Irmã, cabeçada não existe

Consideramos uma “Cabeçada”, uma situação em que um casal se separa e a culpa recai sobre uma terceira pessoa. 

No nosso dia-a-dia é comum ouvirmos, comentarmos e julgarmos as histórias de triângulos amorosos alheios.

No geral, essas histórias sempre começam com um casal que vivia feliz e que repentinamente se separa devido a alguém que se “mete no meio”. Alguém que destrói tudo e que começa posteriormente uma relação com alguém que fazia parte desse casal.

Geralmente esse alguém é uma mulher. A mulher é maléfica. É invejosa. É egoísta. Diabólica. As mulheres não são amigas. Essa mulher não pensou nos filhos dele. Destruidora de lares.

Enfim, os comentários são vários mas a situação é quase sempre a mesma: fulana deu cabeçada e agora está a namorar com fulano.

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No ano passado a cantora Liloca foi acusada de dar cabeçada a Maria de Lurdes, ex-mulher do cantor Mr. Bow. Fonte: Portal MozNews

O homem é visto como uma eterna criança, cujas decisões são tomadas sem ter em conta as consequências. A ele lhe é permitido agir por impulso e até mesmo instinto. Quantas vezes não ouvimos “Homem é assim mesmo!” ou “Isso é coisa de homem!”. E claro, “Todo o homem é assim“.

Simplificamos demais o homem e para compensar essa infantilização dele exigimos da mulher que ela seja responsável e ponderada.

Em relações monogâmicas heteronormativas os papéis de género estão bem definidos. Segundo esses papéis à mulher cabe cuidar do lar e da família (esposo e filhos) incondicionalmente, numa posição de clara submissão enquanto o homem desempenha o papel de provedor, força dominante.

Mesmo assumindo que os tempos são outros e que existem sim casais na vanguarda a tentar criar novas dinâmicas, é extremamente difícil numa sociedade patriarcal fugir a essas funções. Mesmo em relações homoafetivas muitas vezes vemos esses papéis replicados.

E nesses papéis pré-definidos o homem está sempre em vantagem. Se ele trai, a culpa é da esposa que se deixou acomodar. Se ele lhe bate, a culpa é da esposa que lhe tirou a paciência. Qualquer que seja a sua acção é na verdade uma reacção a algo que uma mulher fez.

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Trair é uma questão de poder: Fonte: Trendr

A mulher neste sentido vê-se desconsiderada. Todas as suas vontades, ideias e desejos são invalidados pois os do seu esposo prevalecem. Na estrutura familiar tradicional, é a mulher que se adapta ao marido.

 

Por essa razão, quando uma relação chega ao fim é comum culparmos a mulher. Ela é que se não se esforçou. Ela é que tem de pensar nos filhos. Ela é que tem de crescer e saber que casamento é isso mesmo.

E como essa mulher foi socializada para desculpabilizar o homem, ela vai procurar outra mulher para explicar o fim do seu relacionamento. É essa outra mulher a responsável, pois atraiu o homem, provocou e ele claro, seguindo o seu instinto foi incapaz de resistir.

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Lizha James canta a dor da mulher que leva uma cabeçada na música “Uloyi”. Fonte: Youtube

Aí entramos naquele discurso de cobrança de sororidade entre as mulheres, pois supostamente esta outra mulher deve se colocar no lugar daquela que está numa relação com o determinado homem.

Mas precisamente, a sororidade deixa de existir no momento em que eu me coloco numa situação de disputa com outra mulher. Se esse homem está numa relação comigo, é a ele a quem eu devo fazer cobranças e pedir satisfações.

A sororidade termina quando eu culpo a mulher pelo meu parceiro ser permissivo e não estabelecer limites.

Aí, eu olho para a outra mulher como a culpada por tudo, ela é que seduziu, ela é que provocou e ele fica isento de qualquer responsabilidade.

Precisamos de desconstruir essa ideia de inimizade entre as mulheres. É dessa ideia que surge essa culpabilização de outra mulher pelo fracasso do nosso relacionamento; da falência dos nossos sonhos; etc.

O sentido de sororidade aplica-se precisamente quando eu, como mulher, protejo a moça dessa responsabilidade. Afinal de contas, ela teve permissão do meu parceiro para se aproximar dele e foi ele quem se separou de mim.

Por outro lado, é importante também olhar para os nossos parceiros e parceiras como seres humanos complexos, cheios de sonhos, desejos, medos, traumas, etc.

Em qualquer relação é importante reconhecermos as necessidades e carências dos nossos parceiros e as nossas também. É a partir daí que vem o carinho, o companheirismo e a capacidade de ultrapassar situações de crise dentro do relacionamento.

Então, olhemos mais para dentro de cada um de nós, das conexões que fazemos e façamos um trabalho profundo de reflexão para reconhecer os vazios que deixamos (e enchemos) por onde passamos.