Entre Ela e Deus

Entre Ela e Deus

O documentário “Entre Eu e Deus” de Yara Costa traz-nos importantes reflexões sobre a religião.

Gravado na Ilha de Moçambique, no norte de país, “Entre Eu e Deus” mostra-nos como uma nova forma de viver o Islão, o Wahhabismo, está a mudar a Ilha e quem são os protagonistas destas mudanças.

Tendo como ponto de partida a história de Karen, o filme revela-nos o que há por detrás do seu véu: uma jovem muçulmana estudante de Engenharia Civil, com todos os sonhos e questões de quem tem vinte e poucos anos.

 

37014535_250655722199998_1182131087560671232_o
O filme estreou esta semana em maputo. Fonte: Maputo Fast Forward

O Islão chegou no séc. VIII e fundiu-se com a própria cultura macua. Este Islão africano, e talvez diria até, Islão macua, tem as suas raízes no Islão suni e na própria tradição local.

 

No documentário, esta vertente do Islão é personificada por uma velha macua que defende a existência de uma certa flexibilidade da religião tendo em conta a terra de onde a pessoa é. Um muçulmano em Moçambique é diferente de um muçulmano em Portugal. O seu véu é composto por duas capulanas, e na sua face a tradicional máscara de mussiro evidenciam o seu local de origem.

Já o islão Wahhabi defende a interpretação do Alcorão da forma mais pura. E ironicamente, esta visão mais conservadora é personificada por jovens como a Karen, a protagonista.

Estes jovens, ligados ao mundo pela internet e alguns ainda, viajados tendo estudado na Arábia Saudita, trazem um islão diferente que se opõe a alguns traços da tradição macua. Para eles, Deus está acima de tudo: das tradições; dos costumes locais; etc.

A Ilha de Moçambique é um local com muita História e muitas fusões. Foi lá onde se instalaram os primeiros árabes e mais tarde os indianos e portugueses, entre outros povos.

Numa das passagens do filme, vemos uma cerimónia religiosa católica, em que os crentes e o próprio padre usam capulanas com imagens de Nossa Senhora e tocam batuques na missa, enquanto cantam música religiosa.

Noutra, as mulheres muçulmanas macuas vestem-se de capulanas e pintam o mussiro, segurando o Alcorão.

Isto mostra como as diferentes religiões moldaram-se e se misturaram com a cultura local.

photo-8ilha-de-moc3a7ambique-mesquita-1964
A Ilha foi marcada durante séculos pela cultura swahili e o Islão dos povos da África Oriental. Fonte: DW Africa

A família da Karen, tal como tantas outras, sempre foi praticante do Islão. Então porquê essa busca, essa sede de seguir um “outro” Islão?

Aquilo que à partida é, deixa de o ser. Olhamos para a Karen com as roupas escuras, o hijab, e pensamos que ela é uma jovem alienada, sem sentido de identidade próprio, sem vontades nem quereres. Porém, à medida que ela se vai revelando, vemos uma jovem esclarecida, crente, convicta das suas ideias e do caminho que ela mesma escolheu seguir.

Dúvidas nascem em si como cogumelos sobre os mais diversos temas: Existem gays muçulmanos? Será que a minha mãe (falecida) aceitaria as minhas escolhas?  Os meus amigos ainda sabem quem eu sou?

E como não podia deixar de ser, uma jovem cheia de contradições. E esta é para mim a componente mais bela, mais simples, mais importante deste filme.

Se por um lado, a Karen quer seguir o Islão puro e sonha em conhecer a Arábia Saudita, por outro, reconhece e admira os privilégios de que goza na Ilha: ela pode conduzir, ela escolheu o curso que queria seguir, gere um pequeno negócio de compra e venda de roupas, etc.

Se por um lado a Karen quer terminar a Licenciatura e quiçá até continuar os estudos e/ou ter uma carreira profissional, por outro, sonha em ter um marido e ficar em casa a cuidar dos filhos.

Entre-eu-e-deus2
O filme “Entre Eu e Deus” é um alerta à moderação. Fonte: O País

É esta dimensão humana, individualizada, que me permite olhar para a Karen e me rever nas suas experiências.

Eu também sou uma mulher cheia de contradições. Eu também defendo ao mesmo tempo me oponho a certas coisas.

Eu também acredito e depois desminto. Enfim, eu também sou uma complicada teia de aceitações e rejeições, num mundo em constante mudança ao qual não me posso fechar e do qual não posso fugir, pois faço parte dele.

E isso é entre eu e eu mesma.

 

 

 

 

Homossexualidade não é importação

Homossexualidade não é importação

A homossexualidade é Africana e não importada, como costumamos ouvir por aí.

No continente Africano é muito hostil com a homossexualidade. Nos anos mais recentes, vários foram os países, tais como o Malawi, Uganda e Nigéria que proativamente aprovaram ou reforçaram leis que proíbam a homossexualidade.

Os motivos para tal prendem-se sobretudo com valores sociais e religiosos.

Do lado social, há dois aspectos a considerar: o primeiro é que vivemos em sociedades em que se valoriza muito o matrimónio e a procriação, e uma vez que as relações homoafetivas não permitem que se viva (pelo menos não da forma tradicional) estes processos, são desvalorizadas e vistas como inválidas; e o segundo é que vivemos em sociedades em que o conceito de indivíduo praticamente não existe, pois todas as decisões, rituais, direitos e deveres são vividos em comunidade.

Nesse sentido, uma vez que a experiência da homossexualidade é muito íntima e pessoal, algo vivido de forma isolada e que não acontece no colectivo, ela passa a ser invisível e até mesmo desprezível.

1280x720
A homofobia não é africana. Fonte: Rede Angola

Mas acima de tudo isso, um dos maiores argumentos, senão o maior argumento utilizado para a oposição à garantia de direitos iguais aos casais homossexuais é o facto de se considerar a homossexualidade como algo novo, importado do Ocidente.

Outro argumento comum prende-se com as escrituras sagradas. Seja no Islão ou no Cristianismo, segundo os africanos que praticam estas duas religiões, o seu Deus não aprova relacionamentos homoafetivos. Isso é coisa do Diabo.

Mas se tanto o Islão como o Cristianismo como religiões, isto é, como formas organizadas de se praticar a fé, foram forçados no continente, então temos também de aceitar que não fazem parte da ‘cultura’ africana.

Se supostamente, a homossexualidade é um conceito estrangeiro a África. Então se assim for, também o é a homofobia.

A homofobia foi-se proliferando com o Colonialismo através da formalização do poder europeu na África.

Na Nigéria, tal como em outras ex-colónias britânicas, a lei vitoriana que invoca sodomia e homossexualidade, os homossexuais podem ser condenados a até 14 anos de prisão. Isto, quando aliado às mensagens proliferadas pelos líderes religiosos, cria um ambiente em que ataques violentos a homossexuais são aceitáveis.

being4
A tradição do casamento entre mulheres nas sociedades Igbo não pode ser negada. Fonte: Black Agenda Report

Contudo, é importante ressalvar que as relações homoafetivas tanto entre homens como entre mulheres já existiam nas sociedades pré-coloniais.

No livro “Boy-wives and Female husbands – Studies in African Homosexualities”, os autores descrevem extensivamente a pluralidade de ‘homossexualidades’ reconhecidas no continente.

Em Angola, naquilo que eram os Reinos de Matamba e do Congo, no séx XVII, eram reconhecidos os supostos homens que se sentiam e viviam como mulheres, ou seja travestis, chamadas de “quimbanda”. Às travestis era permitido vestirem-se e viverem como mulheres, recebendo homens em suas casas para terem relações sexuais.

Na Nigéria, mais precisamente nas sociedades Igbo, era comum relações entre mulheres. Nestas relações, embora uma mulher representasse a figura masculina, tendo de assumir o dote, as divisões de papéis não eram como aquelas que vemos nas relações heterossexuais. Estas relações regiam-se sobre um código próprio e completamente legitimo, reconhecido por toda a comunidade.

Ou seja, a homossexualidade como conhecemos hoje podia não existir. Designávamos por outros nomes e usávamos outros parâmetros, mas estava lá.

Quando os Europeus chegaram à Europa desenharam esta imagem das pessoas africanas como primitivas e sem cultura, filosofia ou conhecimento para dar ao mundo. Nessa linha de pensamento, como seres primitivos, a única razão para nos relacionarmos sexualmente era a procriação. Afinal de contas é assim com os animais.

E nós fomos nos (sub)desenvolvendo com esta imagem de nós mesmos, pensando que em África não existem humanos complexos, com emoções, vivências e ideias progressivas.

GettyImages-455646822-1494262209
Na África do Sul o casamento entre pessoas do mesmo sexo é previsto por lei. Fonte: BBC

Num continente tão grande e diverso como África, não é de admirar que haja também uma pluradidade de homossexualidades e heterossexualidade. Estes conceitos, bem como os de género nos acompanham há muito tempo e já sofreram alterações face aos processos históricos e ao desenvolvimento das nossas sociedades.

No entanto, não podemos continuar a viver como se não fosse nossa “cultura” abraçar a diversidade e complexidade de vivências que podem existir – e existem! – ao nosso redor.

Como sociedade temos de fazer melhor, precisamos de melhor.

Países como a África do Sul estão na vanguarda dos direitos LGBT+ em África, pois aproveitaram a época de libertação para garantir direitos fundamentais a todos os cidadãos, sem distinção no que toca a raça, credo, género, sexualidade, etc.

Então, mais do que perceber se a vivência da homossexualidade é ou não compatível com o conceito de Africanidade, talvez seja mais importante nos perguntarmos:

Por que é que somos tão resistentes à ideia de existirem africanos homossexuais?