Dois Mil e Dezassete

Dois Mil e Dezassete

Janeiro veio como uma manga madura num ramo ao alcance da mão: Doce, esperançosa, pronta!

Agarrei-a com toda a fome em mim, e devorei Janeiro como uma manga suculenta, deixando escorreu todo seu sumo pelas minhas mãos, chegando ao cotovelo.

E com essas mãos sujas e peganhentas do doce sumo agarrei Fevereiro. Ou Fevereiro agarrou-se a mim.

Fevereiro abraçou-me, consolou-me. Os seus braços curtos me apertaram tão forte que chorei saudades de outras vidas.

Quando limpei as lágrimas, Março já estava aqui.

Em Março um novo reino se ergueu. Uma Rainha desfilou as suas garras no meu chão e fez-me ouvir o seu miar.

Índico e Atlântico se beijaram e nesse amor turbulento me perdi e descobri. Adormeci com Adamastor a soprar-me ao ouvido uma música linda e a sua voz gentil, em mim ficou e comigo voltou.

Em Abril tendo essa música no fundo, fui ao encontro de um novo ciclo.  Grandes renovações começam sempre em Abril. Abril é despedida e boas-vindas. Melancolia e alegria.

Abril nunca se apressa nem atrasa. Abril sempre chega quando eu preciso. Sempre tu, Abril.

O perfume de Abril permaneceu no ar e Maio também foi amor.

Maio foi um banho no mar. Um passeio com os pés na areia. O cheiro de praia a invadir toda a minha vida.

Nessa água salgada também chorei.

Um. Dois. Três.

Junho. Julho. Agosto. Chegaram e foram, como nunca tivessem cá estado.

Enfrentei-os e perdi. As minhãs mãos bateram à porta com tanta força que sangrei todos os meus sonhos.

Setembro foi passageiro como uma chuva de Verão. Veio com força, curou e destruiu, parou.

Dele ficou apenas cheiro a terra molhada e a marca dos meus passos sujos seguindo em frente.

Nessa terra molhada, germinaram algumas coisas.

Em Outubro cortei as pontas, o cabelo cresceu. Na raíz, novos cachos se formavam. Uns mais enrolados que outros, todos eles a apontar para o Céu juntos criaram uma auréola.

Em Novembro chorei. De tristeza. De solidão. De cansaço.

Perdi o fôlego ao tentar correr mas o tempo tem um ritmo próprio e os meus pés estavam cansados de pisar desilusões.

Então parei e observei. Deixei o tempo guiar-me para a sua direcção.

Quando dei por mim já era Dezembro e calor de Capricórnio entrava por todas as janelas.

As cortinas abriam-se, como se estivessem a fazer a vénia às lições de dois mil e dezassete. O Sol espreitava até por debaixo da porta, para ver mais uma vez aquele mestre.

Até sempre!

 

OS AA (Abandonados Anónimos)

OS AA (Abandonados Anónimos)

Clotilde era uma moça no auge dos seus 22 anos, carente e bonita, jovem de coxas grossas e vistosas que não mediam esforços para se fazerem vistas.

Tinha as pernas fortes e zangadas, que não se deixavam passar despercebidas, chamando a atenção de quem quer que fosse. E ela sabia.

Cló, como se apresentava, tinha ouvido falar do grupo. Deram-lhe uma morada, num local secreto, lá para as zonas do Palácio dos Casamentos, numa dependência discreta que não lembrava nada a ninguém.

A entrada para a dependência era antiga. O portão preto, evidenciava as marcas do tempo pela tinta descascada que deixava exposto o metal enferrujado de cor avermelhado. Um longo corredor seguia-se, por onde um dia entraram os carros, pois tina dois corredores de cimento de cada lado para cada roda caminhar sozinha, ainda que acompanhada.

Ela seguiu pelo corredor da roda esquerda, onde algumas plantas sobreviviam, mesmo com a evidente falta de água.

No fundo do corredor havia uma garagem também com ar abandonado. As paredes brancas, ja escurecidas pela chuva e pela poeira, tinham tons de castanho, preto e creme. A porta era de madeira, e ja inchava tamanho era o segredo que guardava.

Entrou, sentou-se e pôs-se a ouvir aquelas vozes.

Uns falavam calmamente, outros choravam enquanto havia quem travasse as lágrimas.

Vozes graves e agudas ali dentro mudavam. Homens e mulheres adultos voltavam a ser crianças, soluçando dores antigas.

Era a sua vez de falar, tinha medo, pois nunca tinha estado numa reunião destas. Não sabia exatamente como a coisa funcionava… Ganhou coragem e lá falou:

– O meu nome é Cló, Clotilde, e tenho 22 anos. Fui abandonada ainda na barriga da minha mãe pelo meu pai verdadeiro. Sou escura, mas tenho pai branco, aquele que me criou. Mas esse também me abandonou… Fugiu deste mundo há 5 anos. O meu primeiro namorado também me abandonou, foi estudar na Índia e aqui fiquei eu. Obrigada por me ouvirem.

No fim todos, em uníssono responderam:

– Bem-vinda Clotilde.

Era a primeira vez que ela falava dos seus abandonos.

Na verdade, é normal em Maputo conhecer pessoas com Síndrome de Abandono, pois afinal de contas, todos deste país foram abandonados.

Durante as várias guerras, com os outros e connosco, fomos abandonados: primeiro pelo colono, que era um pai abusivo mas pelo menos lhe conhecíamos a cara; ao mesmo tempo nos abandonaram os nossos pais, que foram à guerra, de onde nunca mais voltaram, embora alguns caminhem por aqui entre nós normalmente com jeito de quem não viu a morte de perto, mas ainda com o seu cheiro na pele; mais tarde, também as nossas mães nos abandonaram, arrastadas pelas incertezas da vida urbana… Mais recentemente abandonaram-nos os ideais e é precisamente por isso que andamos sem rumo nesta cidade.

Você conhece abandono quando ver?

Cló olhou à sua volta e não se chocou em ver aquelas caras ali; aqueles corpos moribundos; os pés descalços e as roupas sem cor. Não lhe chocaram as origens, nem tão pouco as tragédias daquelas pessoas.

Chocou-lhe perceber o quanto os abandonados também tinham abandonado.

Deu por si a reflectir sobre as coisas que tinha deixado para trás: os estudos; a Anabela, sua melhor amiga de infância; o Rogério, seu primeiro amor; os conselhos da sua mãe; a casa onde cresceu; a campa do seu pai; enfim…

Quem dos que vive em Maputo é de Maputo? Maputo é o ponto de encontro de todos os que ousaram pegar nas suas trouxas e fugir. Do quê e para quê poucos sabem! Abandonámos as nossas terras-natal, as nossas avós, as nossas línguas maternas, os nossos nomes, os nossos defuntos… e para aqui viemos! 

Onde rezam as pessoas que abandonam as suas árvores sagradas?

No fim do evento, Cló ficou a ajudar a tia Fátima a arrumar as cadeiras.

Foi pegando naqueles pedaços de plástico verde e encavalitou-os. Juntou as cadeiras em conjuntos de sete a dez e depois encostou-os a um canto.

Reparou que por baixo das cadeiras havia muito pó e as suas mãos rapidamente mudaram de cor. As paredes daquele compartimento também pareciam empoeiradas, com teias de aranha nos cantos, daquelas grossas, acumuladas durante anos.

Numa prateleira via-se vários electrodomésticos aparentemente avariados ou ultrapassados: um velho aparelho de rádio; uma torradeira; um walkman; e mesmo ao lado um conjunto de cabos e fios entrelaçados, impossíveis de distinguir.

Lá atrás, meio escondida, uma peneira com conchas e búzios que dizia “Recordação da Praia do Wimbi” e ao seu lado uma figura de Nossa Senhora de Fátima, meio fluorescente, parecia ser daquelas que brilham no escuro.

-Vamos? – Perguntou a tia Fátima, parada ao lado da porta já com a chave na mão.

Todos nós temos um canto, ou melhor dois cantos: um dentro e um fora de nós onde guardamos todos os nossos abandonos.

Em nós, o pó se acumula em pessoas, lugares, despedidas e desencontros que ainda esperamos resolver.

As nossas garagens acumulam velharias na esperança de serem um dia restauradas, utensílios sem uso e sem apreço, cartas queridas e guardadas, somos verdadeiros museus de coisas abandonadas.