camponesa vai à cidade comprar enxoval e vê-se enrolada numa teia de coincidências infelizes.
Por falta de documentos é levada pela polícia durante uma rusga que resulta também no aprisionamento de várias mulheres da noite, entre prostitutas e dançarinas.
Embora algumas destas aceitem a sua condição de “mulheres da vida”, que trocam sexo por dinheiro, muitas resistem essa denominação, entre elas Margarida, que nega ter estado alguma vez com um homem.
Baseado em factos reais, o filme retrata os contrastes vividos na época.
Para muitos militares, eles mesmos também camponeses, as mulheres da cidade com as suas roupas vistosas eram consideradas prostitutas, embora nem sempre o fossem. Enganos eram comuns.
O ideal de mulher passava por servitude, modéstia e submissão à família. Assim, estas mulheres que saíam para trabalhar à noite, vestidas com roupas brilhantes e com maquilhagem exuberante, eram encaradas como uma ameaça ao futuro virtuoso do país.
No novo Moçambique, as mulheres deviam servir a nação. Eram elas a base para o desenvolvimento da família e para a prosperidade da força de trabalho, já que tinham o papel de fazer e criar os filhos.
Aquelas que fugiam a esse ideal eram levadas forçosamente a campos de reeducação, de onde era suposto sairem mulheres novas, dotadas das qualidades e ambições desejadas numa Mulher Africana no pós-independência para um regime socialista.
Em 1975, num país que precisava de consolidar a sua identidade, era essencial a transformação de mentalidades e o abandono da retórica colonial. Para tal era preciso criar esta ideia do “homem novo” e materializá-la.
Encarava-se a exploração sexual da mulher moçambicana como resultado do colono, que olhava para a mulher negra apenas para satisfazer os seus apetites, sem de facto dignificá-la.
No entanto, essa exploração sente-se em todas as esferas da vida da mulher, tanto no pré e no pós-independência, pois mesmo no seio dos militares havia homens com a mesma mentalidade machista que os colonos.
As intenções revolucionárias, por mais puras e ingénuas que fossem, eram pouco dado o tamanho da missão a que se destinavam cumprir. Como é que se levam centenas, quiçá até milhares, de mulheres urbanas para o campo? Como é que se transformam essas mulheres em novas pessoas? Será possível?
É importante contextualizar os campos de reeducação no contexto revolucionário, e o contexto revolucionário por sua vez no universo de emoções, traumas e idealismos de um povo que foi à guerra para ser livre.
Por outro lado, no filme o realizador explora também a necessidade da união entre as mulheres para a sua libertação.
A sororidade e o companheirismo entre as reeducandas, movidas pela experiência comum de opressão acaba por vencer as diferenças que as separam.
De uma forma quase literal, o autor mostra que a libertação da mulher moçambicana só será possível quando os grupos abandonarem a sua fidelidade às outras estruturas em que estão inseridas.
Em Virgem Margarida, para as combatentes é necessário abandonarem a estrutura militar e denunciar o abuso de poder e machismo dos seus colegas. Para as reeducandas, é preciso deixarem as alianças tribais e de classe de lado.
É somente neste campo de negociação que se pode falar, depois de uma Mulher Nova, pois essa mulher será livre de escolher o seu próprio destino.
Segundo Licínio de Azevedo o filme não tem qualquer intenção política. Pelo contrário, interessa aqui o lado humano, o drama da vivência diária nos campos.
As condições reais dos campos e a forma como aos comandantes geriam os recursos de forma despótica, aliadas ao escasso acesso a alternativas, criavam um ambiente em que as ideias nem sempre chegavam.
A visão idealista da época arrastou não só mulheres, mas também homens para os campos de reeducação, destruindo e separando famílias para sempre. Entre prostitutas; improdutivos; traidores; dançarinas… E virgens, também artistas, certamente outros mal entendidos aí na mistura.
As atrocidades, violência e consequências dos processos revolucionários são temas recorrentes nos filmes de Licínio de Azevedo.
Muito mais que saber o Passado, cabe-nos agora questionar o Presente. Quem seriam as Margaridas de hoje? O que temos feito por elas? E pelas outras? Que correntes nos impedem de alcançar a tal almejada libertação?