Era uma vez um mamilo falador. Estava constantemente a falar só pra se fazer presente. Muitas vezes levantava-se só para dizer:“Está Frio!” ou “Passou aqui vento!”
O mamilo falador era muito elegante e charmoso. Falava num tom eloquente e por vezes até sedutor.
Isso incomodava muita gente, especialmente as pessoas cujos mamilos não possuíam tais talentos.
Então puseram o mamilo falador na prisão! Já não se ouvia mais o mamilo na praia, nos escritórios, e até dentro de casa ele estava proibido de falar. Na maioria dos casos só o deixavam à vontade na intimidade do quarto ou da casa-de-banho.
Não era uma vida nada fácil pra ele.Vivia fechado, apertado numa cela escura solitária. Afinal qual era o crime do mamilo falador? Ele não ofendia ninguém, não matava e nem roubava… ele apenas sorria, chorava, saltava, enfim.. existia!
Tudo começou quando eu tinha mais ou menos 13 anos.
Aos 13 anos eu já usava soutien. O meu corpo estava algures entre uma menina e uma mulher. Umas partes mais menina e outras mais mulher. Enfim, um corpo de quem estava a passar pela Puberdade. Esse corpo incluía pernas relativamente grossas, seios, acne e… pêlos!
Eu ainda me lembrou do dia.
Eu estava a fazer xixi e a minha mãe olhou para mim e imediatamente me informou que tinha chegado a hora de começar a fazer depilação. Ao que parece, a minha zona púbica tinha alcançado um estado socialmente constrangedor, pelo menos para ela.
Eliana, conheça gillette. Gillette, Eliana. Muito prazer.
Apresentações feitas, passámos ao que interessa: tirar os pêlos do meu corpo.
Nos meses seguintes fui descobrindo a arte de me depilar. Os tempos de intervalo; os pêlos encravados; as manchas na pele; os cortes; as partes mais e outras menos sensíveis à lâmina; etc.
Mais tarde descobri os cremes depilatórios; as bandas e finalmente, a temida cera.
Seja com lâmina de barbear; cremes; cera ou laser, uma coisa é certa: depilação feminina é compulsória. Pernas, virilha, axilas e púbis devem ser zonas sem pêlos.A ideia de beleza no corpo feminino tal como ele é simplesmente não existe na nossa sociedade.
As axilas de uma mulher adulta têm pêlos. As pernas de uma mulher adulta têm pêlos. A virilha de uma mulher adulta tem pêlos.
Então por que somos obrigadas a fazer a depilação nessas partes do corpo?
Eu sempre cresci a ouvir explicações ligadas à higiene e cheiro dessas zonas e fui assimilando essas ideias para mim também.
Às minhas amigas ia dando recomendações; íamos trocando ideias e conselhos; encorajando essa guerra quase diária contra os terríveis pêlos.
Mas está mais do que provado que os pêlos têm uma função importante para a nossa saúde.
Os pêlos servem de protecção natural de certas zonas do nosso corpo e são uma resposta fisiológica da nossa espécie face a determinadas bactérias que seja por humidade ou devido ao calor, reproduzem-se mais facilmente nessas partes do corpo. Servem também para diminuir a fricção resultante do contacto de pele com pele (por exemplo ao andar).
Pensarmos que tirar os pêlos torna-nos seres mais limpos ou higiénicos é portanto, no mínimo ingénuo. E esse mesmo padrão de “higiene e cheiro” nunca se aplica aos homens. Por que será?
Apenas às mulheres é cobrado um corpo sem pêlos. E nós cobramos isso de nós mesmas!
Por outro lado, há também a questão estética. Vivemos num mundo em que somos bombardeadas diariamente com imagens que correspondem a um padrão de beleza e queremos também segui-lo.
Nos anos recentes, com a internet e a propagação da pornografia houve uma influência daquilo que se vê nos filmes em como as mulheres se vêem na vida real.
Quantas vezes não recorri à minha amiga Gillette ao saber que tinha um encontro romântico nesse dia?
Nas revistas e TV também é raro vermos mulheres com pêlos. A imagem de uma mulher adulta ao natural raramente nos é apresentada.
Depilação compulsória tem relação com pedofilia enraizada? Fonte: RadicalizeVemos apenas a mulher infantilizada, sem pêlo algum como se fossse uma criança. Somos expostos a essa imagem vezes sem conta desde a nossa infância. E aprendemos a chamar nomes àquelas que escolhem não se depilar.
E está tão enraizado na nossa cultura patriarcal machista que a mulher acredita que de facto o seu corpo é mais bonito assim, que os seus pêlos são nojentos. Por detrás dessa preferência existe uma construção social que começa bem cedo, quando todas as roupinhas são cor-de-rosa, cheias de flores e lacinhos.
Aprendemos a odiar os nossos pêlos; os nossos cheiros; as nossas celulites; nossa menstruação; nosso cabelo natural; etc. E a luta para romper com esses padrões, para amar o nosso corpo tal como ele é, é constante.
O nosso corpo é desde cedo mutilado, manipulado, transformado para ser tudo menos “natural”: desde o furo na orelha quando ainda somos bebês; ao desenho da sobrancelha; passando pelo cabelo liso; o corpo escultural; a pele perfeita; as perna sem pêlos; etc.
E se a partir de hoje nos amássemos tal como somos, quantas indústrias não iriam à falência?
Num mundo em que cada vez mais somos levados a aparentar ser algo mais do que o que realmente somos e somos empurrados a perseguir um estilo de vida supostamente universalmente ideal, o amor próprio é cada vez mais raro.
Muito mais facilmente procuramos nos outros coisas que nos façam gostar de nós. Procuramos lá fora motivos para estarmos confortáveis com a nossa essência, criando uma tensão constante dentro de nós.
Por isso o amor próprio é tão importante: dá-nos a confiança para enfrentar o mundo; assumir as nossas decisões; aceitar os nossos limites e procurar a melhor versão de nós todos os dias.
Talvez a primeira luta seja aquela por um modelo físico ‘mainstream’, aquele padrão que nos é ditado todos os dias pelas revistas; pela TV; pelas celebridades; etc. Até nas nossas casas: a gordofobia nossa de todos os dias; o colorismo; etc.
Especialmente para a mulher, cujo corpo é policiado constantemente existe muita pressão para fazer alterações ao seu corpo. Estas alterações podem parecer insignificantes/ normais, como é o caso da depilação ou dos furos nas orelhas, mas que também podem assumir facetas mais perigosas como o caso da mutilação genital.
Desde pequenas que somos alimentadas com estas ideias de que o nosso corpo tal como ele é não é suficiente. É como se o nosso corpo estivesse constantemente contra nós e fosse nosso direito (e dever) nos defendermos, mutilando-o.
Aceitar a nossa pele escura; o nosso cabelo crespo; as nossas estrias e os nossos seios assimétricos é a porta de entrada para a aceitação de outras partes mais íntimas de nós mesmas. Fazer as pazes como o espelho não é só libertador, é revolucionário.
Afinal de contas o nosso corpo é o espaço que ocuparemos até à nossa morte.
O nosso tempo
Com os Instagrams e Snapchats da vida parece que o sucesso está apenas a um passo de nós. É como se todos já tivessem encontrado o seu lugar ao Sol e nós ainda estivéssemos à espera da chuva passar, à procura de um guarda-chuva!
Existe um sentido de competição nada amigável que nos leva a apressar os nossos projectos porque não queremos ficar de fora. É essa pressa que nos obriga a ir por corta-matos que não nos permitem aprender as lições que precisaríamos para de facto sermos felizes com o resultado final.
Cada um de nós leva o seu tempo a alcançar as suas próprias metas – que não têm de ser iguais às dos outros – e a sentir-se confortável com a vida que escolheu. O mais importante é estar consciente dessas escolhas e assumir essa liderança do próprio caminho.
O respeito pelo nosso ritmo e processo de aprendizagem já é por si só uma prova de maturidade.
Amor próprio é o seu primeiro romance. Fonte: Maria Chantal
Quantas vezes não deixamos de fazer certas coisas por medo de não sermos bem vistos/ aceites? O que foi que perdemos por nunca termos sequer tentado verbalizar as nossas vontades?
O amor próprio é uma força que nos liberta, pois permite-nos namorar, conhecer e ouvir o nosso EU.
Claro que mesmo o amor próprio exige negociação constante, pois somos feitos de contradições. Hoje sou amarelo, amanhã quero azul. Então fico-me pelo verde. É importante pautar sempre pela cordialidade e paciência até connosco mesmos.
Pedir ajuda, ouvir conselhos, há espaço para tudo isso, mas a decisão é apenas de uma pessoa.
É urgente amar na primeira pessoa do singular, começando pelo espaço e pelo tempo.