Ludo, esquecida e encontrada

Ludo, esquecida e encontrada

Em “Teoria Geral do Esquecimento” conhecemos Ludo, uma mulher esquecida em Luanda e encontrada após 30 anos.

Tudo começa em Luanda, nos anos 70, quando a guerra pela libertação de Angola cria um ambiente de instabilidade e insegurança generalizados, que levam muitas famílias da classe média/ alta a fugir rumo a Portugal.

Ludovica Fernandes Mano (Ludo), portuguesa que vive com a irmã e o cunhado na capital angolana é a protagonista, que sofre de fobia social e não sai de casa. Os três moram num prédio bem situado, na cidade de Luanda e observam calmos o movimento de angolanos e portugueses sem saber se vão ou se ficam.

Numa noite o casal sai para jantar e nunca mais regressa. É aqui onde começa a história de esquecimento de Ludo.

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Foto: ‘Os dias da independência, angola 1975’, de Joaquim Lobo

Através de recortes de diários e anotações da própria Ludo, José Eduardo Agualusa guia-nos pela consciência dela e pelos seus maiores medos e prazeres.

Tendo como escudo o muro que ergueu a separar o seu apartamento do resto do prédio, Ludo mantém-se isolada por quase 30 anos no seu apartamento tendo como única companhia o latir faminto de Fantasma, seu cão.

Ludo revela-se extremamente inteligente, proactiva e até mesmo destemida no conforto do seu limitado habitat. É uma mulher forte, que não se deixa sucumbir pelas incertezas e instabilidades ao seu redor, mas antes, consegue manter uma certa lucidez que, no meio de tanta loucura, pode parecer estranho.

‘Às vezes vejo um macaco passeando-se pelos ramos, lá no fundo, por entre sombra e os pássaros. Deve ter pertencido a alguém, talvez tenha fugido, ou então o dono abandonou-o. Simpatizo com ele. É, como eu, um corpo estranho à cidade.”

Ludo tenta manter a sua sanidade quando tudo parece desmoronar-se à sua volta: o desaparecimento da sua única família; a decadência da cidade; o abandono ao estilo de vida que até então levava; etc.

Ela vê-se numa encruzilhada entre guerra e paz; vida e morte. No meio deste cenário consegue manter um pouco de “normalidade” que lhe garante a sua sobrevivência.

E isso leva-nos à questão: o que é ‘normal’ em tempo de guerra? O que é ‘normal’ no colonialismo’? Nas revoluções?

Existirá forma de passar por estes processos históricos sem esquecer um pouco quem nós somos? Quem nós fomos?

teoria-geral-do-esquecimentoEste é um livro sobre pessoas esquecidas, pessoas que querem esquecer e/ou pessoas que querem ser esquecidas. E claro, sobre os processos de reconstrução ou destruição que devem ser feitos para que isso aconteça.

Rapidamente percebe-se que não há heróis nem vilões, não há Deus nem Diabo e todas as pessoas batalham diariamente para gerir e equilibrar tanto as forças do bem como as forças do mal que têm dentro de si.

Ludovica é uma excelente metáfora para a própria Angola que, por quase 30 anos isolou-se, combatendo guerras com a própria consciência, tendo erguido um muro que a separou do resto do mundo.

Contudo, o mundo lá fora continuou a girar e a mudar na sua original indiferença e um dia Angola – assim como Ludo – teve de enfrentá-lo.

Esses conflitos internos – tanto em Ludo, como em Angola – são-nos descritos com um ritmo que nem sempre é o mesmo, mas que nunca nos é difícil acompanhar.

O autor vai enquadrando todos os acontecimentos na História, trazendo-nos personagens diferentes, em situações por vezes tristes, por vezes contentes, sempre com bastante sarcasmo e ironia – tal como é também na vida real.

Este ritmo da própria história é de tal forma envolvente que o próprio leitor esquece-se do que estará a acontecer. O leitor perde-se no tempo: passado; presente e futuro misturam-se. Não importa.

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O livro garantiu ao autor o Prémio Literário Internacional de Dublin. Fonte: Agualusa

Ao recontar (ou seria reinventar?) a história de Ludo, Agualusa traz à superfície importantes reflexões sobre o racismo, o colonialismo e a xenofobia, e por outro lado, leva-nos também a repensar a depressão, a memória e acima de tudo a justiça.

O autor brinca connosco, como se fôssemos marionetas, puxando-nos para dentro e fora da realidade de Ludovica, não deixando, no entanto de dizer aquilo que quer de nós.

A história ficcionada de Ludo oferece-nos algo entre a vida real e a vida imaginada; a memória individual e a memória colectiva de Angola, começando na guerra pela independência até ao início do séc. XIX.

Nesta brincadeira de faz-de-contas, o autor, de forma cómica e verdadeira dá-nos a conhecer os caminhos difíceis, com muitas quedas e tropeços, da História recente de Angola.

 

Para que(m) serve a CPLP?

Há alguns meses, aquando do vigésimo aniversário da CPLP, comentei que a CPLP era uma espécie de prisão para nós. 

Vivemos numa ditadura do Português, pois no nosso consciente essa é a nossa Língua e faz parte da nossa identidade como Nação. Mesmo o nosso ensino bilíngue ainda é muito imaturo e não consegue dar resposta aos nossos problemas, pois a grande maioria da população em Moçambique não fala Português, mas sim uma outra língua local.

Por que é que as pessoas que falam, por exemplo, o changana não podem aprender a ler e escrever em changana? Por que é que não criamos alianças com países vizinhos para falarmos as nossas línguas em comum?

Nós metemos na cabeça que a Língua Portuguesa é nossa esposa e todas as outras línguas que falamos são nossas amantes, obrigadas a viver na clandestinidade e longe dos espaços públicos. É a CPLP sustenta essa ideia de nós mesmos, fazemos parte desta “comunidade” e não criamos uma comunidade de países que falam swahili ou makhwua.

Na África do Sul, por exemplo, nos hospitais há cartazes em línguas locais. Isso facilita o acesso a este serviço. Mas as nossas línguas locais são praticamente invisíveis na esfera pública.

Pouca é a nossa literatura em línguas locais e as grandes editoras investem mais em Português. Imaginem quantos escritores já perdemos assim! Temos exímios contadores de histórias, mas o seu legado fica pela oralidade.

Outros jovens de países vários tiveram opiniões semelhantes. Qual é a relevância da CPLP nos dias de hoje?

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O Ministro dos Negócios Estrangeiros Português, Augusto Santos Silva, tem uma opinião diferente. Para ele, a Comunidade baseia-se num princípio de igualdade entre todos:

“São Estados soberanos, iguais em direitos, iguais em responsabilidades. Têm um traço de união fundamental, que é a língua portuguesa, uma língua que pertence a todos, na diversidade com que a usam e enriquecem.” – 20 anos de CPLP: a melhor juventude

No entanto, as bases onde se apoia a CPLP têm origem na teoria do luso-tropicalismo e é por isso que é difícil falarmos numa relação de amizade e apoio mútuos, quando durante todos anos houve – e ainda há – um desequilíbrio na distribuição de poder.

No Brasil, quando participei do Festival do Rio tive o privilégio de assistir o filme moçambicano “Comboio de Sal & Açúcar”, do realizador brasileiro radicado em Moçambique Licínio de Azevedo. Para a minha surpresa o filme, falado em Português de Moçambique, estava legendado para o Português do Brasil. Achei ridículo!

Quando as novelas brasileiras são transmitidas aqui não assistimos com legendas! É como se o nosso Português fosse um dialecto primitivo imperceptível aos outros falantes da Língua Portuguesa. Não sei se os filmes de Portugal tiveram o mesmo tratamento, por exemplo. Mas de qualquer uma das formas já demonstra uma certa arrogância dos brasileiros ao assistir uma obra cinematográfica moçambicana falada em Português.

O mesmo se pode dizer do exame de Português a que estudantes moçambicanos são submetidos quando se candidatam a bolsas de estudo no Brasil.

Para que serve essa tal Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP) senão para legitimizar a língua como elo comum a todos? Por que então, há uma hierarquia do Português que se fala?

E outra coisa, se a língua é de facto de todos, nós temos tanto direito de alterá-la e usá-la como melhor acharmos no nosso contexto como qualquer outro falante de outro país. Da mesma forma que o Brasil tem palavras e expressões próprias, que nós tentamos entender, nós também temos as nossas e não sinto que estas sirvam de impedimento para quem vê o filme.

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O Novo Acordo Ortográfico gerou polémica na Comunidade.

A propósito, é exactamente esse o grande debate em torno do Novo Acordo Ortográfico. O acordo é um acto violento contra os diferentes léxicos dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP).

Supostamente o objectivo do Acordo é facilitar o intercâmbio cultural e científico e ao mesmo tempo ampliar a divulgação do idioma, no entanto é uma forma de nos obrigar a falar como os brasileiros e os portugueses falam, como se a língua deles tivesse se desenvolvido por auto-combustão e não pelos mesmos processos de transformação que acontecem em todas as línguas (neologismos; estrangeirismos; etc).

Na mais recente cimeira da CPLP, realizada no Brasil, falou-se de um projecto de livre circulação dentro da CPLP.

Neste momento o mais urgente é a facilitação na obtenção de vistos de residência e o reconhecimento de diplomas, o que tem sido especialmente difícil para os Portugueses e Brasileiros a viver em outros países.

Para nós africanos habituados a mendigar para obter vistos e acostumados com a nossa condição de cidadãos de segunda classe, isto é um tema antigo que já deixou até de ser urgente.

Não se sabe como irá funcionar ou quais as implicações da livre circulação para aqueles que aderirem ao projecto, mas certamente não irá beneficiar todos de forma igual.

Há muito que a Europa e a América do Sul beneficiam da migração africana, aliás, não sei o que teria sido do Euro sem os imigrantes (e/ou afrodescendentes) a vestir a camisola dos ex-colonos.

 

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Os imigrantes africanos em Portugal continuam escondidos – Fonte: DW.com 

 

Hoje Portugal surpreende-se pelo talento proveniente dos PALOP. Já não servimos apenas para trabalhar nas obras ou como empregadas domésticas, mas também somos artistas, engenheiros, médicos, etc.

Com muito esforço as comunidades afrodescendentes começam a ganhar espaço central e com as recentes crises na Europa e América do Sul, os movimentos de migração começam a acontecer em várias direcções. Adicionalmente, as descobertas de riquezas mineiras em países como Moçambique e Angola atraem vários empresários, especialmente aqueles que falam o Português.

É importante que esta nova dinâmica fuja do ideal colonial de irmandade e promova o uso de todas as variantes da mesma língua. Agora queremos o Português na ONU. Mas que Português? O “novo” ou o Antigo?

E acima de tudo… Será que quando o Presidente Moçambicano falar na ONU, os restantes Presidentes da CPLP precisarão de legendas também?